Acordo de leniência é o acordo celebrado entre uma autoridade pública investigadora e um agente privado (seja este uma pessoa jurídica ou física), por meio do qual a autoridade concede a extinção ou o abrandamento da penalidade aplicável ao agente, recebendo em troca provas e a colaboração material e processual ao longo das investigações.
O programa de leniência, por sua vez, consiste no arcabouço jurídico que provê incentivos da autoridade pública investigadora para que os agentes privados a procurem para a negociação dos referidos acordos de leniência.[1]

No Brasil, o tema dos acordos de leniência ganhou proeminência sobretudo a partir de 2013 e 2014, no contexto de grandes investigações realizadas pelo Ministério Público e pela Polícia Federal. Em que pese isso, o primeiro programa de leniência instituído na legislação brasileira foi o antitruste, voltado à investigação de cartéis pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), nos termos da Lei nº 10.149/2000, que alterou a Lei nº 8.884/94 ao inserir os artigos 35-B e C, atualmente previsto nos artigos 86 e 87 da Lei nº 12.529/11.
A partir dessa experiência exitosa do programa de leniência Antitruste, em 2013, no contexto de pressão dos movimentos de combate à corrupção e das manifestações populares, foram aprovadas duas leis que incrementaram sobremaneira o instrumental público de investigações no Brasil. A primeira delas é a Lei da Empresa Limpa, convencionalmente chamada de Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013), que instituiu o programa de leniência Anticorrupção, nos termos do seu artigo 16. Na prática, na esfera federal, a celebração destes acordos de leniência tem envolvido a Controladoria-Geral da União (CGU) e a Advocacia-Geral da União (AGU), bem como suscitado discussões a respeito da forma de compatibilização desse instrumento com as atividades do Ministério Público (MP) e do Tribunal de Contas da União (TCU).
A segunda lei aprovada em 2013, por sua vez, foi a Lei sobre Crimes de Organização Criminosa (Lei nº 12.850/2013), que delineou, em termos precisos e particularizados, um verdadeiro sistema de colaboração premiada. Esta legislação, em que pese não ser o substrato jurídico para a celebração dos acordos de leniência, pavimentou o caminho para a celebração concomitante de acordos de colaboração premiada das pessoas físicas e dos acordos de leniência pelas pessoas jurídicas com o MP, fundamentados na reinterpretação de dispositivos legais, dentre eles o art. 129, I, c/c art. 37, caput, da Constituição Federal; o art. 37 da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida); o art. 26 da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo); o art. 3º, §§2º e 3º, do Código de Processo Civil (CPC) e o art. 840 do Código Civil (CC).
Em 2017, diante dos resultados positivos obtidos pelas autoridades públicas investigadoras a partir da celebração de acordos de leniência, foi promulgada a Lei sobre Crimes no Sistema Financeiro Nacional (SFN), Lei nº 13.506/2017, que instituiu o programa de leniência no âmbito do Banco Central (BC) e da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), nos termos dos arts. 30 a 32. Buscou-se, com isso, modernizar o instrumental investigativo dessas duas autoridades, que estava defasado diante das modernas práticas ilícitas dos agentes no mercado financeiro.
Mais recentemente, em 2019, foi promulgada a Lei nº 13.964/19 (convencionalmente chamada de “pacote anticrime”), que alterou o Código de Processo Penal (CPP) para acrescer o art. 28-A, referente ao acordo de não persecução penal com o Ministério Público, em caso de infração penal praticada sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos. As condições para sua celebração estão previstas nos incisos deste dispositivo legal, sendo necessário que o investigado tenha confessado formal e circunstancialmente a prática da infração penal. Ademais, esse pacote anticrime alterou o §1º do art. 17 da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.829/1992) e permitiu expressamente a celebração de acordos de não persecução cível. Essa alteração confirma, portanto, a linha de argumentação que já sustentava a possibilidade de celebração dos acordos de leniência sobre fatos objeto da Lei de Improbidade Administrativa.
Diante dessa multiplicidade de programas de leniência e de instrumentos assemelhados no Brasil, nota-se, em diversas ocasiões, uma notória confusão sobre os contornos jurídicos de cada um dos institutos, especialmente nos casos em que mais de uma autoridade é competente para celebrar acordos. Resta necessário, portanto, estudar as especificidades teóricas e práticas de cada um destes programas de leniência, apresentar seus elementos unificadores, dignos de uma teoria geral, bem como distingui-los dos acordos que se assemelham, mas que não são acordos de leniência.
