Opinião e Análise

Anamaria Prates Barroso

Gabriela Guimarães Peixoto

Flávia Cardoso Campos Guth

No dia 07 de outubro de 2020, em sessão administrativa, o Supremo Tribunal Federal aprovou, por unanimidade, nova emenda regimental retornando para a competência do plenário inquéritos e ações penais que haviam sido afetadas às duas turmas do STF, em 2014, pela Emenda Regimental n. 49 de 03/06/2014. Naquele mesmo ano, quando da alteração da competência para julgamento do plenário para as turmas recursais, a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados propôs a ADI 5.175, tendo o Supremo Tribunal Federal reafirmado a competência das turmas, ao entendimento de que:
a) a competência do STF é estabelecida pelo plenário, pelas turmas, pelo Presidente e por meio de cada Ministro; b) a alteração para as turmas se deu com o objetivo de conciliar o princípio da duração razoável do processo, na medida em que o julgamento das ações originárias, pelo plenário, exige mais tempo daquela Corte, e as turmas estariam mais habilitadas para julgar os processos de índole subjetiva por serem mais ágeis e céleres na prestação jurisdicional individualizada, não havendo violação à garantia do juiz natural; c) quanto à garantia do duplo grau de jurisdição, o princípio é excepcionado nas hipóteses de foro por prerrogativa de função<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
A referida ADI, julgada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal em junho de 2020, em sentido diametralmente oposto ao que ficou decidido na sessão administrativa do último dia 7 revela, por si só, a instabilidade da Corte Suprema sobre suas próprias decisões.
<ul class="jota-article__internal-links">
<li>+JOTA: <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">Tudo sobre Supremo Tribunal Federal</a></li>
</ul>
Por outro lado, não há dúvidas de que o julgamento, pelo plenário, dos inquéritos e ações penais para as autoridades com prerrogativa de função, retira-os da denominada “loteria jurídica” decorrente de posicionamentos contrastantes das duas turmas do STF.
Desse modo e em razão da sabida divergência de entendimento entre os órgãos colegiados daquela Corte, especialmente em matéria criminal (em que a Primeira Turma é, numericamente, mais punitivista, enquanto a Segunda Turma é mais garantista), a análise das ações penais originárias pelo plenário do Supremo Tribunal Federal pode gerar uniformidade de posicionamento em matérias sensíveis como as tratadas nas referidas ações originárias.
A emenda proposta pelo Presidente, Min. Luiz Fux, se justificaria em razão da redução do número de inquéritos e ações penais originárias em trâmite no STF, causada pela restrição da prerrogativa de foro firmada a partir da questão de ordem na AP 937. Assim, defendeu não haver mais razões para se manter a emenda regimental 49 de 2014, que havia sido editada em outro contexto, em reação ao tempo despendido pelo Plenário no julgamento da APN 470, o “Mensalão”.
Essa mudança ganhou inegável espaço nos debates jurídicos e na imprensa, especialmente diante do atual cenário de críticas à Operação Lava Jato e da especulação gerada pela alteração da composição da Segunda Turma, com a aposentadoria do Min. Celso de Mello e nomeação do Des. Kassio Nunes, tido por garantista.
É bem verdade que nos últimos tempos, em razão das ausências justificadas do Min. Celso de Mello, a Segunda Turma decidiu casos importantes com empate de votação e aplicação do in dubio pro reo (cuja validade em matéria penal, para além dos habeas corpus, foi objeto de questão de ordem suscitada ao Plenário pelo Min. Edson Fachin), o que evidencia o peso do voto do Ministro que, em breve, integrará a Corte.
<blockquote class="jota-article__eye">A emenda regimental afirma, expressamente, que seu conteúdo se aplica aos processos em curso, gerando incertezas, dúvidas e debates, especialmente quanto aos casos pendentes de conclusão de julgamento.</blockquote>
Nesse contexto, sem qualquer pretensão de exaurir tema tão complexo, é preciso olhar a mudança desde a perspectiva da garantia do juiz natural. A garantia do juiz natural tem assento constitucional (art. 5º, XXXVII e LIIII) e na Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8.1), assegurando o direito de o acusado ser julgado pelo juiz predeterminado por lei<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, o que significa que a competência tem de ser prevista em lei e determinada no momento do fato. Veda-se, assim, a alteração da regra de competência e, portanto, do órgão jurisdicional competente, ex post factum. 
Justamente pela exigência constitucional de predeterminação do juiz natural, tem-se na garantia regra de direito intertemporal que impede a retroatividade de normas que alterem regras de competência, sobrepondo-se à regra geral e infraconstitucional de eficácia imediata das leis processuais (art. 2º do CPP).
Não se desconhece que a garantia do juiz natural predeterminado tem sido flexibilizada pela jurisprudência, mormente por argumentos de eficiência na administração da justiça, desde que a nova regra de competência tenha caráter geral e abstrato, o que, em tese, afastaria possíveis casuísmos, resguardando a independência e imparcialidade do julgador, que é a ratio do juiz natural.
