Opinião e Análise

Ana Beatriz Robalinho

Nathália Mariel F. de S. Pereira

Ocorreu na última semana a promulgação da <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc133.htm">Emenda Constitucional 133/2024</a> que, dentre outros dispositivos, acrescenta ao artigo 17 da Constituição Federal o parágrafo 9º, que define o seguinte:
"Art. 17
<ul>
<li>9º Dos recursos oriundos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e do fundo partidário destinados às campanhas eleitorais, os partidos políticos devem, obrigatoriamente, aplicar 30% (trinta por cento) em candidaturas de pessoas pretas e pardas, nas circunscrições que melhor atendam aos interesses e às estratégias partidárias."</li>
</ul>
Houve, então, a constitucionalização da previsão de cota de financiamento para candidaturas pretas e pardas, com um montante fixo de 30% dos valores destinados à campanha eleitoral, e com autonomia garantida ao partido para distribuir esse percentual nas circunscrições que melhor entenda estrategicamente.
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Para entender a mudança, é importante avaliar o contexto normativo construído nos últimos anos em matéria de política afirmativa eleitoral racial. A primeira discussão no tema ocorre em 2019, quando a deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), mulher negra, formulou consulta ao Tribunal Superior Eleitoral (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tse">TSE</a>), questionando qual seria a posição da corte sobre quatro temas:
1) A possibilidade de o TSE garantir que as candidatas negras recebam 50% dos recursos financeiros e do tempo em rádio e TV destinados às candidaturas femininas;
2) A possibilidade de o TSE instituir reserva de vagas de 30% a pessoas negras entre as candidaturas de cada partido político;
3) A possibilidade de o TSE determinar custeio proporcional das campanhas dos candidatos negros, destinando-se a estes pelo menos 30% do total do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC); e
4) A possibilidade de o TSE garantir tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão na exata proporção das candidaturas de homens brancos e negros apresentadas pelas agremiações, reservando aos negros pelo menos 30% do total de tempo.
Em 2020, a consulta 600306-47 é editada, com resposta afirmativa para três dos quatro questionamentos realizados. Partindo-se do pressuposto da interseccionalidade, foi identificado pelo TSE que as mulheres negras permaneciam prejudicadas, ainda que existissem políticas afirmativas voltadas para gênero. Foi definido que os partidos deveriam repassar valores dos fundos eleitorais e tempo de propaganda gratuita na exata proporção de candidatas negras apresentadas na eleição.
A mesma lógica de divisão proporcional de acordo com a quantidade de candidatos negros apresentados deveria ser aplicada pelos partidos para os candidatos do gênero masculino, e o único questionamento que teve resposta negativa foi o relacionado à cota de candidatura para negros, tendo sido justificado pelo Tribunal que tal medida seria de competência exclusiva do Poder Legislativo.
Ainda em 2020, no julgamento da ADPF 738, foi determinada pelo Supremo Tribunal Federal a aplicação do que ficou das disposições afirmativas da consulta do TSE, ou seja, o financiamento através de fundos eleitorais e divisão de tempo de propaganda realizado de maneira proporcional às candidaturas negras lançadas pelos partidos, em cada gênero, a partir das eleições de 2020:
[...] o volume de recursos destinados a candidaturas de pessoas negras deve ser calculado a partir do percentual dessas candidaturas dentro de cada gênero, e não de forma global. Isto é, primeiramente, deve-se distribuir as candidaturas em dois grupos - homens e mulheres. Na sequência, deve-se estabelecer o percentual de candidaturas de mulheres negras em relação ao total de candidaturas femininas, bem como o percentual de candidaturas de homens negros em relação ao total de candidaturas masculinas. Do total de recursos destinados a cada gênero é que se separará a fatia mínima de recursos a ser destinada a pessoas negras desse gênero.
Após a movimentação do Judiciário, em setembro de 2021 houve a edição da Emenda Constitucional 111, com a seguinte previsão:
Art. 2º Para fins de distribuição entre os partidos políticos dos recursos do fundo partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), os votos dados a candidatas mulheres ou a candidatos negros para a Câmara dos Deputados nas eleições realizadas de 2022 a 2030 serão contados em dobro.
Parágrafo único. A contagem em dobro de votos a que se refere o caput somente se aplica uma única vez.
Por fim, a gestão prática dessa divisão de valores, no campo do FEFC ,é feita da forma estabelecida na Resolução TSE 23.664/2021 que, alterando a Resolução TSE 23.605 de 2019, determina em seu artigo 6º:
" <a href="https://www.tse.jus.br/legislacao/compilada/res/2019/resolucao-no-23-605-de-17-de-dezembro-de-2019#_blank">Art. 6º </a>..........................................................................................
<ul>
<li>1º Os critérios a serem fixados pela direção executiva nacional do partido devem prever a obrigação de aplicação do total recebido do FEFC de acordo com os seguintes percentuais (STF: ADI nº 5.617/DF, DJE de 3.10.2018, e ADPF-MC nº 738/DF, DJE de 29.10.2020; e TSE: Consulta nº 0600252-18, DJE de 15.8.2018, e Consulta nº 0600306-47, DJE de 5.10.2020):</li>
</ul>
I - para as candidaturas femininas o percentual corresponderá a proporção dessas candidaturas em relação a soma das candidaturas masculinas e femininas do partido, não podendo ser inferior a 30% (trinta por cento);
II - para as candidaturas de pessoas negras o percentual corresponderá à proporção de:
<ol>
<li>a) mulheres negras e não negras do gênero feminino do partido; e</li>
