Opinião e Análise

Carolina Helena Coelho Antunes Fontes

Cristiane Landerdahl Albuquerque

Patricia Semensato Cabral

O combustível de aviação no Brasil é um dos mais caros do mundo: cerca de 30% a 40% mais caro do que nos Estados Unidos, com base em dados da Abear em 2020[1]. Esse insumo essencial corresponde a cerca de 30% das despesas operacionais das companhias aéreas brasileiras, patamar muito superior à média internacional, que é de 19%. Custos mais elevados naturalmente se refletem nos preços dos serviços de transporte aéreo de passageiros e cargas para os consumidores brasileiros.
Esse cenário é influenciado pela existência de barreiras relevantes à concorrência no mercado de distribuição de combustíveis de aviação, em especial em relação ao querosene de aviação (QAv), que é o combustível mais utilizado na aviação. No Brasil, o QAv é produzido pela <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/petrobras">Petrobras</a>, que historicamente detém o monopólio do refino e da importação do combustível, além de controlar toda a infraestrutura de transporte do produto dos locais de produção até as instalações de armazenamento.
A distribuição de combustível de aviação consiste na aquisição, armazenamento, transporte, comercialização, controle de qualidade, assistência técnica e abastecimento das aeronaves nos aeroportos[2]. Trata-se de mercado regulado pela Agência Nacional de Aviação Civil (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/anac">Anac</a>), no que diz respeito às atividades realizadas dentro dos aeroportos, e pela Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/anp">ANP</a>), no tocante à produção, distribuição, armazenamento e venda dos combustíveis. Para atuarem no mercado, as distribuidoras precisam acessar o QAv fornecido pela Petrobras; ocupar uma área dentro dos aeroportos escolhidos para fornecer o serviço; e ter acesso à infraestrutura que, em alguns aeroportos, é compartilhada, como o Parque de Abastecimento de Aeronaves (PAA) e dutos subterrâneos usados para levar o combustível do tanque de armazenamento até a aeronave. 
Contudo, as regras para acesso ao combustível e à infraestrutura necessária não têm se mostrado claras o suficiente para incentivar a entrada de novas empresas. Com isso, o mercado brasileiro é concentrado em apenas três empresas, que, em regra, são as incumbentes que se instalaram na construção dos aeroportos ou que tiveram acesso à infraestrutura por meio de aquisições. Esse cenário de relativa incerteza  tende a arrefecer a concorrência entre as empresas instaladas e pode dar espaço para condutas anticompetitivas. 
A necessidade de aprimorar o arcabouço regulatório foi recentemente apontada no "Relatório de Avaliação Concorrencial da OCDE do Brasil”, conduzido pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ocde">OCDE</a>) em cooperação com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cade">Cade</a>)[3]. Após exame detalhado do setor de aviação civil, o estudo traz cinco recomendações no sentido de estabelecer um regime efetivo de livre acesso a infraestruturas de abastecimento de combustíveis de aviação. 
O relatório da OCDE foi publicado em 2022, mas a discussão sobre problemas concorrenciais no segmento é antiga no âmbito do Cade. Em ato de concentração notificado em 2009, que afetou o mercado de distribuição de QAv em sete aeroportos no Brasil, o Conselho já alertou para a necessidade de soluções regulatórias que eliminassem entraves à entrada de novos concorrentes no mercado[4]. 
Em 2014, a questão foi novamente levada ao Conselho, dessa feita em forma de denúncia de conduta anticompetititiva. A distribuidora de combustível de aviação Gran Petro Distribuidora de Combustíveis Ltda., que atuava em pequenos aeroportos, ofereceu representação contra as distribuidoras incumbentes do aeroporto de Guarulhos, BR Distribuidora S.A. (atual Vibra Energia), Raízen Combustíveis S.A. e Air BP Brasil Ltda. e contra a concessionária do Aeroporto de Guarulhos, a GRU Airport. A alegada conduta anticompetitiva seria a de que as distribuidoras que operavam no aeroporto e controlavam a infraestrutura compartilhada do PAA tentavam impedir o ingresso da Gran Petro no mercado de distribuição de QAv[5]. 
Um dos pontos centrais da denúncia é o suposto descumprimento de cláusula do contrato de concessão do aeroporto de Guarulhos, firmado entre União e GRU Airport, que assegura o livre acesso de terceiros que possam atuar na prestação de serviços auxiliares ao transporte aéreo e veda práticas discriminatórias e abusivas. Um dos fatos que materializaria o descumprimento desse dispositivo seria uma cláusula de outro contrato, o de cessão de área dentro do aeroporto, firmado entre as distribuidoras de QAv já instaladas e a administradora do aeroporto. Essa cláusula estabelece que a utilização por terceiros dos dutos subterrâneos usados para o abastecimento de aeronaves dependeria da autorização das distribuidoras incumbentes. 
