Opinião e Análise

Lílian M. Cintra de Melo

A pandemia Covid-19 expôs diversas fragilidades das sociedades e das economias atuais. Vivemos ao mesmo tempo uma crise sanitária, devastação ambiental, ameaças à democracia, consumo excessivo, aumento da concentração de renda, consolidação dos monopólios, entre outros.
Os efeitos desse colapso são visíveis: a produtividade em queda, os salários estagnados, a inovação estanque, a escassez de recursos e o aumento das desigualdades que impactam desproporcionalmente os mais pobres, as mulheres<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> e as minorias, bem como resultam em diferentes formas de discriminação estrutural, erguendo mais um obstáculo para o avanço econômico e social desses grupos.
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Nesse contexto, a promoção do desenvolvimento sustentável – sob os prismas econômico, social e ambiental – é, sem dúvidas, o maior desafio do nosso tempo.  Com essa finalidade, os Estados-Membros da Organização das Nações Unidas (ONU) adotaram os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) e “Agenda 2030” um plano de ação composto por 17 objetivos e 169 metas associadas<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Enquanto a regulação do Estado em prol da proteção dos direitos humanos é a opção basilar, atores privados passaram a ter protagonismo e podem igualmente oferecer engajamento para um mundo mais inclusivo e sustentável. Ressalta-se, nesse sentido, que a Agenda 2030 prevê a importância de as empresas adotarem práticas empresariais mais sustentáveis<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Além disso, os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU celebram 10 anos. Elaborados pelo Professor da Universidade de Harvard, John Ruggie, os Princípios Orientadores estabelecem diretrizes para a responsabilização de empresas em matéria de direitos humanos<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Seguindo essa mesma tendência, têm-se também os aclamados valores Ambientais, Sociais e de Governança, referidos pelo mercado como “ESG” (sigla em inglês).
Dessa forma, a sustentabilidade nas dimensões econômica, social e ambiental está presente na agenda de organizações internacionais, estados e, cada vez mais, de empresas. Dado que a concorrência e o direito da concorrência são variáveis cruciais para a ação privada, em particular, para as ações das empresas, cabe ao antitruste decidir se e como as empresas devem promover os direitos humanos?
No contexto do debate normativo, prevalece a dissidência entre, de um lado, aqueles que argumentam que essa questão se refere à redefinição dos objetivos do antitruste – e a consequente necessidade de superação do paradigma tradicional focado no bem-estar do consumidor (consumer welfare) – e do outro lado, aqueles que defendem que julgamentos valorativos não devem ser feitos pela autoridade antitruste<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Cabe, nesse ponto, fazer uma pequena digressão sobre a suposta neutralidade valorativa do antitruste. Como bem define Calixto Salomão Filho, o direito é um corpo de regras organizativas da sociedade, que sofre constante influência e determinação pelas relações de poder e interesse na sociedade<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. Logo, ainda que o objetivo do antitruste restrinja-se ao bem-estar do consumidor, mensurado em termos de eficiência de mercado, não há que se falar em ausência valorativa.
Os patronos da “neutralidade” do antitruste creem que os custos sociais e econômicos, rotulados como "não econômicos", devem ser matéria de regulação especializada (seja ambiental, trabalhista ou outras). No entanto, como afirma Michelle Meagher, os primeiros modelos antitruste indicam que, se deixado livremente, o poder econômico seria facilmente capaz de escapar ou subverter as outras regulamentações. Nesse sentido, cabe ao antitruste o papel de preencher as lacunas deixadas por outras regulações, capturando precisamente o poder econômico residual que não pode ser confrontado de outra forma.
No entanto, a disputa sobre a necessidade de redefinição dos objetivos do antitruste perde proeminência quando outros dispositivos legais que tratam da questão da sustentabilidade dentro do arcabouço jurídico do país. No caso do Brasil, a proteção dos direitos humanos e a promoção da livre-concorrência estão previstas na Constituição Federal (nos arts. 5º e 170, inciso IV). Logo, com fundamento na aplicação sistemática do texto constitucional, o antitruste pode ser uma ferramenta para o desenvolvimento sustentável.
