Opinião e Análise

Gisele Reis

Juliana Rodrigues Malafaia

Emicida tem razão: o paciente do habeas corpus [1] que discute o perfilamento racial nas abordagens policiais foi abordado porque tem a pele alvo. A busca pessoal realizada em Francisco Cícero dos Santos Junior teve como único critério a cor de sua pele, numa evidente manifestação de racismo institucional. Essa certeza decorre da própria narrativa policial no auto de prisão em flagrante: “avistou ao longe um indivíduo de cor negra em cena típica de tráfico de drogas”. 
Condenado a 7 anos e 11 meses, em regime fechado, por ter sido flagrado com 1,53 gramas de drogas, a menção à cor de pele negra do suspeito não foi meramente acidental e não há como dizer que a abordagem foi motivada por outros fatores. Relator do HC impetrado anteriormente no STJ [2], o ministro Sebastião Reis, apesar de ter ficado vencido, notou a ilegalidade e votou pela nulidade da busca pessoal, porque a fundada suspeita necessária à medida foi “despertada a partir da cor da pele” do alvo da abordagem.  
Esse é apenas um dos inúmeros casos em que a motivação da abordagem policial se dá pela cor da pele. De acordo com a ONU, o perfilamento racial “é o processo pelo qual as forças policiais fazem uso de generalizações fundadas na raça, cor, descendência, nacionalidade ou etnicidade ao invés de evidências objetivas ou o comportamento de um indivíduo, para sujeitar pessoas a batidas policiais e outros procedimentos”[3].   
Este tipo de conduta viola uma série de princípios e direitos previstos no direito internacional dos direitos humanos, incluindo os princípios de igualdade, de não discriminação, de locomoção e integridade física e psíquica e também o direito à vida. O Brasil, inobstante ter assinado diversos compromissos internacionais para combater o racismo estrutural e institucional, lamentavelmente é reconhecido como um dos países que mais utilizam racial profiling para fundamentar buscas pessoais em pretos, pobres e periféricos – vítimas constantes de abordagens arbitrárias e violentas.   
Não se desconhece que a “fundada suspeita”, prevista no artigo 244, do Código de Processo Penal, é prática discricionária do agente de segurança que autoriza alto grau de subjetividade. No entanto, chama atenção que a discricionariedade não seja exatamente uma decisão arbitrária do agente, mas que recaia majoritariamente contra grupos sem que existam reais indícios de prática criminosa que justifiquem a busca pessoal.  
Além disso, o standard probatório para busca pessoal sem mandado exige que a busca seja baseada em um juízo de probabilidade descrito com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificado pelos indícios e circunstâncias do caso concreto, não autorizando buscas pessoais praticadas como rotina ou praxe de policiamento ostensivo. No entanto, o que se verifica na prática, é que em se tratando de pessoa com pele preta, tudo pode ser considerado atividade suspeita: correr, andar ou ficar parado; estar sozinho, acompanhado ou em grupo; contar dinheiro ou carregar uma sacola podem ser suficientes para despertar a atenção dos policiais. Ser negro no Brasil é sempre elemento de suspeita.   
Além disso, o número de abordagens policiais demonstra o exagero no policiamento ostensivo. Em apenas 0,97% dos casos, a “fundada suspeita” foi confirmada e induziu prisão em flagrante [4]. Ora, se em 99% dos casos a suspeita não era correta ou real, a realidade é então estarrecedora. Ou seja, a cada 100 abordagens, uma resulta em flagrante e 99 delas não havia fundada suspeita. Isso demonstra que, na prática, a abordagem é realizada sem que de fato exista suspeita da prática de ato ilícito.   
Se prestarmos atenção, é possível perceber que o vício das condenações injustas tem sua origem na fase de investigação criminal. Assim, é neste início que protocolos devem incidir para que haja efetiva mudança de prática dos agentes que atuam na segurança pública. O Programa de Combate ao Racismo Institucional (PCRI) afirma que o racismo institucional se manifesta “em normas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano no trabalho”.  
Já o CNJ, ciente da necessidade do judiciário adotar estratégias para barrar esta ilegalidade, também já tratou do assunto e, em seu Manual de Tomada de Decisão na Audiência de Custódia, afirma que “diante de uma pessoa negra, qualquer menção a ‘atitude suspeita’ ou expressões equivalentes no APF [auto de prisão em flagrante] revela perfilamento racial e deve gerar o relaxamento do flagrante”.  