A ideia de que a lei geral e abstrata é suficiente para resguardar a garantia do juiz natural e afastar possíveis casuísmos é alvo de respeitáveis críticas<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, até mesmo pela dificuldade de se aferir o risco em concreto de que a norma posta tenha sido editada para atingir determinados fins processuais. A rigor, tal risco só pode ser verdadeiramente evitado a partir da estrita observância à garantia de predeterminação do juiz natural.
<blockquote class="jota-article__eye">No caso da mudança em discussão, em que pese os seus bons propósitos e legítimas justificativas, diante do contexto em que foi editada, não há como se desconsiderar o risco de que a emenda regimental tenha tido, por pano de fundo, a tentativa de impedir uma atuação mais garantista da Segunda Turma.</blockquote>
Por outro lado, também as justificativas apresentadas para mudança regimental  merecem reflexão. Não há dúvidas de que a restrição do foro por prerrogativa de função, realizada em 2018, reduziu o número de inquéritos e ações penais originárias no STF. Todavia, trata-se de jurisprudência muito recente, que ainda não teve o tempo suficiente para gerar dados numéricos seguros. Além disso, essa redução pode esconder uma cifra significativa de casos que foram remetidos a outras instâncias e que podem ser devolvidos à Suprema Corte.
Isso porque, a tese firmada na questão de ordem na AP 937 se deu sob as balizas específicas do caso concreto e deixou em aberto algumas questões, como, por exemplo, casos de reeleição de parlamentar, de eleição para outro cargo ou de crimes praticados antes do mandato atual, mas voltados à sua eleição. A propósito, tratando da última hipótese, recentemente o Min. Gilmar Mendes determinou a devolução ao STF (Rcl 42389) de investigação contra o Senador José Serra quanto ao suposto crime de “caixa 2” nas eleições de 2014.
Também não parece certo considerar que a pauta do Plenário não se encontra sobrecarregada. Basta conferir a pauta temática do STF para se observar a quantidade de processos liberados para julgamento, que aguardam inclusão em pauta, ou acompanhar uma sessão do Plenário para se concluir que muitos dos casos pautados sequer são julgados.
Ademais, o argumento quantitativo de redução do número de casos penais também não impressiona haja vista a complexidade do julgamento das ações penais originárias, o que envolve um amplo debate sobre fatos e provas, para além das teses jurídicas. Desse modo, não era raro observar um único caso ocupar muitas sessões das turmas, exigindo ainda mais tempo de um Plenário composto por onze Ministros.
Além disso, embora se tenha afirmado que a mudança regimental de 2014 teria considerado apenas a realidade do mensalão e o elevado número de casos penais originários, não é demais lembrar que, à época, também se considerou que o Plenário deveria ser resguardado para deliberação de teses jurídicas, considerada a vocação do STF enquanto Corte Constitucional, que, portanto, se contrapõe ao julgamento de inquéritos e ações penais originárias, com toda sua complexidade e ampla análise de questões fáticas e probatórias.
Por fim, tem-se o problema do duplo grau de jurisdição, que embora não seja integralmente resolvido com o julgamento das turmas, era minimizado por meio da possibilidade de recorrer ao Plenário, ainda que nos estritos limites dos embargos infringentes.
Nada obstante as reflexões críticas acima tecidas, é evidente que o julgamento pelo Plenário do STF tem o condão de se tornar bastante benéfico, inclusive trazendo mais segurança e estabilidade aos precedentes, diante inúmeras divergências entre as turmas, acabando com a chamada “justiça lotérica”. De todo modo, não é demais afirmar que isso também poderia ser alcançado com outros instrumentos de uniformização da jurisprudência, sem que fosse preciso transferir a competência ao Plenário.
Em conclusão, percebe-se que a alteração do juízo predeterminado, em tão curto tempo, nesse contexto e com base em números que ainda não muito claros, é fator de insegurança jurídica e exige, de todos os operadores do direito, maiores reflexões.
<hr />
O voto de despedida do ministro Celso de Mello no STF e a mudança de regimento interno da Corte envolvendo julgamentos da Lava Jato são os assuntos discutidos no episódio 38 do podcast Sem Precedentes. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=LEilO-XHtko&amp;feature=emb_title
------------------------------
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> STF, ADI 5175, Relator(a): Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 22/06/2020, Processo Eletrônico DJe-196, Divulg 05-08-2020, Public 06-08-2020.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> A propósito: “A aceitação de leis retroativas sobre competência, sob o fundamento de se tratarem de leis gerais e abstratas, “gera um casuísmo intolerável” que, a pretexto de maior eficácia da organização judiciária, deixa uma porta aberta para vulneração do juiz natural. Ao mais, tal posicionamento também não explica porque uma disciplina geral, ex post factum, não pode concretizar um arbítrio em prejuízo do cidadão”. (BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014)

stf-noite

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Alteração do juízo predeterminado, em tão curto tempo, é fator de insegurança jurídica e exige maiores reflexões

Possíveis implicações do retorno das ações penais e inquéritos ao plenário do STF

Retorno das ações penais e inquéritos ao plenário do STF: alteração, em tão curto tempo, é fator de insegurança jurídica e exige maiores reflexões.