Opinião e Análise

Ana Beatriz Robalinho

Nathália Mariel F. de S. Pereira

Na última sexta-feira (22), o debate acerca do aborto foi dominado por mulheres. No plenário (virtual) do STF, o único voto proferido até o momento na <a href="https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5144865">ADPF 442</a> foi o da <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/rosa-weber-vota-para-que-aborto-deixe-de-ser-crime-no-brasil-e-julgamento-e-interrompido-22092023">ministra Rosa Weber</a>, que em 129 páginas fundamentou extensamente a declaração de não recepção parcial dos art. 124 e 126 do Código Penal, de modo a excluir do seu âmbito de incidência a interrupção da gestação realizada nas primeiras 12 semanas. Na tribuna (virtual), 23 das 26 sustentações orais no julgamento foram realizadas por mulheres<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
A situação é excepcional. Vozes femininas não dominam os espaços de poder no Brasil – e enfrentam graves obstáculos em aumentar seu alcance. No Supremo, há meses se discute a <a href="https://www.jota.info/executivo/lula-diz-que-genero-e-cor-nao-serao-criterios-para-o-stf-ja-passei-por-tudo-isso-25092023">anunciada intenção do presidente da República</a> de indicar um homem para a vaga da ministra Rosa Weber, que deixa o tribunal nesta semana, reduzindo a sua já diminuta representatividade feminina<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
No Judiciário como um todo, domina as rodas de conversa a iniciativa, capitaneada pela ministra Rosa e aprovada no CNJ, de criação de política afirmativa para aumentar a presença das mulheres nos tribunais, dado o notório desequilíbrio entre a base e a cúpula das magistraturas<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. E no Congresso, é longa a luta para dar efetividade às cotas de 30% reservadas para as candidaturas femininas; em julgamento recente, o Supremo precisou reafirmar a constitucionalidade das punições em casos de fraude às cotas, comuns em todas as esferas eleitorais<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
O tema do silenciamento feminino também está presente dentro da ADPF 442, no qual todas as faces do poder público se manifestaram contra o provimento dos pedidos. Chama particular atenção nas manifestações da Advocacia-Geral da União, do Congresso Nacional e da Procuradoria-Geral da República a tônica comum: a afirmação de que o tema sequer poderia estar sendo discutido pelo Supremo Tribunal Federal.
A AGU de Michel Temer, ainda em 2017, manifestou-se no sentido de que sendo o aborto um desacordo moral razoável, não poderia ser “subtraído... do Poder competente que representa toda a sociedade, qual seja, o Poder Legislativo”. Aduziu, ademais, que manter a decisão acerca do tema na esfera do Legislativo respeitaria “um dos pilares da democracia moderna”, o pluralismo político.
O Senado informou o tribunal que “eventual alteração [dos dispositivos do Código Penal que criminalizam o aborto] está sendo discutida pelas Casas do Congresso Nacional por intermédio dos parlamentares eleitos pelo povo, com a participação da sociedade, por meio de consultas e audiências públicas”, e a Câmara dos Deputados advertiu que, se declarasse a não recepção dos dispositivos, estaria o tribunal “adentrando a competência legislativa do Congresso Nacional... violando-se a separação de poderes e atentando-se contra a soberania popular, manifestada por seus representantes eleitos”.
A Procuradoria-Geral da República, em parecer assinado por Augusto Aras, opinou que “ante as diversas opções igualmente legítimas sob o ângulo político-jurídico, conclui-se que o foro constitucional e democraticamente legítimo para definir o marco temporal a partir do qual a interrupção da gravidez merece ser tipificada como crime há de ser o Congresso Nacional”.
A discussão acerca do papel da jurisdição constitucional na solução de casos difíceis é rica e variada. Muitos são os autores e escolas de pensamento que se dedicam a refletir sobre o papel mais adequado para o Judiciário no âmbito das escolhas políticas. Em todas as manifestações registradas pelo poder público, é possível identificar uma preocupação especial com a democracia.
Essa preocupação, alinhada ao fato de que as mesmas instituições já se manifestaram, em diversas oportunidades, a favor da intervenção do Poder Judiciário através do controle de constitucionalidade, levam à conclusão de que não se trata de uma postura minimalista, que prega a autocontenção judicial a priori<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, ou mesmo uma alusão ao constitucionalismo democrático, que defende uma inversão da marcha da judicialização da política uma vez que não há qualquer garantia de que o judiciário produzirá decisões melhores que o Legislativo<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
A eleição da democracia como limitadora da atividade jurisdicional é típica da teoria procedimentalista, que possui diversas vertentes, mas tem como característica principal a ideia de que a interferência judicial somente se justifica para garantir as regras do jogo democrático. Assim, os aspectos essenciais ao próprio funcionamento da democracia, como o bom funcionamento das instituições e das eleições, e a liberdade de expressão, deveriam ser protegidos pela intervenção do Poder Judiciário, enquanto outras questões políticas deveriam ser deixadas a cargo do Poder Legislativo<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