Ostentando a condição de último país do mundo a abolir formalmente a escravização, a discriminação racial vem se metamorfoseando na sociedade brasileira, inclusive nas instituições públicas, apesar do dever de garantir uma sociedade, igualitária, justa e livre de preconceitos. Não à toa, 64% da população carcerária brasileira é de pessoas negras. O ingresso majoritário de afrodescendentes em estabelecimentos penais não significa que perpetram mais crimes. Na verdade, pessoas negras estão mais vulneráveis à vigilância policial, tornando-se eternos suspeitos da prática de crimes.  
Outro dado que nos leva à conclusão de que a população negra é constantemente alvo da violência estatal é trazido em relatório da Rede de Observatórios da Segurança, que destaca o alto número de negros vítimas de violência policial letal em alguns estados do país [5]. Em 2020, por exemplo, nas cidades de Fortaleza, Recife e Salvador todas as pessoas mortas pela polícia eram pessoas negras.  
O tema, que envolve a problemática relação entre raça e segurança pública, deve ser enfrentado a partir do olhar atento das instituições públicas e privadas. Os números por si só demonstram que essa prática está intimamente relacionada com a história de escravização da população afrodescendente no Brasil e teve início quando o primeiro navio negreiro aportou em terras brasileiras.  
Na semana em que se comemora o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial (21 de março), é importante reafirmar que o combate desta chaga cultural de discriminação em massa contra as pessoas negras precisa ser um compromisso real a ser discutido com urgência na sociedade civil e em todas as esferas de poder em especial naquelas que integram o sistema de justiça penal. De fato, o preconceito pela cor da pele não vai mudar da noite para o dia. Desconstruir a criminalização da identidade negra é um processo longo que precisa ser capitaneado com celeridade pelo Estado – que tem o dever de proteger e não discriminar.  
Quanto à análise do habeas corpus, até a interrupção do julgamento, quatro ministros – André Mendonça, Nunes Marques, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli – já votaram no sentido de negar o HC. Embora haja divergência quanto à configuração da filtragem racial no caso concreto, todos os ministros que se manifestaram até o momento foram claros ao dizer que a filtragem pela cor da pele não é legítima.   
Por fim, a presunção de inocência deve incidir também no início da investigação, devendo pautar a atuação dos agentes policiais desde o princípio, tratando os sujeitos como se inocentes fossem – esta é a regra! Citando o advogado americano Bryan Stevenson, “o oposto de pobreza não é riqueza. O oposto de pobreza é justiça”.  
A omissão do Poder Judiciário ao tratar do assunto invariavelmente significará a conivência do Estado com a filtragem racial e a perpetuação da criminalização de grupos historicamente marginalizados. O enfrentamento da discriminação racial institucionalizada exige novas diretrizes acerca do tema sob pena do Judiciário avalizar tais condutas. Não se deve hesitar em tornar nulas as provas que resultem de buscas pessoais motivadas exclusiva ou preferencialmente pelo perfil racial do abordado.  
Reconhecer o histórico de violência contra a população negra que existe também dentro do sistema de justiça penal brasileiro é um grande e necessário passo para o enfrentamento do problema. É urgente romper com os ciclos de violência contra pessoas vulnerabilizadas socialmente e cabe ao Judiciário assumir seu papel para minimizar as abordagens baseadas em raça e cor. 
<hr />
[1] STF, HC 208.240/SP 
[2] STJ, HC 660.930/SP 
[3] <a href="https://brasil.un.org/pt-br/105298-perfilamento-racial-debates-realizados-pela-onu-discutem-recorr%C3%AAncia-de-casos-e-desafios">https://brasil.un.org/pt-br/105298-perfilamento-racial-debates-realizados-pela-onu-discutem-recorr%C3%AAncia-de-casos-e-desafios</a> 
[4] Secretaria de Estado de Segurança Pública do Estado de São Paulo. Estatísticas trimestrais. Disponível em: http://www.ssp.sp.gov.br/Estatistica/Trimestrais.aspx 
[5] <a href="http://observatorioseguranca.com.br/wordpress/wp-content/uploads/2021/12/RELATORIO_REDE-DE-OBS_cor-da-violencia_dez21_final.pdf">http://observatorioseguranca.com.br/wordpress/wp-content/uploads/2021/12/RELATORIO_REDE-DE-OBS_cor-da-violencia_dez21_final.pdf</a>. Acesso em 17 de março de 2023.

racismo

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JOTA

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'Existe pele alva e pele alvo'

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