Opinião e Análise

Bianca Mendes Pereira Richter Boscatto

Quando pesquisamos jurisprudência no Superior Tribunal de Justiça (STJ) a partir do nome do aplicativo mais conhecido para acomodação, “Airbnb”, treze resultados são encontrados.
Dentre essas decisões, todas monocráticas, seis são relacionadas a pedidos de habeas corpus por crimes cometidos através ou a partir do aplicativo, seja através do uso de dados falsos para cadastro como usuário, seja a partir do ingresso a unidades autônomas em condomínios para prática de crimes contra o patrimônio na vizinhança.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Tal dado – facilmente obtido – talvez justifique o dilema jurídico que vem sendo enfrentando por juízes e tribunais por todo o país, tendo alcançado o nosso tribunal superior mais recentemente, relacionado à discussão sobre a (im)possibilidade de proibição da utilização de plataformas de acomodação em condomínios com finalidade residencial. Trata-se do Recurso Especial nº 1.819.075-RS.
Apesar de o caso aparentar ser mais um dentre aqueles que colocam em xeque a relação indivíduo v. coletividade em moradias coletivas<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, há repercussões não tão óbvias neste julgamento – que se avizinha na 4ª Turma do mencionado tribunal – para além da discussão principal da demanda.
Uma decisão bem fundamentada no caso depende de uma premissa fundamental, qual seja, a natureza jurídica que se estabelece entre os sujeitos quando do uso de plataformas de acomodação: se atividade comercial, assemelhada a uma relação de turismo, ou se atividade locatícia, a exemplo do que ocorre nas locações por temporada.
O ministro relator do caso, Luis Felipe Salomão, em seu voto, afirma que tais formas contratuais previstas em nossa legislação não recebem bem o que é praticado através das plataformas de acomodação, mas que a definição é necessária.
Tal afirmação do ministro ganha fundamento quando se apercebe que o aplicativo alberga diversas situações sob o mesmo manto, vez que proprietários que antes locavam seus imóveis migraram para a nova tecnologia, mas também hotéis e pousadas passaram a disponibilizar quartos no aplicativo, assim como pessoas com camas, sofás e quartos vagos visualizaram oportunidades de incremento de renda, levando a um modelo de negócios ainda não totalmente claro, que vai além da mera “economia de compartilhamento”. <a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
Para que o entendimento a ser firmado não corra o risco de decidir sobre situação não exposta nos autos, a delimitação das circunstâncias fáticas originadas no Rio Grande do Sul é fundamental. A divergência, entretanto, persiste a partir do mesmo quadro fático, ou seja, aquele colocado desde o primeiro grau, que envolve a disponibilização de apartamento em condomínio edilício a partir da plataforma de acomodação<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Para o tribunal local, a relação levada ao Poder Judiciário é comercial, e, portanto, proibida em condomínios com finalidade essencialmente residencial. Para o relator no STJ, entretanto, trata-se de locação por temporada e proibir o uso de plataformas de acomodação seria violar o direito individual do proprietário da unidade condominial.
A decisão a ser tomada tem implicações para além do que poderá ou não ser feito em condomínios residenciais, vez que a definição da natureza jurídica estabelecida entre esses sujeitos repercute de forma potencial sobre relações tributárias, ou seja, se estaríamos diante de serviço prestado ou de renda auferida pelo então locador, nos moldes dos contratos de locação.
A falta de regulamentação sobre a temática tributária no que concerne a essas plataformas de acomodação já fez com que a Associação Brasileira de Hotéis ajuizasse Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº 5764) diretamente no Supremo Tribunal Federal (STF) contra o item 9.01 da lista anexa à Lei Complementar 116/2003, que incluiu a totalidade do valor da hospedagem na base de cálculo do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS), alegando que a acomodação não merece tributação, como ocorre nas plataformas virtuais, à exceção dos serviços adicionais que são prestados.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
Ainda, há repercussões processuais relevantes na decisão a ser tomada. Essa afirmação pode soar estranha, considerando que nada foi encontrado sobre o tema até o presente momento, mas o lugar comum dentre os processualistas é que o processo é instrumento para realização do direito material.
A partir de circunstâncias específicas da vida em sociedade, há instrumentos especialmente construídos pelo legislador de forma a potencializar a efetividade da prestação da tutela jurisdicional de direitos.
