Opinião e Análise

Marcela Mattiuzzo

Renata Zuccolo

A discussão sobre o uso de medidas preventivas por autoridades antitruste ao redor do mundo ganhou evidência nos últimos anos, impulsionada pela pressão que essas autoridades vêm enfrentando para encontrar soluções rápidas (ainda que provisórias) para condutas que supostamente possam estar causando prejuízo ao mercado, num ambiente em que as investigações demandam um aprofundamento cada vez maior, ao mesmo tempo em que as atividades e estratégias empresariais têm se tornado cada vez mais interconectadas e dinâmicas.
Recentemente, em <a href="https://www.slideshare.net/OECDCompetitionDivis/interim-measures-in-antitrust-investigations-marcela-mattiuzzo-june-2022-oecd-discussion">estudo apresentado</a> perante a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ocde">OCDE</a>), ficou claro que o Brasil é um dos países em que a discussão sobre a concessão de medidas preventivas em sede de investigações tem sido mais recorrente nos últimos tempos.
A possibilidade de adoção dessas medidas encontra respaldo no artigo 84 da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12529.htm">Lei 12.529/2011</a>, o qual prevê que o superintendente-geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cade">Cade</a>) ou o conselheiro-relator do caso (a depender do estágio da investigação) poderá adotar medida preventiva, quando houver “indício ou fundado receio” de que a conduta empresarial sob investigação possa gerar, no curto prazo, uma lesão ao mercado “irreparável ou de difícil reparação”, que tornaria ineficaz a existência e o resultado da própria investigação.
O estudo referido acima mostrou que, desde 2012, quando a Lei 12.529/2011 entrou em vigor, o Cade já concedeu um número considerável de medidas preventivas: foram 15 medidas concedidas, a maior parte (13) a partir de 2017. Um outro dado interessante é que boa parte dessas medidas vem sendo adotada em casos envolvendo mercados de produtos e/ou serviços que não existiam até alguns anos atrás, e de forma recorrente tem aparecido naquilo que se convencionou denominar “mercados digitais”. Por exemplo, algumas das preventivas mais recentemente concedidas versaram sobre o mercado de food delivery e de plataformas de bem-estar<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Isso confirma a percepção de que a discussão envolvendo a concessão de medidas preventivas vem ganhando maior importância no contexto de setores que estejam passando por um profundo processo de digitalização e inovação. Aliás, essa discussão se insere em um contexto mais amplo de reflexão sobre remédios aplicáveis a mercados digitais como um todo<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Como <a href="https://www.oecd.org/daf/competition/interim-measures-in-antitrust-investigations-2022.pdf">destacou a OCDE</a>, esse processo parece, em certa medida natural, já que são as investigações nesses setores, marcados pela dinamicidade, que emanam um maior receio de que o tempo necessário para a análise sobre eventuais efeitos deletérios de uma conduta possa impedir que uma remediação seja feita a tempo.
Por outro lado, são esses mesmos setores que surgiram (e dependem) dos incentivos econômicos e financeiros que advém da própria liberdade que essas empresas têm de criar e inovar seus produtos e serviços, ou da forma como são ofertados e precificados, formas essas que muitas vezes são objeto de investigação. Dois exemplos internacionais ilustram bem essa dificuldade.
O primeiro diz respeito a uma <a href="https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/ip_20_2077">investigação</a>, iniciada na Itália e depois levada também para a Comissão Europeia, sobre as práticas da Amazon no que diz respeito ao uso de informações de vendedores de sua plataforma para o desenvolvimento de produtos próprios. Assumindo que a Amazon realmente faz uso dos dados de seus vendedores para desenvolver produtos que com eles concorrerão – algo que até o momento não parece estar totalmente claro – ainda permanece uma questão relevante: ao que tudo indica, o resultado concreto desse processo é que os bens comercializados pela empresa são efetivamente mais baratos. Ou seja, impor uma limitação à prática terá o efeito concreto de aumentar o custo para o consumidor final, objetivo contraditório ao que é pregado pelo antitruste tradicional.
O segundo trata de uma <a href="https://cand.uscourts.gov/cases-e-filing/cases-of-interest/epic-games-inc-v-apple-inc/">ação movida nos EUA</a> contra a Apple pela empresa de jogos eletrônicos Epic Games. Alega-se que a fabricante do iPhone estaria violando a legislação antitruste ao forçar que todos os desenvolvedores de aplicativos utilizem apenas e tão somente a App Store para suas compras e, assim, tenham de pagar comissões (de até 30%) à empresa. Ocorre que o modelo adotado pela Apple existe há muitos anos e, segundo ela, é tanto responsável pela confiabilidade de seus produtos, quanto uma forma de remunerá-la pelo desenvolvimento do sistema operacional iOS. É relevante notar que a juíza responsável pelo caso concedeu uma medida preventiva contra a Apple, determinando que a empresa não poderá impedir que os desenvolvedores ofereçam formas de pagamento alternativas a seus usuários.