Dentre os acordos assemelhados que não constituem acordos de leniência, entendo que se enquadram os seguintes: acordos de colaboração premiada (ACP), acordos de não persecução cível e penal (ANPC e ANPP), Termo de Compromisso de Cessação (TCC) Antitruste no Cade, Termo de Compromisso (TC) no SFN e Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). A principal diferença é que os acordos de leniência são, em essência, acordos instrumento de investigação, ao passo que os acordos assemelhados são pactos de ajustamento de conduta ou de não persecução, sem aportes adicionais que necessariamente auxiliem as autoridades públicas em uma investigação atual ou futura. Ademais, os Acordos de Leniência abarcam, via de regra, pessoas jurídicas (e em alguns casos também pessoas físicas), ao passo que os acordos assemelhados são voltados, em alguns casos apenas para pessoas físicas, e em outros casos a ambos indivíduos e empresas.
Feita essa distinção, é forçoso reconhecer que existem pelo menos oito justificativas para a instituição de um programa de leniência no Brasil: (1) a detecção de práticas ilícitas; (2) a obtenção de provas; (3) a eficiência, a efetividade e a alavancagem investigativa; (4) a cessação da infração; (5) a sanção dos demais infratores; (6) a reparação e o ressarcimento dos danos; (7) a dissuasão de práticas ilícitas futuras; e (8) o aprimoramento dos processos administrativos públicos.
Ademais, há que se ter em mente que são necessários três pilares para a estruturação de um programa de leniência efetivo: (1) alto risco de detecção da prática; (2) receio de severas punições; e (3) transparência, previsibilidade e segurança jurídica.
Assim, para além de enxergar e compreender os contornos jurídicos de um dos acordos de leniência da sopa de letrinhas brasileira (Cade, BC, CVM, CGU, AGU, TCU, MP), é necessário ter uma visão mais ampla, do que são os requisitos essenciais e os não essenciais dos acordos de leniência, a partir da experiência brasileira. Todas as legislações brasileiras referentes a acordos de leniência exigem os seguintes requisitos essenciais: cessação da conduta; confissão; cooperação com a investigação e ao longo de todo o processo; e resultado da cooperação. Por outro lado, apenas algumas legislações exigem o que se chama, portanto, de requisitos não essenciais: primazia; no momento da propositura, ausência de provas suficientes contra o proponente; programa de compliance/integridade; auditoria externa/monitor externo; e recolhimento de verbas pecuniárias. Trata-se de comparativo relevante para a adequada compreensão dos contornos jurídicos de cada programa de leniência no Brasil, sob pena de se exigir (ou de se deixar de exigir) o cumprimento de um requisito sem fundamentação legal, ou mesmo sem ter em mente o conjunto de requisitos que fazem sentido ao combate daquela prática em específico objeto do acordo.
Reconhece-se, porém, que a investigação de algumas dessas práticas ilícitas pode atrair a competência e/ou atribuição de mais de uma autoridade pública, de modo que é necessário avançar ainda sobre as formas possíveis de cooperação interinstitucional nos acordos de leniência no Brasil. Neste ponto, entendo que a cooperação interinstitucional entre as autoridades públicas brasileiras é imprescindível para o combate de ilícitos tipicamente organizados e sofisticados. Há caminhos possíveis para a necessária cooperação intra e interinstitucional, tanto no momento da negociação e da celebração dos acordos quanto no momento do sancionamento, por meio do que denomino ser um “balcão coordenado”.
De 2019, quando da publicação da 1ª edição do "Manual dos acordos de leniência no Brasil", até hoje, em 2021, muitos acontecimentos permearam o tema e mereciam maior aprofundamento. É por essa razão que lanço a 2ª edição do livro[2], visando a endereçar temas ainda inexplorados na doutrina brasileira, de modo sistemático e aprofundado.
No capítulo da Teoria Geral dos acordos de leniência, foram incluídos temas, por exemplo, como uma oitava justificativa aos programas de leniência, para além das sete anteriormente apresentadas: o aprimoramento dos processos administrativos públicos. A justificativa de recolhimento de verbas pecuniárias foi mais bem detalhada, para abranger a diferenciação entre reparação de danos/ressarcimento e multa/contribuição pecuniária. A justificativa da dissuasão de práticas futuras também foi complementada com suas inter-relações com os programas de compliance/integridade e com a exigência de submissão a auditoria externa/monitor externo (Monitor Independente de Compliance), cuja missão difere do Comitê Especial de Investigação (Special Committee). Neste ponto, também foi apontada intersecção com o direito securitário, na medida em que se apresentou a possibilidade (ou não) de os acordos de leniência e os assemelhados serem cobertos por seguros Directors and Officers (seguros D&O). A intersecção entre compliance empresarial e acordos de leniência também foi aportada, quando do estudo da justificativa da dissuasão de práticas ilícitas futuras. Também foi acrescida a discussão sobre penas não pecuniárias que podem ser aplicadas pelas autoridades públicas, como instrumento de fortalecimento do pilar de receio de severas punições para a estruturação de um programa de leniência efetivo. Ainda, os requisitos para a celebração dos acordos de leniência foram classificados entre essenciais e não essenciais, tendo em vista as exigências contidas nas respectivas legislações no Brasil. Ademais, foi apresentada a proposta de um “balcão coordenado” para a cooperação interinstitucional, tanto no momento da negociação e celebração dos acordos de leniência quanto no momento do sancionamento dos atos decorrentes deste instrumento, em contraponto à ideia de “balcão único”.
