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Economia, mercado e pressões globais: comércio internacional e concorrência

Em um mundo amplamente polarizado, crescem as tensões e a ausência de consensos sobre o tema

concorrência
Crédito: Unsplash

Comércio internacional e concorrência estão intimamente ligados em uma economia cada vez mais integrada, globalizada e digital. Como Karl Polanyi sinaliza, não há mercado sem o direito[1]. O mercado é locus artificialis[2], derivado de uma escolha do direito, marcado pela historicidade. Não há mais espaço, portanto, para posições estanques entre comércio internacional de um lado e concorrência de outro.

Recorde-se que a “empresa não existe sozinha, mas somente em relação com outras empresas e com os adquirentes de seus produtos ou serviços”.[3] Já estão há muito superadas, então, as noções rígidas de ato de comércio e de atividade, passando-se à necessária constatação de que as empresas se encontram inseridas no mercado.[4]

Ainda que para muitos autores prevaleça a visão convergente de que, sem a legislação antitruste, não há livre comércio, há também quem defenda que as barreiras comerciais desempenham um importante papel no recrudescimento da crise dos mercados globalizados[5]. Em um mundo amplamente polarizado, crescem as tensões e a ausência de consensos sobre o tema.

Como o antitruste ganhou os holofotes e está novamente no centro das discussões, passou-se a defender que a harmonização do direito da concorrência pode desempenhar um papel crucial no desenvolvimento do comércio internacional, hoje alegadamente em crise.

Crise essa que deriva, dentre outros fatores, da paralisia do Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio (OMC)[6], do uso de soluções para além da tríade prevista como remédios a práticas desleais de comércio (os tradicionais antidumpings, medidas compensatórias e salvaguardas comerciais)[7], bem como da ausência, em período recente, de novos acordos multilaterais – cuja expectativa volta a crescer diante da nova Conferência Ministerial prevista para novembro de 2021.[8]

Por sua vez, não se pode deixar de mencionar também uma alegada crise no antitruste, que vem apresentando discussões cada vez mais intensas sobre seus reais objetivos. Seria o objetivo do antitruste em essência reduzir preços aos consumidores, a la Chicago, ou haveria espaço para outros objetivos, a la Neobrandeisianos,[9] como a rivalidade do mercado, a existência de competidores, a inovação, a promoção de um mercado socialmente consciente das realidades ambiental, trabalhista, de gênero, entre outros?

Reflexo evidente desse movimento é o Decreto Presidencial (Executive Order) [10] do Presidente dos Estados Unidos Joe Biden, de julho de 2021, que insta as agências governamentais a promover a concorrência na economia norte-americana no amplo sentido de bem-estar do consumidor, bem como a necessidade de endereçar de modo direto o aumento do poder de mercado pelas empresas.

Os temas que ilustram essas pressões globais e os influxos entre comércio internacional e concorrência são incontáveis, e dois deles serão apresentados brevemente neste artigo, apenas de caráter exemplificativo, dentre uma miríade de possíveis interfaces[11].

No contexto dos debates sobre sustentabilidade e práticas empresariais Environmental and Social Governance (ESG), pela ótica antitruste menciona-se a publicação da “Guidelines suistainability claims[12] da autoridade antitruste holandesa, de 2020, que trata das políticas da concorrência no contexto das práticas de sustentabilidade, bem como o Documento de Trabalho da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), de 2020, com o mesmo tema de Sustainability and Competition[13]. Ainda em 2020, o “Open markets and sustainable economic activity – Public interest objectives as a challenge for competition law[14] da autoridade antitruste alemã aborda também a questão da sustentabilidade sob a perspectiva do interesse público.[15]

Em paralelo, sob a ótica do comércio internacional, coloca-se luz às discussões sobre o chamado Carbon Border Adjustment Mechanism (CBAM), proposto em 2021 pela União Europeia[16], possivelmente replicável por outros países como Estados Unidos e Canadá. As repercussões da implementação desses mecanismos nas transações comerciais entre empresas no mercado serão imediatas, evidenciando que a empresa não existe sozinha, mas sim dentro de um mercado, definido jurídica e historicamente pelo direito.

Outro tema evidente nas pressões globais entre comércio internacional e concorrência diz respeito aos impactos do direito do trabalho. Se antes tais ramos eram vistos isoladamente, não há mais espaço para tal divisão em um mercado global. A inclusão de cláusulas trabalhistas em acordos preferenciais de comércio pode impactar as transações comerciais entre empresas[17], assim como a imposição de banimentos estatais a determinadas empresas que utilizem mão de obra escrava[18].