É aqui que reside o maior trade off dessa discussão. Como bem pontuado pela OCDE, o uso “balanceado” de medidas preventivas pode ajudar a prevenir prejuízos irreparáveis ao mercado. Por outro lado, seu uso desbalanceado pode ter impactos relevantes sobre a inovação – em particular, gerar um desincentivo para que empresas invistam em soluções diferenciadas e, no limite, até mesmo arrefecer a entrada de novos agentes econômicos no mercado.
Mas essa parece ser a sina dos debates sobre mercados digitais: quanto mais complexa, dinâmica e interconectada for a atividade empresarial sob investigação, maior será o desafio das autoridades em intervir. No caso específico das medidas preventivas, a dificuldade reside não só em determinar o cabimento ou não da medida, mas também qual será o seu alcance.
No Cade, o já citado caso Gympass exemplifica essa dificuldade. A decisão inicial da autoridade, exarada pela Superintendência-Geral, foi no sentido de proibir que qualquer novo parceiro comercial da plataforma tivesse cláusulas de exclusividade em seus contratos e que, para os parceiros antigos, fossem invalidadas as cláusulas de paridade (também conhecidas como MFN), por meio das quais os parceiros eram obrigados a equiparar quaisquer condições mais benéficas que negociassem com outras empresas e ofertá-las também à Gympass. O Tribunal Administrativo, no entanto, entendeu que esse escopo não era suficiente, revisou a medida preventiva e decidiu enrijecê-la ainda mais, eliminando por completo as exclusividades, mesmo para parceiros comerciais antigos.
Um outro ponto de destaque desse debate, no caso da jurisdição brasileira, é como a discussão tem sido absorvida pelo Judiciário. Na medida em que as medidas preventivas são decisões emanadas de uma autoridade administrativa, ainda que provisórias, elas podem ser levadas de imediato à apreciação do Judiciário, o que de fato vem ocorrendo. O estudo referido acima mostra que, dos casos judicializados pelas partes ao longo dos últimos cinco anos, todos, sem exceção, foram revertidos em sede judicial (em outras palavras, as medidas concedidas acabaram sendo revogadas). Isso revela mais uma camada de complexidade, pois essa constatação pode, em certa medida, colocar em xeque o uso da ferramenta pelo Cade ou, no mínimo, gerar dúvidas sobre sua efetividade – afinal é inquestionável que a eficácia da preventiva será mínima se uma decisão judicial rapidamente reverter o posicionamento da autoridade administrativa. Além disso, como consequência dessa situação, a autarquia poderia começar a balizar de maneira distinta os esforços que empregará na concessão de medidas preventivas.
O que parece incontestável até o momento é que, de fato, intervenções antitruste, em especial nos mercados digitais, são complexas e demandam uma análise que não é trivial nem rápida. Não por outra razão muito se tem discutido sobre a necessidade de atuação conjunta de autoridades e de uso de ferramentas diversas para endereçar os possíveis problemas que se verifiquem nesses setores, que vão muito além do direito concorrencial.
Em outras jurisdições, como a União Europeia, essa constatação levou a debates regulatórios de natureza ampla e edição de regulamentos novos, ousados e demandantes – o Digital Markets Act e o Digital Services Act – que certamente impactarão de forma definitiva o mercado. Por aqui, o movimento tem sido mais comedido na frente legislativa, mas as medidas preventivas são um exemplo concreto de intervenção que o Cade tem efetivamente aplicado (a depender, como sempre, das condições específicas do caso em análise) e que ele, Cade, sinaliza como efetiva, ainda que repleta de desafios.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Vide <a href="https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yOCJ9vWg91OyBFjKhqOPfAlxse1Xr_t_z6Ut7QkHkbFWy1QyTXBgSq6jEeE2suP3u9vuf6vhDmcjGqPzqb3EThF">https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yOCJ9vWg91OyBFjKhqOPfAlxse1Xr_t_z6Ut7QkHkbFWy1QyTXBgSq6jEeE2suP3u9vuf6vhDmcjGqPzqb3EThF</a> e <a href="https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?HJ7F4wnIPj2Y8B7Bj80h1lskjh7ohC8yMfhLoDBLddao4CLluheitNDM1fOgdMXqkCesuVxdtc2g9s-YxRgzQ5fNyBFaThd3HqZ_E1sjdqnjC_Y8XxyjXUswHCn-rfMz">https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?HJ7F4wnIPj2Y8B7Bj80h1lskjh7ohC8yMfhLoDBLddao4CLluheitNDM1fOgdMXqkCesuVxdtc2g9s-YxRgzQ5fNyBFaThd3HqZ_E1sjdqnjC_Y8XxyjXUswHCn-rfMz</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Para uma reflexão muito mais ampla e aprofundada sobre o tema, ver <a href="https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3704763">https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3704763</a>

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JOTA

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