A pergunta subsequente é como a aplicação do direito da concorrência no controle de condutas e estrutura se relaciona com os direitos humanos? Há duas respostas: o antitruste pode atuar na promoção dos direitos humanos, bem como na prevenção ou na proibição de violações; e direito da concorrência pode limitar as opções de promoção dos direitos humanos disponíveis para os agentes de mercado, caso haja prejuízos à concorrência<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
<blockquote class="jota-article__eye">Primeiro, o antitruste, ainda que na sua aplicação tradicional, pode atuar na promoção dos direitos humanos, pois muitas vezes há sobreposição entre esses direitos, a eficiência (produtiva e dinâmica) e bem-estar do consumidor.</blockquote>
É possível considerar a sustentabilidade como parâmetros de qualidade (não-preço) e inovação tanto no controle de estruturas como de condutas.
Para compreensão da segunda hipótese, é fundamental o trabalho de Elinor Ostrom, ganhadora do Prêmio Nobel de Economia em 1993, sobre a gestão sustentável dos bens comuns (commons goods)<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>. Ostrom demostrou que, no ambiente de escassez dos bens comuns, a competição irrestrita por maximizadores de lucro racionais leva a resultados desastrosos. Na realidade, a cooperação pode maximizar os resultados. Dessa forma, se autorizado pelo antitruste, há oportunidades para concorrentes trabalharem juntos, especialmente em questões ambientais.
A interface entre o direito da concorrência e a sustentabilidade foi discutida recentemente na Roundtable da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>. A União Europeia também debateu o tema em conferências<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a> e, embora a promoção da sustentabilidade seja uma prioridade, até agora, a Comissão Europeia tem se mostrado cética e defende que os padrões de sustentabilidade devem ser definidos pela legislação e aplicados pelos reguladores<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>.
Por outro lado, a Autoridade Antitruste Holandesa (ACM) abriu consulta pública em 2020 referente à proposta de Guia sobre Acordos de Sustentabilidade para permitir a cooperação entre rivais quando os benefícios para a sociedade como um todo superarem as desvantagens de qualquer restrição à livre concorrência para mercados relevantes especificamente considerados<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>. A Proposta da ACM fornece a orientação mais completa sobre a aplicação dos princípios antitruste tradicionais para benefícios de sustentabilidade em acordos de cooperação horizontal.
Nos Estados Unidos a discussão ganhou notoriedade na investigação dos efeitos antitruste do acordo entre BMW, Ford, Honda, Volkswagen e o Estado da Califórnia para reduzir voluntariamente as emissões de gases poluentes<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>. Previamente, em 2009, a Federal Trade Commission (FTC) impôs remédios estruturais e comportamentais no caso Panasonic/Sanyo, pois entendeu que a tecnologia utilizada no mercado de baterias era um fator importante na transição para energia renovável<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a>.
No Brasil, até o momento, não há clareza sobre como a autoridade encaminhará o tema. Como ensina Calixto Salomão Filho, para transformar a dura realidade brasileira, não devemos focar em melhorar ou modificar as leis antitruste, é preciso antes torná-las efetivas<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftn15" name="_ftnref15">[15]</a>. Para tanto, cada vez mais, a comunidade antitruste deve se engajar na discussão sobre o papel que o direito da concorrência pode desempenhar na criação de uma sociedade mais igualitária e sustentável.
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<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Para uma discussão sobre antitruste e gênero, ver ATHAYDE, Amanda; PICCOLI, Mariana. Gênero e Antitruste: O fenômeno poliédrico da discriminação por gênero e seus impactos na defesa da concorrência Portal Jota, 25 fevereiro 2021. Disponível em: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/elas-no-jota/genero-antitruste-25022021">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/elas-no-jota/genero-antitruste-25022021</a>.
<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> O termo “direitos humanos” é usado de forma abrangente, incluindo o desenvolvimento sustentável e outras questões atinentes ao rol de direitos que compõem a Carta Internacional dos Direitos Humanos. Ou seja, o termo inclui questões relacionadas à igualdade de gênero e raça, luta contra a pobreza, proteção do meio ambiente, combate ao trabalho escravo e infantil, entre outros.
<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a>  A Agenda 2030 e os ODS combinam os Objetivos do Milênio e os processos resultantes da Rio+20. O Objetivo 12.6 da Agenda 2030 encoraja as empresas, especialmente as multinacionais, a adotar práticas de negócios sustentáveis e a integrar informações de sustentabilidade em seus relatórios. Disponível em: <a href="http://www.agenda2030.org.br/sobre/">http://www.agenda2030.org.br/sobre/</a>.
