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A parentalidade em dois atos

A paternidade aplaudida e a maternidade massacrada: os episódios no STJ e no TJAM

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Crédito: Unsplash

No último dia 18, durante a sessão da 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o advogado Felipe Cavallazzi estava em excelente companhia enquanto aguardava seu processo ser chamado a julgamento pelo colegiado. Seu filho de 1 ano e 10 meses acompanhava, atento, as falas dos ministros. Sensível à situação, o presidente da turma ministro Mauro Campbell Marques invocou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Constituição Federal para antecipar o julgamento do recurso, cujo pedido de preferência havia sido formulado por Felipe Cavallazzi.

A nobreza e sensibilidade do ministro Mauro Campbell, igualmente reverberadas pelos demais ministros da turma, repercutiu positivamente em todo cenário jurídico, sendo motivo para vários veículos de comunicação noticiarem o fato e enaltecerem a paternidade do advogado. Ele próprio, em suas redes sociais, ressaltou o fato de que o filho estava sob seus cuidados naquela semana e precisava trabalhar, o que motivou a conciliação entre as duas funções levando o lindo garotinho ao tribunal.

Por outro lado, os mesmos adjetivos empregados ao comportamento dos ministros do STJ infelizmente não podem ser estendidos aos desembargadores da 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Amazonas (curiosamente tribunal de origem do ministro Mauro Campbell), em especial aos desembargadores Elci Simões que, durante sessão de julgamento, constrangeu a advogada Malu Borges, questionando sua ética profissional por ter feito sua sustentação oral e acompanhado o julgamento do caso com seu filho de colo que, vez e outra, emitia barulhinhos orais típicos de bebês muito pequenos, e Wellington Araújo, que, em contrariedade ao que determina a Lei 13.363/2016 (conhecida como Lei Júlia Matos), negou o pedido de preferência feito pela advogada para que pudesse realizar a sustentação oral antecipadamente.

As falas dos desembargadores merecem reprodução, como forte contraponto àquelas pronunciadas pelos ministros do STJ. Em resposta ao pedido de preferência, o desembargador Wellington Araújo respondeu: “Aí, a senhora tira a preferência dos demais. Os outros [advogados] vão acabar desistindo de fazer suas sustentações”, dando a entender que estariam todos em mesma situação. Iniciado o julgamento e após a sustentação oral, disse o desembargador Elci Simões: “[…] pedir para doutora Malu que… aí quebra o silêncio das sessões do tribunal, interferências outras na sala em que a senhora está. Isso prejudica os colegas. Não deixe que outras interferências, barulhos, venham atrapalhar nossa sessão porque é uma sessão no tribunal, não pode ter cachorro latindo, criança chorando. Se a senhora tiver uma criança, coloque no lugar adequado. São barulhos que tiram a nossa concentração. A senhora precisa ver a ética da advogada”.

Impossível não traçar comparações entre os acontecimentos no Superior Tribunal de Justiça e no Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas. Há muitas camadas nos dois casos que devem ser objeto de reflexão. Concentrarei esforços em apenas duas delas. A primeira pode ser sintetizada pelos questionamentos: se no lugar de Malu Borges estivesse qualquer advogado (homem, gênero masculino), teria ele sido repreendido como foi a advogada? Teria sido a ele negado o pedido de preferência? Afinal de contas, a paternidade comove quando exercitada diante de nossos olhos. Mas por que tratamentos tão distintos?

É a partir daí que se analisa a segunda camada que expomos para reflexão. O que está por trás das duas abordagens a situações não idênticas, mas que em muito se assemelham? Por que a sociedade enaltece a paternidade, mesmo quando exercitada em seu nível mínimo, mas repulsa a maternidade, mesmo diante de um esforço descomunal pela conciliação entre todas as funções que sobrecarregam o cotidiano feminino?

Em 2013, quando estava grávida de 29 semanas, a advogada Daniela Teixeira requereu preferência na sustentação oral, em julgamento no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O pedido foi negado pelo então presidente do CNJ, ministro Joaquim Barbosa. Daniela Teixeira precisou esperar a manhã inteira e metade da tarde para ver seu processo ser apregoado. Apesar de ter ganhado a causa, saiu do CNJ direto para o hospital, em razão de fortes contrações. Sua filha nasceu prematura, com pouco mais de um quilo, ficando 61 dias na UTI.

Esse foi um dos resultados dramáticos da negativa de um simples pedido de preferência feito por uma mulher advogada grávida de 29 semanas. Outro resultado, porém, deve ser festejado por toda a sociedade: Daniela Teixeira jogou luz para a gravidade do acontecido e lutou, incansavelmente ao lado de outras 400 advogadas, na qualidade de diretora da OAB-DF, para elaborar projeto de lei que assegura uma série de garantias à mulher advogada. Em 25 de novembro de 2016 foi publicada a Lei 13.363, que alterou o Estatuto da Advocacia (EAOAB) e o Código de Processo Civil (CPC) “para estipular direitos e garantias para a advogada gestante, lactante, adotante ou que der à luz e para o advogado que se tornar pai” (artigo 1º). A lei, conhecida como Lei Júlia Matos (nome da filha de Daniela Teixeira) é hoje celebrada, mas por vezes tem sido esquecida por aqueles que tem, por dever de ofício, de conhecê-las.

Aos esquecidos, continuaremos lembrando, seja por textos, por falas e atitudes, que a Lei Júlia Matos existe para que outras mulheres não precisem passar pelo drama vivido por Daniela Teixeira e sua filha, de quem foi retirado o direito de crescer e se desenvolver, por completo, no ventre de sua mãe.

Quase dez anos separam os acontecimentos de Daniela Teixeira e Malu Borges. Desespera perceber que quase nada mudou, apesar da existência de uma lei federal plenamente em vigor. São centenas de relatos feitos por advogadas, que descrevem, de forma sofrida, o desrespeito diário, as humilhações cotidianas e o apedrejamento público daquelas que ousam ser mães e profissionais.

Eu mesma já fui vítima de questionamento público sobre minha lactância. Afinal, “o que essa mãe desnaturada faz aqui, trabalhando, ao invés de estar em casa, cuidando de seus filhos?”. Desculpe-nos se a maternidade alheia tira a concentração de vossas excelências, ou se um singelo pedido de preferência tem a capacidade de causar tamanho incômodo aos advogados que aguardam pelo apregoamento de seu processo. Mas deixo aqui minha percepção sobre os fatos: Malu Borges, assim como outras centenas de milhares de advogadas, apenas conciliava a maternidade com sua vida profissional. O que surpreende, a bem da verdade, é que o incômodo pelos sussurros de um bebê foi menor do que o constrangimento pelo desrespeito à legislação federal e à dignidade de mulheres advogadas lactantes de todo o Brasil.