Ademais, acordos de não contratação de funcionários dos concorrentes, bem como fixação de valores do salários dos trabalhadores deixaram de ser práticas desconhecidas pela comunidade antitruste[19], passando a ser objeto de Guia nos Estados Unidos sobre Recursos Humanos e Antitruste[20], e inclusive a ser objeto de processos administrativos perante o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) no Brasil.[21]

Para problemas do século 21, portanto, precisamos de novas soluções e de novos usos para antigas instituições. Como define Calixto Salomão Filho, o direito é um corpo de regras organizativas da sociedade, que sofre constante influência e determinação pelas relações de poder e interesse na sociedade[22]. Comparato, por sua vez, também alertava que “a norma é sempre editada em função da realidade vital – para resolver questões concretas, em função de interesses sociais bem definidos”.[23]

Quer isso seja feito de forma local, nacional ou internacional, é preciso atentar ao impacto para a essa realidade vital social, política e econômica de arranjos institucionais e regulatórios[24]. Comércio internacional e concorrência são conceitos interligados, convergentes e complementares, em um mercado global estruturado pelas regras jurídicas.

As empresas não atuam no vácuo, e suas respectivas atuações refletirão as escolhas de regras jurídicas, políticas e econômicas realizadas pelos Estados nos quais produzem e/ou prestam serviços, bem como por aquelas regras jurídicas onde estão localizados os adquirentes de seus produtos ou serviços. Regras estas, recorde-se, que nunca são absolutas ou definitivas, dada a sua historicidade e natural dinamismo. [25]

* Este artigo expressa única e exclusivamente as opiniões pessoais das autoras e não possuem ligação com as instituições a que estas estão vinculadas profissionalmente.


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[1] POLANYI, Karl. A Grande Transformação. As Origens da Nossa Época. 3ªed. São Paulo: Campus, 2000, p. 290

[2] IRTI, Natalino. A ordem jurídica do mercado. In. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, n. 145, p. 44- 49, jan/mar 2007.

[3] FORGIONI, Paula. A evolução do direito comercial brasileiro: da mercancia ao mercado. São Paulo: RT, 2009.

[4] Algumas das reflexões apresentadas neste artigo foram preliminarmente debatidas no seguinte artigo das autoras: ATHAYDE, Amanda. CINTRA DE MELO, Lílian. As pressões globais na evolução da convergência entre o direito do comércio internacional e a defesa da concorrência. in. ATHAYDE, Amanda; CINTRA DE MELO, Lílian (Orgs). Comércio Internacional e Concorrência: Desafios e Perspectivas Atuais – Volume III. Brasília: Faculdade de Direito – UnB, 2021. Disponível em: https://c91ba030-1e79-4eb0-b196-35407d130c35.filesusr.com/ugd/62c611_766e7608b5b34862aefd5b7769850100.pdf. Acesso em 23 de agosto de 2021.

[5] HEINEMANN, Andreas; CHOI, Yo Sop. Competition and Trade: The Rise of Competition Law in Trade Agreements and Its Implications for the World Trading System. World Competition, 43(4):521-542, 2020. Disponível em: https://www.zora.uzh.ch/id/eprint/196346/1/Choi_Heinemann_Competition%26Trade_World_Competition_2020_off-print.pdf. Acesso em 23 de agosto de 2021.

[6] WTO. Informal Process on Matters Related to the Functioning of the Appellate Body – Report By The Facilitator, H.e. Dr. David Walker (new Zealand). 2019. E diante da paralisia do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, a solução arbitral tem sido aventada. MULTI-PARTY INTERIM APPEAL ARBITRATION ARRANGEMENT (MPIA) – WORLD TRADE ORGANIZATION (WTO) Statement on a Mechanism for developing, documenting and sharing practices and procedures in the conduct of WTO disputes, 2020. Disponível em: https://docs.wto.org/dol2fe/Pages/FE_Search/FE_S_S009-DP.aspx?language=E&CatalogueIdList=263504. Acesso em 23 de agosto de 2021.

[7] Como exemplo, podem ser mencionadas a Seção 232 do Trade Expansion Act de 1962 e a Seção 301 do Trade Act de 1974 dos Estados Unidos.

[8] Ministério das Relações Exteriores (MRE). Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/reuniao-ministerial-da-organizacao-mundial-do-comercio-omc-sobre-subsidios-a-pesca-nota-conjunta-do-ministerio-das-relacoes-exteriores-e-do-ministerio-da-agricultura-pecuaria-e-abastecimento-15-de-julho-de-2021. Acesso em 23 de agosto de 2021.

[9] Dentre os diversos artigos sobre o tema, sugere-se iniciar com a leitura do seguinte: KHAN, Lina. Amazon’s Antitrust Paradox. Yale Law Journal, [s. l.], n. Issue 3, p. 710, 2016. Disponível em: https://www.yalelawjournal.org/note/amazons-antitrust-paradox. SCHREPEL, Thibault.  Antitrust Without Romance. NYU Journal of Law & Liberty 326 (2020), May 28, 2019https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3395001. Acesso em 23 de agosto de 2021.