<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Os Princípios Orientadores introduziram os “parâmetros para proteger, respeitar e reparar”. No Brasil, o tema passou a ser tratado pelas Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos (Decreto n. 9.571/2018, regulamentado pela Resolução n. 5/2020).
<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> OCDE. Sustainability &amp; Competition Law and Policy – Background Notes by Julian Nowag, 2020. Disponível em: <a href="https://www.oecd.org/officialdocuments/publicdisplaydocumentpdf/?cote=DAF/COMP(2020)3&amp;docLanguage=En">https://www.oecd.org/officialdocuments/publicdisplaydocumentpdf/?cote=DAF/COMP(2020)3&amp;docLanguage=En</a>.
<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> SALOMÃO FILHO, Calixto. Teoria Crítico-Estruturalista do Direito Comercial. São Paulo: Marcial  Pons, 2015, p. 123.
<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> OCDE. Sustainability &amp; Competition Law and Policy – Background Notes by Julian Nowag. 
<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> OSTROM, Elinor. Governing the Commons: The Evolution of Institutions for Collective Action, Cambridge University Press, 1990. Disponível em: <a href="https://wtf.tw/ref/ostrom_1990.pdf">https://wtf.tw/ref/ostrom_1990.pdf</a>.
<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> OCDE. Sustainability &amp; Competition Roundtable. Disponível em: <a href="https://www.oecd.org/daf/competition/sustainability-and-competition.htm">https://www.oecd.org/daf/competition/sustainability-and-competition.htm</a>. Ainda, em 2016, a OCDE promoveu o fórum de discussão “Promoting competition, protecting human right” (no original, em inglês). Disponível em: <a href="https://www.oecd.org/daf/competition/promoting-competition-protecting-human-rights.htm">https://www.oecd.org/daf/competition/promoting-competition-protecting-human-rights.htm</a>.
<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> UNIÃO EUROPEIA. Conference on Sustainability and Competition Policy: Bridging two Worlds to Enable a Fairer Economy, 2019. Disponível em: <a href="https://cor.europa.eu/en/events/Pages/cor-eesc-sustainability-competition-policy.aspx">https://cor.europa.eu/en/events/Pages/cor-eesc-sustainability-competition-policy.aspx</a>. Conference on Competition Policy and the Green Deal, 2021. Disponível em: <a href="https://ec.europa.eu/competition/information/green_deal/index_en.html">https://ec.europa.eu/competition/information/green_deal/index_en.html</a>.
<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> V. MODRALL, Jay.  Sustainability and Antitrust – A Course Change for the EU? Kluwer Competition Law Blog. Disponível em: <a href="http://competitionlawblog.kluwercompetitionlaw.com/2021/02/15/sustainability-and-antitrust-a-course-change-for-the-eu/">http://competitionlawblog.kluwercompetitionlaw.com/2021/02/15/sustainability-and-antitrust-a-course-change-for-the-eu/</a>
<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> ACM.  Guidelines ‘Sustainability Agreements’, Authority for Consumers and Markets. Disponível em: <a href="https://www.acm.nl/sites/default/files/documents/2020-07/sustainability-agreements%5b1%5d.pdf">https://www.acm.nl/sites/default/files/documents/2020-07/sustainability-agreements%5b1%5d.pdf</a>.
<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> <a href="https://www.reuters.com/article/us-autos-emissions-trump/u-s-justice-department-issues-subpoenas-to-automakers-in-california-emissions-probe-idUSKBN1XH2WX">https://www.reuters.com/article/us-autos-emissions-trump/u-s-justice-department-issues-subpoenas-to-automakers-in-california-emissions-probe-idUSKBN1XH2WX</a>
<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> <a href="https://www.ftc.gov/news-events/press-releases/2009/11/ftc-order-sets-conditions-panasonics-acquisition-sanyo">https://www.ftc.gov/news-events/press-releases/2009/11/ftc-order-sets-conditions-panasonics-acquisition-sanyo</a>
<a href="applewebdata://E2822B9A-E846-4BAE-852A-1D551E7F702B#_ftnref15" name="_ftn15">[15]</a> Calixto Salomão Filho. A luta contra monopólios e cartéis: fracassos e perspectivas. Conjur, 2020. Disponível em: <a href="https://www.conjur.com.br/2020-nov-09/defesa-concorrencia-luta-monopolios-carteis-fracassos-perspectivas">https://www.conjur.com.br/2020-nov-09/defesa-concorrencia-luta-monopolios-carteis-fracassos-perspectivas</a>.

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A defesa da concorrência na promoção dos direitos humanos

Antitruste e sustentabilidade

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