<li>b) homens negros e não negros do gênero masculino do partido; e</li>
</ol>
III - os percentuais de candidaturas femininas e de pessoas negras será obtido pela razão dessas candidaturas em relação ao total de candidaturas do partido em âmbito nacional.
<ul>
<li>1º-A Na hipótese de federação, a comissão executiva nacional do partido deve observar os critérios fixados pela federação para distribuição do FEFC aos candidatos que a integram.</li>
</ul>
Além disso, existe a iniciativa promovida pelo TSE, ao prever no § 9º do artigo 24 da Resolução 23.609, de 18 de dezembro de 2019, mecanismo de controle da execução da política de cotas no registro de candidatura. Prevê o dispositivo que:
“§ 9o O partido político, a federação e a coligação poderão, como meio para promover a fidedignidade das informações sobre as candidaturas de pessoas negras, criar comissão de heteroidentificação para análise dos elementos fenotípicos de suas candidatas e de seus candidatos que pretendam declarar, no registro de candidatura, cor preta ou parda. (Incluído pela Resolução no 23.729/2024)”.
O panorama legal foi exposto para que a avaliação dos ganhos ou perdas oriundos da Emenda Constitucional 133 possa ser mais bem realizada, especialmente sob o prisma da igualdade que se espera quando colocada em perspectiva a finalidade de criação de uma política afirmativa. Isso porque a Emenda gera, justamente sob o prisma de sua principal finalidade, preocupações importantes.
Um primeiro problema reside na fixação do montante de 30% para as candidaturas negras e pardas. Na prática, existia a definição, judicial pelo STF e regulamentar pelo TSE, de financiamento proporcional ao lançamento de candidaturas, e que seria feito dentro de cada grupo avaliado sob o aspecto de gênero.
A Emenda, da forma como foi aprovada, gera na prática um decréscimo nos valores destinados para as candidaturas negras, seja em razão da imprecisão de como será feito esse repasse dentro do grupo de homens e mulheres negras, seja em razão do descompasso entre o montante de 30% e o quantitativo de candidaturas negras que, normalmente, ultrapassa esse percentual. Há, portanto, um retrocesso no campo prático.
Além disso, ficou determinado que a distribuição dos valores para campanha eleitoral, sejam tais valores oriundos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, sejam do Fundo Partidário, será feita a critério do partido, inclusive na escolha de direcionamento para circunscrições eleitorais específicas.
Com relação ao FEFC, conforme regulamentação do TSE, a distribuição é realizada no âmbito nacional, considerando o percentual de candidaturas lançados; contudo, o direcionamento dos valores do fundo partidário era avaliado localmente. Ainda que existam discussões judiciais sobre como avaliar o percentual da cota de financiamento, nota-se que a possibilidade de injustiças, inclusive regionais, no repasse desses valores pode se tornar mais frequente, e sem possibilidade de controle social ou judicial, em razão da previsão estabelecida no texto constitucional.
No que se refere à fixação de percentual para direcionamento do financiamento, esse decréscimo já é concreto nas eleições de 2024, onde o percentual de candidaturas negras ultrapassou - seguindo uma tendência inaugurada em 2020 - o quantitativo de candidaturas brancas, atingindo aproximadamente 50%. Pelas regras anteriores, o financiamento proporcional de tais candidaturas seria nesse percentual de pedidos feitos, 50%; pela regra da Emenda, o percentual fica fixo em 30%.
No que se refere à determinação de que os partidos distribuirão livremente os fundos, há um choque entre dois princípios constitucionais. A definição de liberdade e autonomia do partido para direcionamento de valores de cota para as circunscrições eleitorais se contrapõe à garantia do caráter nacional das agremiações, estabelecido constitucionalmente para garantir equidade e atendimento de regras democráticas em todo o território nacional. Na prática, o segundo princípio pode estar sendo sacrificado para garantir maior liberdade aos partidos, uma escolha constitucionalmente questionável.
Por fim, a emenda constitucional não trouxe previsão acerca da divisão de tempo de propaganda eleitoral gratuita para candidaturas negras. A Emenda Constitucional 117, que constitucionalizou as cotas de gênero nas eleições, trouxe previsão tanto para financiamento de campanhas eleitorais quanto para divisão de tempo de propaganda eleitoral gratuita; mas isso não ocorreu na previsão da Emenda Constitucional 133, sem justificativa para tal exclusão.
Vale destacar que no sistema normativo formado pela decisão do STF na ADPF 738, as cotas raciais aplicavam-se tanto no campo do financiamento de campanhas, quanto no campo da propaganda eleitoral. Isso significa que a decisão permanece válida nesse quesito? Acreditamos que sim, mas o silêncio da Emenda gera uma dúvida pouco desejável para os fins pretendidos.
Cotas como políticas afirmativas devem ser norteadas pela ideia de relações racionais, meios adequados e finalidade legítima, para que produzam os efeitos esperados no contexto social. Não se pode negar a vitória existente em colocar no texto constitucional a previsão de cotas raciais no campo eleitoral. Todavia, é importante avaliar o contexto normativo criado até o momento e os dados relacionados à eleição em nosso país, para que ferramentas de inclusão funcionem e não sejam mais um processo que acabe impedindo o gozo básico de elementos da cidadania por grupos marginalizados.

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JOTA

É importante avaliar o contexto normativo para que ferramentas de inclusão funcionem efetivamente

Emenda Constitucional 133: avanços ou retrocessos nas cotas raciais?

É importante avaliar o contexto normativo para que ferramentas de inclusão como as cotas raciais funcionem efetivamente