Após seis anos de instrução e interação tanto com a Anac quanto com a ANP, a Superintendência-Geral do Cade (SG/CADE) sugeriu, em 2020, a condenação das distribuidoras Air BP, BR e Raízen. A SG entendeu que a rede de hidrantes confere vantagem competitiva para as distribuidoras incumbentes, as quais estariam criando dificuldades artificiais para que novos entrantes passassem a utilizar a infraestrutura que elas dominavam.
Já a GRU Airport estaria contribuindo para esse cenário, uma vez que não atuou efetivamente para coibir a conduta abusiva das três empresas supracitadas — pelo contrário, foi signatária do contrato que previa a cláusula anticompetitiva. A SG/Cade fez ainda recomendações de aprimoramento da regulação, como necessidade de maior clareza acerca de direito de propriedade de ativos importantes, e de estabelecer critérios e prazos de acesso ao mercado. O Tribunal do Cade, por maioria, condenou as representadas por infração à ordem econômica.
Verifica-se, portanto, que a regulação existe, mas determinadas lacunas têm gerado questionamentos por parte de agentes econômicos que acabam recorrendo à autoridade concorrencial. Por outro lado, necessário reconhecer que o Cade tem poderes limitados: a autarquia só pode atuar em casos concretos, e evidentemente não pode editar regras amplas que alcancem o mercado como um todo. Esse papel cabe às agências reguladoras envolvidas, que têm atuado no sentido de buscar o aprimoramento das regras atuais e propiciar maior nível de concorrência no mercado.
Nessa linha, registra-se que, em 2018, foi constituído um grupo de trabalho conjunto entre Anac e ANP, a fim de realizar um diagnóstico da situação e propor melhorias. Na oportunidade, técnicos das duas agências concluíram pela necessidade de ampliar a divulgação de informações do setor de combustíveis de aviação, para melhorar a tomada de decisão do mercado e dos órgãos de governo; e de aprofundar os estudos acerca de possíveis modelos, para eventual alteração regulatória[6]. 
Na Anac, a questão teve desdobramentos relevantes. O acesso ao mercado de distribuição de combustíveis de aviação é parte da Agenda Regulatória 2021-2022, o que reflete a prioridade dada ao tema pela agência. Nesse contexto, está em andamento o processo de revisão da Resolução nº 302, de 2014, que estabelece critérios para a alocação e remuneração de áreas aeroportuárias, e da Resolução nº 116, de 2009, que dispõe sobre os serviços auxiliares ao transporte aéreo[7]. Esse processo surge da identificação de problemas como barreiras à entrada de novos concorrentes; dificuldades de implementação das regras de livre acesso; e insegurança jurídica para novos investimentos em expansão da infraestrutura de abastecimento nos aeroportos.
Em Avaliação de Impacto Regulatório, a Anac considerou diversas opções regulatórias, e chegou-se à conclusão de que a melhor alternativa seria o aperfeiçoamento das regras atuais. A proposta submetida a Consulta Pública pela Agência é de que a norma seja aprimorada no sentido de: prever expressamente o livre acesso por meio do compartilhamento da infraestrutura do PAA, além do livre acesso às áreas aeroportuárias; que tanto o operador do aeródromo quanto o operador do PAA tenham o dever de garantir o livre acesso por meio do compartilhamento da infraestrutura do PAA; definir os aeródromos sujeitos às novas regras; e que o operador do aeródromo e o operador do PAA tornem públicas as condições de acesso ao PAA, por meio de “Termo de Condições de Acesso”, documento que deve observar determinados critérios previstos na regulação.
A iniciativa em curso na Anac é de extrema relevância. Como reguladora setorial, a agência tem poderes para editar normas que alcançam o mercado como um todo – e não apenas comandos restritos a casos específicos, como seria típico da atuação antitruste. Ademais, o processo normativo nas agências é bastante estruturado e consolidado, baseando-se em análises criteriosas do eventual impacto das diversas alternativas regulatórias possíveis, o que permite contrabalançar, de forma bastante objetiva, custos e benefícios de cada uma dessas alternativas. Esse processo normativo também é permeado por ampla participação de diversos atores relevantes – operadores aeroportuários, empresas que atuam no mercado de distribuição de combustíveis, especialistas, associações e atores governamentais –, o que permite incorporar à norma perspectivas as mais diversas.
A ANP, por sua vez, também tem considerado a questão em tela em sua Agenda Regulatória 2022-2023[8]. A agência está trabalhando na revisão do Marco Regulatório de Combustível de Aviação, originalmente elaborado em 2006. Reconhece que a existência de possíveis barreiras de entrada no mercado de distribuição de combustíveis de aviação, com sobreposição de competências entre ANP e Anac, é um problema regulatório, sendo que a ação objetiva a modernização dos regulamentos, tendo como objetivo “contribuir para a redução do custo operacional de empresas aéreas brasileiras”. A previsão de publicação da nova regulação é fevereiro de 2023.