No capítulo 2 sobre o acordo de leniência antitruste, foram realizadas atualizações referentes às modificações trazidas na atualização do Guia de Leniência, aos documentos modelo de negociação e às possíveis repercussões da versão preliminar do Guia de Dosimetria de Multas de Cartel. Também foram apresentados dados empíricos sobre a evolução destes acordos no Cade (incluindo a sua “taxa de sucesso” e a “taxa de cumprimento”). Ainda, foram apresentados debates referentes às ações de reparação de dano, seja no âmbito de projetos de lei, seja no âmbito acadêmico (como “umbrela effects”, “pass on defense”, arbitragem e responsabilização dos administradores com fundamento na Lei das Sociedades Anônimas). Ademais, foi realizado esforço didático para apresentar o passo a passo das fases de negociação dos Termos de Compromisso de Cessação no Cade.
Já no capítulo sobre o acordo de leniência no SFN, foram incluídas discussões atuais nesta segunda edição, por exemplo, as possíveis razões pelas quais ainda não foi celebrado nenhum acordo no BC e na CVM. Ademais, foram detalhadas as modificações trazidas pela Instrução CVM nº 613/2019. Sobre os termos de compromisso, foi realizado esforço didático para apresentar o passo a passo das fases de negociação, bem como apresentados os dados mais recentes sobre os já assinados no BC e na CVM.
Por sua vez, no capítulo sobre o acordo de leniência anticorrupção, foram incluídas novas discussões nesta segunda edição, por exemplo, a alteração realizada no §1º do art. 17 da Lei de Improbidade Administrativa, Lei nº 8.829/1992, que deixa expressa a possibilidade de negociar acordos de leniência com relação a fatos de improbidade administrativa. Ainda, foi explicada de modo didático a forma que CGU e AGU têm implementado para garantir possíveis benefícios cíveis e administrativos do acordo de leniência anticorrupção também para as pessoas físicas que adiram ao acordo de leniência da pessoa jurídica. Ademais, foi pormenorizadamente detalhado o Acordo de Cooperação Técnica STF/CGU/AGU/MJ/TCU, em 6 de agosto de 2020, bem como sua repercussão negativa junto ao MPF. Também foi apresentada a discussão sobre a cláusula de garantia nos acordos de leniência, para evitar discussões em casos que resultem em recuperação judicial ou falência das empresas signatárias. Foi mencionada, também, a controvérsia sobre a natureza jurídica desses acordos.
E finalmente, sobre o acordo de leniência do MP, foram incluídos nessa segunda edição do livro temas como, por exemplo, as alterações trazidas pela Lei nº 13.655/2018 na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), em específico no art. 26, que incluiu genericamente o permissivo de celebração de acordo entre a Administração Pública e particular para, entre outros, eliminar “situação contenciosa”. Foi incluída também a possível exigência de que, para celebrar o acordo, seja requisito se submeter à auditoria externa/monitor externo (Monitor Independente de Compliance). Ainda, foi explicada de modo didático a forma que o MP tem implementado para garantir possíveis benefícios cíveis e criminais do acordo de leniência também para as pessoas físicas que adiram ao acordo de leniência da pessoa jurídica, para além dos acordos de colaboração premiada possíveis. Ademais, foi apresentada a nova Orientação do MPF sobre a subscrição ou adesão de pessoas físicas aos acordos de leniência, bem como sobre a adesão de outros membros do MPF, diante do princípio constitucional da indivisibilidade.
Espera-se, com esta segunda edição do livro, portanto, apresentar de forma ainda mais estruturada, didática e detalhada, a teoria e a prática dos programas de leniência no Brasil, bem como contribuir para uma Teoria Geral dos acordos de leniência, fazendo da sopa de letrinhas um caldo bastante saboroso, com resultados positivos para a sociedade brasileira.
[1] Athayde, Amanda. Manual dos Acordos de Leniência no Brasil: teoria e prática — CADE, BC, CVM, CGU, AGU, TCU, MP / Amanda Athayde. 2. ed. – Belo Horizonte: Fórum, 2021. 659p.
[2] Lançamento em Brasília programado para 1/12/2021, na livraria Leitura, do Pátio Brasil, entre 18h30 e 21h30.