Opinião e Análise

Priscila Seifert

Larissa Friedrich

A revogação de precedentes em matéria processual pode causar enorme abalo nas ações judiciais em curso, haja vista que é à luz do direito estabelecido pelos tribunais que os advogados mensuram suas condutas, adotam estratégias de litigância e praticam os atos processuais.
Não obstante, também é necessário, ainda que excepcionalmente, rever os posicionamentos jurisprudenciais consolidados em precedentes para que o ordenamento jurídico possa acompanhar as evoluções da sociedade que, nos últimos anos, tem mudado em uma velocidade incrível.
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Embora a revogação de precedentes seja algo excepcional, as reviravoltas na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) têm sido frequentes. A Corte, inclusive, já foi taxada pelo então ministro Humberto Gomes de Barros como uma “banana boat”, uma verdadeira boia à deriva (Ag no Recurso Especial 382.736-SC) e não como um farol<a href="#_edn1" name="_ednref1">[1]</a>. Aventa-se que, em breve, poderemos ter mais dois overrulings no Tribunal, ambos relacionados à condenação em honorários advocatícios sucumbenciais.
É neste verdadeiro campo minado que este singelo artigo pretende pisar. Para tanto, ele foi dividido em três partes: na primeira, será feita uma breve exposição dos conceitos envolvidos na discussão proposta, quais sejam: distinguish, overruling e modulação de efeitos; na segunda, será enfatizado o papel do amicus curiae como auxiliar da Corte na formação e modulação de precedentes; por fim, na terceira, serão tecidos breves comentários sobre a possibilidade de overruling nos julgamentos do EREsp 1.925.959-SP e do Tema 1230.
<h3>Parte I</h3>
O distinguish e o overruling são dois mecanismos de revisão de precedente presentes no ordenamento jurídico brasileiro. Enquanto o distinguish permite ao magistrado afastar a incidência da regra extraída do precedente em face da inexistência de similitude fática entre aquele e o caso de julgamento, o overruling é a superação do entendimento adotado no precedente; é, de certa forma, a revogação do precedente.
Embora sirvam para o mesmo propósito, há uma diferença elementar entre eles. O distinguishig pode ser feito por qualquer magistrado ou Tribunal, ao passo que o overruling, por ser medida mais drástica, somente pode ser feito pelas Cortes Superiores.
Ademais, o afastamento do precedente por distinguishing é sempre específico; implica o afastamento somente para aquele determinado caso. O overruling, por sua vez, é genérico, afastará a incidência do precedente em todos os casos semelhantes.
Logo, por ser mais gravoso, é salutar que nos casos em que ocorra o overruling haja modulação dos efeitos da decisão. Essa possibilidade está expressa no §3, do art. 827 do CPC, que determina que “na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores ou daquela oriunda de casos   repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica”.
A modulação é importante porque é por meio dela que as Cortes irão definir quando o julgamento passará a produzir seus efeitos. Dessa forma, a correta aplicação do instituto garante a segurança jurídica e evita as incertezas decorrentes de mudanças abruptas na interpretação das normas, sobretudo as de natureza processual, que atingem as ações em curso.
Antes mesmo da publicação do CPC de 2015, o STJ já vinha modulando suas decisões<a href="#_edn2" name="_ednref2">[2]</a>. Normalmente, a modulação de julgamentos em que ocorrem a superação de precedentes têm sido prospectivas, a partir do momento em que a decisão da Corte é publicada. No entanto, há uma série de possibilidades de modulação, desde que haja justificativa criteriosa em relação à necessidade e à conveniência.
<h3>Parte II</h3>
Considerando essas peculiaridades, a participação do amicus curiae nos julgamentos em que possa ocorrer a superação de precedentes é relevantíssima, pois ele pode oferecer à Corte informações e perspectivas que podem não estar disponíveis nas argumentações apresentadas pelas partes envolvidas, ampliando, dessa forma, o horizonte do debate.
É pertinente esclarecer que, a despeito do regramento geral da disciplina de intervenção pelo amicus previsto no art. 138 do CPC<a href="#_edn3" name="_ednref3">[3]</a>, há regra específica sobre o assunto no §2°, do art. 927<a href="#_edn4" name="_ednref4">[4]</a>, possibilitando expressamente a participação do amicus quando puder ocorrer a alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos.