<blockquote class="jota-article__eye">Assim, caso firmado um contrato de locação, a forma para a sua extinção de forma impositiva é o despejo, como determina a Lei de Locações através de procedimento especial.</blockquote>
Por sua vez, consolidada uma relação de hotelaria, e hesitando o hóspede a realizar o pagamento, há que se falar do penhor legal, ou seja, a retenção de bagagens para garantir o pagamento pela estadia (que pode resultar no procedimento especial de homologação de penhor legal) e, ainda, caso o hóspede resista à saída do bem imóvel, há que se considerar a tutela da posse, através da autotutela, ou seja, o desforço imediato independentemente da atuação do Poder Judiciário e, subsidiariamente, o manejo das ações possessórias, também regidas por procedimento especial.
A definição do instrumento processual adequado depende da relação jurídica identificada entre as partes, considerando que existe fungibilidade dentre as espécies de ações possessórias, mas não entre possessória e despejo.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
Logo, a situação de indefinição sobre a relação jurídica que é configurada através das plataformas de acomodação ainda traz indefinição acerca do instrumento processual adequado, considerando que os procedimentos especiais são configurados pelo legislador a partir da percepção de necessidade de adaptação a uma específica situação de direito material.
Como o direito material ainda não conseguiu se aperceber dessa nova realidade imposta pelo uso de aplicativos de acomodação, que não são regulamentados, o procedimento especial cabível à situação de necessidade de extinção do contrato fixado através do app com a consequente liberação do imóvel está em um limbo jurídico.
Talvez pudesse a instrumentalidade do processo, antes mencionada, resolver qualquer problema imediato a partir do quanto prevê o artigo 327, §2º, do Código de Processo Civil, permitindo o uso do procedimento comum com a aplicação de técnicas diferenciadas.
Entretanto, a interpretação que costuma ser dada aos artigos 1º e 5º da Lei de Locações costuma ser restritiva, exigindo a observância do procedimento especial da ação de despejo quando configurada a relação locatícia.
A pergunta permanece: há relação locatícia nos apps de acomodação? É provável que tenhamos essa resposta em breve a partir do julgamento mencionado no STJ.
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O episódio 52 do podcast Sem Precedentes discute os bastidores e as desconfianças envolvendo o caso Lula no Supremo Tribunal Federal. Ouça:
https://youtu.be/1T8EYyNCQeM
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> A relação entre o aplicativo “AirBnb” e crimes contra o patrimônio já foi demonstrada. Cf. XU, Yu-Hua; KIM, Jin-won; and Pennington-Gray, Lori, "Explore the Spatial Relationship between Airbnb Rental and Crime" (2017). Travel and Tourism Research Association: Advancing Tourism Research Globally. 5. Disponível em: &lt;https://scholarworks.umass.edu/ttra/2017/Grad_Student_Workshop/5&gt;. Acesso em 15 de fevereiro de 2021.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Ser mais um considerando o REsp n. 1.699.022-SP, que decidiu ser prática ilícita a proibição de uso da área comum pelo condômino inadimplente, e a decisão no REsp n. 1.783.076–DF, que permitiu a permanência de animais domésticos nas unidades condominiais.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Sobre a mudança do perfil no app, cf. TAVOLARI, Bianca. AirBnB: do compartilhamento do quarto vazio à exploração por empresas. Disponível em: &lt;http://www.labcidade.fau.usp.br/airbnb-do-compartilhamento-do-quarto-vazio-a-exploracao-por-empresas/&gt;. Acesso em 26 de fevereiro de 2021.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> As decisões para diversos lados pulsam em todo o país. O TJSP, no processo n. 1046233-05.2018.8.26.0100, por exemplo, entendeu que a relação estabelecida entre os sujeitos em aplicativos de acomodação é de hospedagem, violando a finalidade residencial do prédio.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Sobre o tema, cf. STF. Associação Brasileira de Hotéis questiona incidência de ISS sobre preço total das diárias. Disponível em: &lt;http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=356005&gt;. Acesso em 26 de fevereiro de 2021.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Diversos são os julgados nesse sentido. Cf., por exemplo, TJPR, 18ª C. Cível, n. 0010962-32.2013.8.16.0026, Campo Largo, rel. des. Espedito Reis do Amaral, j. em 11.07.2018.

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JOTA

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