Opinião e Análise

Roberta Negrão Costa Wachholz

Em outubro de 2022, a<a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-1.140-de-27-de-outubro-de-2022-440205331"> Medida Provisória 1.140</a>, que institui o Programa de Prevenção e Combate ao Assédio Sexual no âmbito dos sistemas de ensino federal, estadual, municipal e distrital, conceituou assédio sexual como comportamento indesejado de caráter sexual, demonstrado de maneira verbal ou não verbal, com ou sem contato físico, com o objetivo de perturbar ou constranger, atentar contra a dignidade ou criar ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador. Tal conceito resulta de uma construção doutrinária e jurisprudencial construída ao longo dos anos.  
A legislação brasileira, desde 2001, por meio de alteração promovida pela <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10224.htm">Lei 10.224/2001</a> no Código Penal Brasileiro, tipifica como crime o assédio sexual a conduta de constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função (artigo 216-A). Em 2018, por meio de alteração promovida pela <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13718.htm">Lei 13.718/2018</a>, foi tipificada a importunação sexual como a conduta de praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro (artigo 215-A).  
Quando praticado por agente público no exercício de atividade administrativa constitui infração funcional grave, devendo ser apurada pela autoridade administrativa competente. Embora não haja previsão expressa do assédio sexual como infração administrativa, a conduta configura afronta a diversos deveres funcionais estabelecidos em leis, tais como: afronta aos deveres funcionais de moralidade administrativa (artigo 116, inciso IX da Lei 8.112/1990), de tratar com urbanidade as pessoas (artigo 116, inciso XI da Lei 8.112/1990), de proibição de valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública (artigo 117, inciso IX), configurando hipótese de improbidade administrativa (artigo 132, inciso IV) e incontinência pública e conduta escandalosa (artigo 132, inciso V).  
Por isso, seria fácil concluir que a prática de assédio sexual por servidor público, por se tratar de conduta incompatível com a moralidade administrativa, poderia ser enquadrada como ato de improbidade administrativa, com base na <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm">Lei 8.429/92</a> (Lei de Improbidade Administrativa). Bem, assim o era até as profundas alterações promovidas pela <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14230.htm">Lei 14.230/2021</a>.   
Antes da referida alteração legislativa, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já havia se manifestado no sentido de que o assédio sexual é ato de improbidade administrativa porque viola os princípios da administração pública e retrata abuso de poder, devendo ser enquadrado no artigo 11 da Lei 8.429/1992 (REsp 1286466/RS e REsp 1255120/SC). Tal artigo previa os atos de improbidade administrativa por ofensa a princípios da administração pública e continha um rol exemplificativo de condutas violadoras. Os casos de assédio sexual poderiam ser enquadrados em seu inciso I:“praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência”. 
 A Lei 14.230/2021 promoveu severas mudanças na Lei 8.429/92. Passou a considerar ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das condutas elencadas no rol taxativo do artigo 11. Dentre outras alterações, a referida lei excluiu o inciso I do referido artigo, locus de enquadramento da conduta de assédio sexual como ato de improbidade administrativa.  
A partir das alterações promovidas pela Lei 14.230/21 na Lei de Improbidade Administrativa, ainda seria possível enquadrar a conduta de assédio sexual praticado por servidor público federal como improbidade administrativa?   
Um primeiro caminho possível é admitir o enquadramento de condutas que configuram crime, tais como os crimes contra a liberdade sexual: importunação sexual (artigo 215-A, CP), assédio sexual (artigo 261-A, CP), estupro (artigo 213, CP) como ato de improbidade administrativa. Isso porque foram incluídos no artigo 11 o parágrafo 2º que prevê a sua aplicação aos atos de improbidade tipificados na própria lei de improbidade e em leis especiais e a quaisquer outros tipos especiais de improbidade instituídos por lei. Com base nesse parágrafo, poderia ser admitida uma abertura da norma, para além das hipóteses previstas no rol do artigo 11, de modo a possibilitar a subsunção de condutas tipificadas como crime a atos de improbidade administrativa. Nesses casos, ações de improbidade administrativa poderiam ser ajuizadas nos casos em que as condutas de assédio sexual sejam tipificadas como crime, mas outras condutas não criminosas e não previstas no rol do artigo 11 não poderiam ser enquadradas como ato de improbidade administrativa.   
Outro caminho possível para condutas de assédio sexual praticadas contra mulheres é a declaração de invalidade normativa com base na sua inconvencionalidade. O Brasil é signatário da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, Convenção de Belém do Pará (1994), promulgada pelo Decreto nº 1.973, de 1° de agosto de 1996. A convenção prevê o dever da República Federativa do Brasil, no âmbito internacional, de prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher (artigo 7°, item “b”) e de incorporar na legislação interna conjuntos de dispositivos para atingir esse fim (artigo 7°, item “c”). 
A alteração promovida pela Lei 14.230/2021 claramente reduziu instrumentos de proteção da mulher. Por se tratar de tratado internacional com norma de proteção a direitos humanos aprovado por lei ordinária, que detém patamar de norma superlegal, não poderia ter sido alterado por lei ordinária, sendo por isso, inconvencional[1]. Dessa forma, ações de improbidade administrativa poderiam ser ajuizadas nos casos em que as condutas de assédio sexual sejam praticados contra mulheres.   
Por fim, outro caminho possível é a declaração de inconstitucionalidade da norma. Nesse caso, temos que o sistema de responsabilização pela prática de atos de improbidade administrativa deve se compatibilizar com a Constituição. As alterações promovidas no artigo 11 promovem um descompasso entre a norma e a realidade regulada. Isso porque a causa nuclear da norma reside no cometimento de condutas dolosas, por agente público, que atentam contra os princípios da administração pública, violando os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade (critério legal). Há clara afronta à razoabilidade e à proporcionalidade impedir a sujeição de outras condutas que se enquadram no caput do artigo 11, abarcadas pelo mesmo interesse público, somente porque não elencadas nos seus incisos, e que podem ser inclusive crimes. 
O mesmo interesse público que permite a aplicação de sanção à primeira também se aplica a essas outras condutas. Por isso, à luz da Constituição da República de 1988, a alteração legislativa promovida no artigo 11 da Lei de Improbidade Administrativa é inconstitucional, por violar o postulado da razoabilidade e também o da proporcionalidade, especialmente sob o viés da proibição de proteção deficiente ou insuficiente (ADI 5874/2019), tendo em vista que tal alteração legislativa deixa de estabelecer normas e procedimentos adequados à proteção dos valores constitucionais de proteção da dignidade da pessoa humana em sua vertente de proteção da liberdade sexual.   
Atualmente há duas ADIs (ADI 7236/2022 e ADI 7237/2022) que questionam a constitucionalidade das alterações promovidas pela Lei 14.230/2021 e, dentre elas, aquelas promovidas no artigo 11.
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[1] Para mais, ver DIAS, Jefferson Aparecido; ROCCO, Antonio Rangel Nelson; GALVÃO, Thiago Murilo Nóbrega. Do assédio sexual como forma de improbidade administrativa: um controle de convencionalidade da “nova” lei de improbidade.

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JOTA

Caminhos possíveis diante das mudanças promovidas pela Lei 14.230/2021

Assédio sexual e improbidade administrativa

Embora não haja previsão do assédio sexual como infração administrativa, a conduta configura afronta a diversos deveres funcionais