Opinião e Análise

Juliana Rodrigues Malafaia

Gisele Reis

Na última semana, o tema aborto foi destaque nos principais meios de comunicação do Brasil e do mundo. O assunto, de fato, levanta polêmicas de toda ordem e, além de envolver a liberdade da mulher sobre o próprio corpo, está sempre atrelado às discussões legais, políticas, sociais, morais e religiosas. A colisão entre direitos fundamentais divide opiniões e está longe de um consenso.
No Brasil, a <a href="https://theintercept.com/2022/06/20/video-juiza-sc-menina-11-anos-estupro-aborto/">reportagem do site The Intercept</a> publicada no último dia 20 escancarou deficiências gravíssimas do sistema de justiça, a revelar a completa falta de acolhimento pelo órgão que deveria ser a salvaguarda dos direitos das vítimas do crime de estupro – o Poder Judiciário. O caso fica ainda mais repugnante por se tratar de uma criança de apenas 11 anos (estuprada aos 10), que tão nova já acumula tantos traumas que carregará pela vida.
Os vídeos tornaram públicos a ausência de imparcialidade da magistrada que atuou no caso e também trouxe à tona a importância de os atores do sistema de justiça estarem atentamente vinculados às questões de gênero reveladas no episódio.
O objeto de análise deste texto cinge-se ao direito ao aborto legal (artigo 128, II, Código Penal), com destaque para os possíveis episódios de violência institucional experimentados pela criança de 10 anos, e a busca por soluções que aspirem novas esperanças para o acolhimento das vítimas de crimes contra a dignidade sexual, por atos de agentes estatais de modo geral, seja qual for a decisão delas.
A legislação penal brasileira tipifica como crime de estupro de vulnerável a conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso com menores de 14 anos, com ou sem consentimento (artigo 217-A, Código Penal). E nesse contexto a relação, ainda que consensual e entre crianças (10 e 13 anos), não afasta a configuração do ato infracional semelhante a estupro. Quando o ilícito resulta em gravidez, a lei também prevê a possibilidade de a vítima realizar o aborto legal (artigo 128, II), sem qualquer objeção quanto ao momento gestacional ou necessidade de comunicação policial ou autorização judicial.
Esse lamentável caso é um exemplo clássico que traz à tona o despreparo do sistema e fomenta a conhecida revitimização – ou vitimização secundária – da vítima, que tem seus direitos violados e sofre nova violência causada agora não pelo agressor, mas pelo Estado, no papel de agentes públicos ou profissionais de saúde no momento do atendimento de vítimas de violência sexual, extremamente fragilizadas.
É preciso coibir esse tipo de violência institucional que tem sido praticada. Os casos de vitimização secundária levam a vítima a se sentir não como sujeito de direitos, mas como verdadeiro objeto nas mãos do Estado, potencializando o sofrimento, o trauma e a estigmatização da vítima, sobretudo ao se considerar crimes sexuais. Não são raros os episódios em que não há acolhimento nem escuta qualificada, mas uma sucessão de questionamentos das condições em que o crime ocorreu, pedidos para que a vítima preste depoimento repetidas vezes e, no limite, o cerceamento do pleno exercício de seus direitos enquanto vítima e sujeito de direitos que é, em especial num momento de extrema vulnerabilidade.
A revelação do The Intercept quanto à <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/saude/ministerio-da-saude-sugere-que-medicos-cometeriam-crime-por-aborto-apos-22-semanas-29062022">negativa do hospital para realizar o aborto permitido na lei</a>, sob a justificativa de que a gestação já ultrapassava a 20ª semana, somada à postura assumida pela juíza e pela promotora que atuavam na condução do caso, apontando para a vítima que prosseguir com a gestação e entregar o bebê para posterior adoção seria a melhor solução, além de determinar a manutenção da menor numa casa de abrigo, revelam episódios de violação de direitos e exposição da vítima a ainda mais sofrimentos. A frase “você suportaria ficar mais um pouquinho?” dificilmente será esquecida.
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<li>+JOTA: <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/saude/ministerio-da-saude-sugere-que-medicos-cometeriam-crime-por-aborto-apos-22-semanas-29062022">Ministério da Saúde sugere que médicos cometeriam crime por aborto após 22 semanas</a></li>
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A legislação brasileira não obriga que nenhuma vítima de estupro mantenha a gestação, sob qualquer hipótese. Trata-se de medida de saúde pública, e de resguardo à integridade física e psicológica da vítima, que tem o direito de escolher parte das consequências decorrentes da violência — que é manter ou não a gravidez, livre de qualquer forma de discriminação.
Toda gestação de crianças menores de 14 anos é considerada, por lei, produto de violência sexual. Não é admissível gerar na vítima amparada pela legislação para interromper a gravidez um sentimento de "culpa", de ter "matado o bebê". Esse tipo de discurso é mais uma faceta da conhecida culpabilização da vítima, especialmente em crimes contra mulheres.
De toda forma, isso em nada afasta que o juiz, juntamente com uma equipe sistêmica e especializada, informe à vítima que existe a opção pela entrega do recém-nascido para a adoção de forma legal, consciente, sigilosa e segura — a exemplo do que aconteceu com a atriz Klara Castanho, de 21 anos, que revelou ter sido vítima de estupro. Mas a decisão final deve ser exclusivamente da vítima, seja por foro íntimo, de fundo moral, motivo financeiro ou qualquer outra ordem.