Ademais, caso a Corte não module os efeitos do julgamento revogador, o amicus poderá opor embargos de declaração para pedir que seja feita a modulação ou ainda para postular a relativização temporal do julgamento, de modo a proteger situações consolidadas e até mesmo a coisa julgada, evitando, dessa forma, múltiplas ações rescisórias.
<h3>Parte III</h3>
Em breve, dois precedentes relevantíssimos envolvendo a condenação em honorários advocatícios sucumbências serão formados no Superior Tribunal de Justiça, com considerável possibilidade de overruling do entendimento consolidado anteriormente na Corte.
O EREsp 1.925.959-SP
O primeiro diz respeito ao cabimento ou não de honorários advocatícios de sucumbência no IDPJ, Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica. O tema vai ser analisado pelo STJ por meio dos EREsp 1.925.959-SP.
Segundo as Turmas que compõem a 1ª Seção, não são cabíveis honorários em IDPJ, haja vista o entendimento da Corte de que não são cabíveis honorário advocatícios nos incidentes processuais, por ausência de previsão legal, exceto nos casos em que estes são capazes de extinguir ou alterar substancialmente o próprio processo principal<a href="#_edn5" name="_ednref5">[5]</a>.
Ocorre que, em outubro de 2023, a 3ª Turma do STJ, sem discutir modulação de efeitos, passou a adotar novo entendimento a respeito do tema, no sentido de que “o indeferimento do pedido de desconsideração da personalidade jurídica, tendo como resultado a não inclusão do sócio (ou da empresa) no polo passivo da lide, dá ensejo à fixação de verba honorária em favor do advogado de quem foi indevidamente chamado a litigar em juízo”.
Dessa forma, ao admitir os embargos de divergência, o ministro Antônio Carlos Ferreira, trouxe à baila uma discussão especialmente relevante após a consolidação do modelo sincrético, que unifica as fases de conhecimento e de execução do processo. Nele, várias questões passaram a ser tratadas como incidentes processuais, sendo decididas por decisões interlocutórias.
Assim, havendo confirmação do overruling, o julgamento irá repercutir em relação a outros incidentes processuais litigiosos nos quais o STJ não tem admitido a condenação honorária sucumbencial, como por exemplo, na hipótese de rejeição da impugnação ao cumprimento de sentença.
Ademais, caberá a Corte debater sobre a necessidade de prospecção de efeitos, salvaguardando os processos pendentes na data da publicação da revisão jurisprudencial. 
O Tema 1230
O segundo, diz respeito ao julgamento do tema 1230, afetado como precedente qualificado, em dezembro de 2023, para garantir segurança jurídica e evitar decisões divergentes nos tribunais.
O tema 1230 discute a possibilidade de penhora de verba salarial para o pagamento de dívida não alimentar. Ele tem como objetivo definir o alcance da exceção prevista no §2°, do art. 833 do CPC<a href="#_edn6" name="_ednref6">[6]</a>, em relação à regra da impenhorabilidade de verba de natureza salarial tratada no inciso IV do mesmo dispositivo, para efeito de pagamento de dívidas não alimentares, inclusive quando a renda do devedor for inferior a 50 salários-mínimos.
Num primeiro momento, pode parecer coerente definir o alcance dessa exceção, alvo de muita controvérsia no tribunal. No entanto, essa definição já foi dada pela Corte Especial do STJ em abril de 2023, ao julgar o EREsp 1.874.222.
Nesta ocasião, restou assentado o entendimento de que, em caráter excepcional, é possível relativizar a regra da impenhorabilidade das verbas de natureza salarial para pagamento de dívida não alimentar, independentemente do montante recebido pelo devedor, desde que preservado valor que assegure subsistência digna para ele e sua família.
Não é só. Em junho de 2024, ao julgar o Tema 1153 que tinha como finalidade definir se os honorários advocatícios de sucumbência, em virtude da sua natureza alimentar, inserem-se ou não na exceção prevista no §2º do art. 833 do CPC, a Corte, surpreendentemente, decidiu pela exclusão da verba da exceção.