O problema com a aplicação dessa lógica no caso concreto está na desconsideração das premissas em que ela se baseia. Uma dessas premissas é justamente a representatividade. Desde que o procedimentalismo foi extraído da nota de rodapé n. 4 do caso Carolene Products<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> pela doutrina constitucional americana, já se afirmava que a regra geral não se aplicaria às minorias “discretas e insulares” e “incapazes de formar alianças políticas efetivas”<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>.
Em um país no qual, sendo mais de 50% da população, no Congresso Nacional as mulheres mal chegam a 18%<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>, nos tribunais não passam de 23%<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>, e no Supremo Tribunal Federal, a partir desta semana, não chegarão a 10%, é impossível ignorar a duvidosa qualidade da representatividade nos espaços de poder. Se, por um lado, é preciso reconhecer que essa deficiência na paridade de gênero afeta todas as instituições, e não apenas o Congresso, por outro há que se ponderar que a natureza das instituições é distinta, bem como a sua relação com a representatividade.
Assim, o conceito de representação democrática pode funcionar de forma distinta no âmbito de diferentes instituições. Para o Legislativo, a atuação representativa é um fator de legitimação prévia formal; para o Judiciário, “um fator de avaliação das cortes quanto à transparência institucional, porosidade às demandas da sociedade civil e abertura a diversos de pontos de vista”<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>.
A escolha de uma fundamentação de defesa da democracia justifica-se pela vontade prévia de não debater o assunto diante de seu caráter imposto como moral. O corpo de mulheres é uma fronteira democrática, é um território em disputa. Território já conquistado pelos anos de dominação. Em questões minoritárias é sempre possível identificar que o argumento da democracia e seus instrumentos notoriamente majoritários são colocados como necessários para validação de direitos que não estão sujeitos à negociação, e que pertencem a uma minoria, numérica ou carente de representatividade nos espaços de poder.
O que não é possível é conceber de argumentos em prol da democracia como ferramenta de silenciamento de grupos minoritários; é invocar pluralismo político para legitimar a esmagadora desigualdade dos espaços de poder; é retirar do judiciário a sua função de guardião da Constituição, como bem pontuou a ministra Rosa Weber em seu voto.
A discussão jurídica e política acerca do aborto no Brasil está longe de terminar. Um problema essencialmente feminino, sendo debatido em espaços de poder nos quais as mulheres tem menos voz. Já existe um lapso de representatividade inclusive do grupo de mulheres, uma vez que a questão do aborto como matéria de saúde pública alcança essencialmente uma população de mulheres pretas e pobres, que se sujeitam a necessidade de instrumentos seguros e formalizados para o procedimento de interrupção e que não sejam usados como mais uma forma de encarceramento e criminalização.
É tempo de descartamos, com a rapidez, simplicidade e elegância com que o fez a ministra Rosa, argumentos que buscam silenciar as vozes femininas antes mesmo do debate começar, colocando na mesa quais os sujeitos mais atingidos pela discussão e quais os valores que uma verdadeira democracia substancial pretende fazer prevalecer.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Supremo Tribunal Federal. ADPF 442/DF, Relatora Min. Rosa Weber.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> CASTRO, Grasielle. Lula diz que gênero e cor não serão critérios para o STF: ‘Já passei por tudo isso’. JOTA, 25/09/2023.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> VALE, Humberto. CNJ aprova regra para promover equidade de gênero nos tribunais. JOTA, 26/09/2023.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Supremo Tribunal Federal. ADI 6338/DF, Relatora Min. Rosa Weber, j. em 03/04/2023.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> SUNSTEIN, Cass. One Case at a Time: Judicial Minimalism on the Supreme Court. Cambridge: Harvard University Press, 2001.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> TUSHNET, Mark. Taking the Constitution Away from the Courts. Princeton: Princeton University Press, 2000; WALDRON, Jeremy, The Core of the Case against Judicial Review, The Yale Law Journal, v. 115, n. 6, p. 1346–1406, 2006.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> ELY, John Hart, Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review. Cambridge: Harvard University Press, 1980.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> United States v. Carolene Products Co., 304 U.S. 144 (1938).
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> ELY, John Hart, The Wages of Crying Wolf: A Comment on Roe v. Wade, The Yale Law Journal, v. 82, n. 5, p. 920–949, 1973.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> SIQUEIRA, Carol. Bancada feminina aumenta 18,2% e tem duas representantes trans. Agência Câmara de Notícias, 03/10/2022.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> VALE, Humberto. CNJ aprova regra para promover equidade de gênero nos tribunais. JOTA, 26/09/2023.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> PEREIRA, Jane Reis Gonçalves; OLIVEIRA, Renan Medeiros de. Hércules, Hermes e a pequena sereia: Uma reflexão sobre esterótipos de gênero das mulheres nos tribunais e (i)legitimidade democrática do Poder Judiciário. Revista Brasileira de Políticas Públicas, vol. 08, n° 02, 2018.

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JOTA

Representatividade dentro e fora do STF é tema implícito da ADPF 442

As vozes femininas

Representatividade dentro e fora do STF é tema implícito da ADPF 442, cujo único voto até o momento é o de Rosa Weber