[10] ESTADOS UNIDOS. Executive Order on Promoting Competition in the American Economy. 09 Jul. 2021. Disponível em: https://www.whitehouse.gov/briefing-room/presidential-actions/2021/07/09/executive-order-on-promoting-competition-in-the-american-economy/. Acesso em 23 de agosto de 2021. Face Sheet: https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2021/07/09/fact-sheet-executive-order-on-promoting-competition-in-the-american-economy/. Acesso em 23 de agosto de 2021.

[11] Para maiores referências sobre essa interface entre concorrência e comércio internacional, recomenda-se a bibliografia do curso da pós-graduação em Comercio Internacional e Concorrência, ministrado na UnB pela professora Amanda Athayde (https://www.amandaathayde.com.br/unbposgraduacao), bem como os livros publicados como resultado da disciplina (https://www.amandaathayde.com.br/livros-organizados). Acesso em 23 de agosto de 2021.

[12] Disponível em: https://www.acm.nl/en/publications/guidelines-sustainability-claims. Acesso em 23 de agosto de 2021.

[13] OECD. Sustainability and Competition, 2020. Disponível em: https://www.oecd.org/daf/competition/sustainability-and-competition-2020.pdf. Acesso em 23 de agosto de 2021.

[14] Disponível em: https://www.bundeskartellamt.de/SharedDocs/Publikation/EN/Diskussions_Hintergrundpapiere/2020/Working_Group_on_Competition_Law_2020.pdf?__blob=publicationFile&v=2. Acesso em 23 de agosto de 2021.

[15] CINTRA DE MELO, Lílian. A relação entre antitruste e sustentabilidade. Consultor Jurídico, maio/2021. Disponível em:  https://www.conjur.com.br/2021-mai-17/lilian-melo-relacao-entre-antitruste-sustentabilidade. Acesso em 23 de agosto de 2021.

[16] EUROPEAN COMMISSION. Proposal for a Regulation of the European Parliament and of the Council establishing a carbon border adjustment mechanism (COM(2021) 564 final). Brussels, 14 July, 2021. Disponível em: https://ec.europa.eu/info/sites/default/files/carbon_border_adjustment_mechanism_0.pdf. Acesso em 23 de agosto de 2021.

[17] LECLERCQ, Desiree. SAMAAN, Daniel. ROBERTSON, Raymond. Labor Provisions in Trade Agreements: Recasting the Protectionist Debate (July 10, 2020). https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3668916. Acesso em 23 de agosto de 2021.

[18] KAPLAN, Thomas; BUCKLEY, Chris; PLUMER, Brad. U.S. Bans Imports of Some Chinese Solar Materials Tied to Forced Labor. The New York Times, June 24, 2021. Disponível em: https://www.nytimes.com/2021/06/24/business/economy/china-forced-labor-solar.html. Acesso em 23 de agosto de 2021.

[19] ATHAYDE, Amanda; DOMINGUES, Juliana Oliveira e SILVA E SOUZA, Nayara Mendonça. O improvável encontro do direito trabalhista com o direito antitruste. Revista do IBRAC, Volume 24 – Número 2 – 2018. Disponível em: https://ibrac.org.br/UPLOADS/PDF/RevistadoIBRAC/Revista_23_n%C2%BA_2.pdf. VOLPIN, Cristina; PIKE, Chris. Competition Concerns in Labour Markets. OECD Competition Papers, 2019. Disponível em: http://www.oecd.org/daf/competition/competition-in-labour-markets-2020.pdf. Acesso em 23 de agosto de 2021.

[20] DEPARTMENT OF JUSTICE ANTITRUST DIVISION AND FEDERAL TRADE COMMISSION, Antitrust Guidance For Human Resource Professionals, 2016. Disponível em: https://www.ftc.gov/public-statements/2016/10/antitrust-guidance-human-resource-professionals-department-justice Acesso em 23 de agosto de 2021.

[21] https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2021/03/24/cade-investiga-formacao-de-cartel-entre-departamentos-de-recursos-humanos.ghtml. Acesso em 23 de agosto de 2021.

[22] SALOMÃO FILHO, Calixto. Teoria Crítico-Estruturalista do Direito Comercial. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 123.

[23] COMPARATO, Fabio Konder. Alienação de Controle de Companhia Aberta. In Direito Empresarial – Estudos e Pareceres. São Paulo: Saraiva, 1ª edição, 2ª tiragem, 1995, p; 76.

[24] KENNEDY, David. The Political Economy of Centers and Peripheries. Sciences-Po Blog. Disponível em: http://blogs.sciences-po.fr/pilagg/files/2012/05/David-Kennedy-Paper-PILAGG-FM.pdf. Acesso em 23 de agosto de 2021.

[25] IRTI, Natalino. Op. cit.

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