Por que esse julgamento surpreendeu? Porque ele não guarda coerência com a ratio decidente do precedente anterior. Se fosse aplicada ao julgamento do tema 1153 a mesma ratio aplicada ao EREsp 1.874.222, o julgamento seria pela possibilidade da penhora. Mas este não foi entendimento da Corte, que, nesta ocasião, adotou como razão a necessidade de distinguir a prestação de natureza alimentar em sentido amplo da prestação alimentícia em sentido estrito. Somente esta última se enquadraria na excepcionalidade da penhora.
Tudo indica que por meio do julgamento do Tema 1230, como precedente qualificado, a Corte deseja uniformizar o seu próprio entendimento, já que essa dissonância quanto a extensão da interpretação do §2°, do art. 833 do CPC tem gerado muita insegurança jurídica.
<h3>Conclusão</h3>
O EREsp 1.925.959-SP e o julgamento do Tema 1230 podem ser considerados ótimas oportunidades para a atuação do amicus curiae, que além de ampliar o debate e, dessa forma, conferir maior legitimidade ao processo decisório da Corte, podem ainda auxiliá-la no que diz respeito à abrangência/delimitação do objeto do precedente, bem como na modulação de seus efeitos. Se é verdade que o STJ pode ser taxado como uma “banana boat”, é possível que o amicus curiae possa emergir como um verdadeiro farol no processo decisório da Corte.
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<a href="#_ednref1" name="_edn1">[1] </a>Barreto e Gazzaniga, Eduardo Monteiro e Amanda Nadal. STJ e modulação de efeitos das decisões: ainda um banana boat. Disponível em <a href="https://www.jota.info/artigos/stj-e-modulação-de-efeitos-das-decisões-ainda-um-banana-boat-11072024">https://www.jota.info/artigos/stj-e-modulação-de-efeitos-das-decisões-ainda-um-banana-boat-11072024</a>. Acessado em 05.09.2024.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[2]</a> Por exemplo, em 2003, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça tinham jurisprudência consolidadas no sentido de que a intimação pessoal do Ministério Público ocorria com a aposição do “ciente” lançado nos autos, quando efetivamente entregues ao órgão ministerial, e não com a aferição da data da entrada do processo na secretaria (EREsp 23.995/SP).
Ao julgar o HC 83.255-5, o Supremo mudou seu entendimento e passou a entender que o termo a quo para a interposição do recurso seria a data da entrada do processo nas dependências do MP. O STJ, a princípio, acompanhou a nova orientação do STF, sem qualquer modulação.
Naturalmente, porém, surgiu o problema relacionado com os recursos que haviam sido interpostos à época em que prevalecia o entendimento anterior, pois caso a nova orientação continuasse a ser adotada, sem modulação, todos os recursos intentados pelo órgão ministerial com fulcro nos precedentes antigos seriam considerados intempestivos.
Assim, o STJ passou a admitir a tempestividade dos recursos que se fundaram no entendimento que prevalecia na data da interposição, não permitindo a retroatividade do novo entendimento para descaracterizar a tempestividade recursal.
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[3]</a> Art. 138. O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação.
<ul>
<li>
1º A intervenção de que trata o caput não implica alteração de competência nem autoriza a interposição de recursos, ressalvadas a oposição de embargos de declaração e a hipótese do § 3º.
</li>
<li>
2º Caberá ao juiz ou ao relator, na decisão que solicitar ou admitir a intervenção, definir os poderes do amicus curiae.
</li>
<li>
3º O amicus curiaepode recorrer da decisão que julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas.
</li>
</ul>
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[4]</a> §2° A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.
<a href="#_ednref5" name="_edn5">[5] </a>EREsp n. 1.366.014/SP, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Corte Especial, julgado em 29/3/2017, DJe de 5/4/2017; AgInt no AREsp n. 1.642.321/RJ, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 7/12/2020, DJe de 11/12/2020; AgInt no REsp n. 1.852.515/SP, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 24/8/2020, DJe de 27/8/2020.
<a href="#_ednref6" name="_edn6">[6] </a>§2°O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no art.538,§8° e no art.529, §3°.

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JOTA

A importância do amicus curiae nos julgamentos do EREsp 1.925.959-SP e do Tema 1230 no STJ, passíveis de overruling

Dois precedentes, duas reviravoltas?

A importância do amicus curiae nos julgamentos do EREsp 1.925.959-SP e do Tema 1230 no STJ, passíveis de overruling