Ao Estado cabe garantir a tais vítimas conhecimento sobre os seus direitos, atendimento especializado mediante acolhimento por profissionais devidamente preparados e capazes de fornecer escuta qualificada e conferir à vítima o status de prioridade que merece.
Que fique claro: existe aborto legal no Brasil! O Código Penal prevê há mais de 80 anos que, em caso de estupro, o aborto é legalizado em qualquer momento da gestação. Nesta hipótese a interrupção da gravidez é um direito, deve ser feita de forma segura e nunca irá caracterizar o crime de homicídio, que só existe quando se está diante de vida extrauterina.
No caso de Santa Catarina acrescenta-se ainda que a maternidade infantil é incompatível com o princípio da proteção integral preconizado na Constituição e no Estatuto da Criança e Adolescente. Segundo informações prestadas por profissionais da área da saúde, uma criança não tem estrutura física nem psicológica para gerar outra.
Em nome do moralismo, da religião, do machismo e do pânico moral em torno do aborto, um extenso conjunto de direitos humanos da criança que gera outra criança foram violados num Estado que se diz laico, algo inadmissível.
A divulgação do caso pela imprensa já provocou movimentações importantes, sobretudo para a vítima e sua família, mas também para pavimentar os caminhos das inevitáveis futuras vítimas do machismo e da misoginia estrutural que assolam a sociedade brasileira, e que merecem um tratamento digno e alinhado aos direitos humanos.
A desembargadora do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tjsc">TJSC</a>) <a href="https://theintercept.com/notas/menina-de-sc-desembargadora-saida-de-abrigo/">autorizou o retorno da menina para sua casa</a> após mais de 40 dias em um abrigo e a menina vítima do estupro finalmente conseguiu exercer seu direito e <a href="https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/menina-de-11-anos-interrompe-gravidez-em-sc-apos-recomendacao-do-mpf/">interrompeu a gestação</a>, após recomendação do Ministério Público Federal ao Hospital Universitário, que agora será <a href="http://www.mpf.mp.br/sc/sala-de-imprensa/noticias-sc/mpf-recomenda-que-hu-garanta-aborto-legal-praticado-por-medico-independente-da-idade-e-peso-do-feto-e-sem-a-necessidade-de-decisao-judicial">investigado por ter negado a realização</a> do procedimento. As Corregedorias do Tribunal de Justiça e do Ministério Público abriram investigação para apurar a <a href="https://www.metropoles.com/brasil/tjsc-investigara-juiza-que-induziu-crianca-a-desistir-de-aborto">conduta da magistrada</a> e da <a href="https://www.nsctotal.com.br/colunistas/raphael-faraco/corregedoria-mp-apura-conduta-promotora-caso-menina-impedida-abortar-sc">promotora de Justiça</a> que atuaram no caso.
O Judiciário deve romper com culturas de discriminação e preconceitos, zelar pelos direitos das vítimas, e não submetê-las a novas e outras violências por seus próprios atos, desnecessários, repetitivos, invasivos, levando-as a reviver a situação inicial de violência e outras tantas também geradoras de sofrimento e estigmatização. No sistema de saúde pública e privada não deve ser diferente.
É preciso que a Justiça exerça uma <a href="https://www.ajufe.org.br/imprensa/noticias/16917-nota-publica-ajufe-mulheres">jurisdição emancipatória para mulheres e meninas</a>, assuma a posição de não repetição de estereótipos, adote uma postura ativa de enfrentamento das desigualdades diuturnamente impostas ao gênero feminino e esteja capacitada para lidar especificamente com essas vítimas de toda sorte de violência, inclusive institucional, e que batem às portas do sistema de justiça em busca de seus direitos, em busca de acolhimento e escuta qualificada.
Nesse contexto, em outubro de 2021, o Conselho Nacional de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cnj">CNJ</a>) publicou o Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero, que propõe diretrizes de atuação envolvendo questões de gênero, na sua interseccionalidade com outros marcadores, indicando caminhos para a remoção de obstáculos que impeçam o amplo acesso à justiça, livre de estereótipos e de reprodução de violências. Talvez a juíza catarinense o desconhecesse, assim como o bom senso e a empatia, tão essenciais quanto o conhecimento das leis e o rigor de sua aplicação.
No mundo, o aborto também sempre foi alvo de reflexões ao longo dos anos. Os EUA, por exemplo, têm uma história e proteção legislativa deste tema diferente do Brasil. Na semana passada, a <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/um-adeus-a-roe-49-anos-depois-a-superacao-do-precedente-do-aborto-25062022">Suprema Corte americana revogou</a>, após quase 50 anos, um dos seus precedentes mais históricos, Roe v. Wade, reconhecendo que cabe aos estados legislar sobre o aborto, já que o tema não encontra previsão na Constituição. Agora, restam duas alternativas para as mulheres estadunidenses: se deslocarem para um estado que admite o procedimento de forma legal ou buscar a interrupção da gravidez em clínicas clandestinas.
No Brasil, a construção de um Judiciário que esteja realmente comprometido com o debate de gênero, alinhado às diretrizes do julgamento com perspectiva de gênero definidas pelo CNJ, não pode tardar.

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JOTA

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