A questão ora analisada é um exemplo de que a cooperação e relacionamento próximo entre o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e as agências reguladoras é essencial para garantir que não haja abusos de poder econômico por empresas reguladas e que a regulação possibilite manter o maior nível de concorrência possível, seja entre os fornecedores do serviço, nos casos em que há mais de um, seja nos mercados relacionados e que deles dependem.  
A análise dos casos levados à autoridade concorrencial indica que a medida mais efetiva é de ordem regulatória, posto que o cenário de relativa incerteza afeta o mercado como um todo e requer o estabelecimento de regras de caráter geral. Enquanto as decisões proferidas pelo Cade alcançam apenas as empresas e aeroportos envolvidos em determinado caso concreto, a regulação setorial tem a capacidade de estabelecer regras equânimes de acesso a infraestrutura em todo o território nacional, as quais devem ser observadas por todas as empresas que atuam no Brasil. 
A presença de uma regulação mais efetiva naturalmente não afasta a competência para atuação do Cade em casos concretos. A autoridade concorrencial pode e deve continuar atuando em casos de abuso de poder de mercado por agentes que adotem condutas que tenham por objetivo limitar artificialmente a concorrência, mesmo em mercados regulados. O que ocorre é que, na presença de regras claras e de uma regulação pró-concorrencial, a tendência é que falhas de mercado sejam mitigadas e que seja cada vez menor o espaço para adoção de práticas anticompetitivas por parte dos agentes econômicos.
Assim, entende-se que as iniciativas em andamento no âmbito das agências são muito bem-vindas a fim de reduzir as barreiras à entrada de novos agentes econômicos, ampliando a concorrência – o que tende a reduzir custos de combustíveis de aviação e, consequentemente, os preços dos serviços de transporte aéreo de cargas e passageiros. O Cade, por sua vez, deve continuar vigilante a fim de coibir abusos no exercício de poder de mercado que porventura venham a ocorrer.
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[1] Associação Brasileira das Empresas Aéreas - ABEAR (2021), Panorama 2020: o setor aéreo em dados e análises, <a href="https://www.abear.com.br/wpcontent/uploads/2021/08/Panorama2020-vf.pdf">https://www.abear.com.br/wpcontent/uploads/2021/08/Panorama2020-vf.pdf</a>. Acesso em 6/11/2022.
[2] Conforme a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis – ANP, em <a href="https://www.gov.br/anp/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/ar/agenda-regulatoria-2022-2023-1.pdf">https://www.gov.br/anp/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/ar/agenda-regulatoria-2022-2023-1.pdf</a>. Acesso em 6/11/2022.
[3] Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE (2022). Relatório de Avaliação Concorrencial da OCDE do Brasil. Disponível em https://www.oecd-ilibrary.org/sites/283dc7c1-pt/1/3/2/index.html?itemId=/content/publication/283dc7c1-pt&amp;amp;_csp_=d7a9bff9d004188b80a7959c47ad4d9a&amp;amp;itemIGO=oecd&amp;amp;itemContentType=book. Acesso em 6/11/2022.
[4] Ver voto do Conselheiro-Relator César Mattos, parágrafos 142 a 144, no ato de concentração 08012.004341/2009-73 (Requerentes:Cosanpar Participações S.A. e Shell Brasil Ltda.).
[5] Processo Administrativo 08700.001831/2014-27 (Representante: Gran Petro Distribuidora de Combustíveis Ltda. Representadas:  Air BP Brasil Ltda., BR Distribuidora S.A., Raízen Combustíveis S.A. e GRU Airport).
[6] A Nota Técnica contendo relato dos trabalhos do grupo encontra-se disponível em: https://oeco.org.br/wpcontent/uploads/2022/01/Nota_Tecnica_Conjunta_001_2019_ANP_ANAC-compactado.pdf. Acesso em 6/11/2022.
[7] Consulta Pública nº 9/2022. Documentos disponíveis em <a href="https://www.gov.br/anac/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/consultas-publicas/consultas-publicas-encerradas/consultas-publicas-encerradas-de-2022">https://www.gov.br/anac/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/consultas-publicas/consultas-publicas-encerradas/consultas-publicas-encerradas-de-2022</a>. Acesso em 6/11/2022.
[8] Disponível em: &lt;<a href="https://www.gov.br/anp/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/ar/agenda-regulatoria-2022-2023-1.pdf">https://www.gov.br/anp/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/ar/agenda-regulatoria-2022-2023-1.pdf</a>&gt;. Acesso em 06/11/2022.

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JOTA

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Distribuição de combustíveis de aviação: regulação e concorrência

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