Opinião e Análise

Eduarda Chacon Rosas

Roberta Monteiro de Paula Guerra

A interação entre o homem e a máquina dá a tônica da vida em sociedade e influencia a percepção das pessoas a respeito de si mesmas e o modo como se relacionam com o mundo ao seu redor.
O fenômeno global e universal de atribuição de valor a informações, e a conscientização a respeito do quanto se pode extrair de significado a partir da análise de bites e bytes, deu largada a uma corrida cuja linha de chegada ainda não é possível vislumbrar.
O que se iniciou como um movimento de governança da internet evoluiu para a organização de complexos macrossistemas de proteção de dados pessoais, e por maiores que sejam os esforços e mais brilhantes que sejam os envolvidos, o fluxo de informações e de dados não parece querer renunciar à anarquia que lhe é inerente.
Antes mesmo que esta verdade – anarquia dos dados – se assentasse e fosse absorvida, ergueu-se sobre a comunidade acadêmica uma onda, um tsunami: a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/inteligencia-artificial">inteligência artificial</a>.
Enquanto isso, no âmbito da pesquisa, a tecnologia modificou o vocabulário e a linguagem utilizadas nas manifestações acadêmicas e profissionais de, virtualmente, todas as áreas do saber. O Direito não é exceção, mas antes, um dos mais impactados. Esta influência repercutiu no modo como se manifesta (ou deixa de se manifestar) à medida em que carece de instrumentos, no exercício de suas atribuições regulatórias, que o permitam acompanhar o ritmo de desenvolvimento da inovação.
O esforço pela regulação da inteligência artificial, que vinha tomando fôlego e arregimentando entusiastas nos últimos anos, começou a se converter em propostas, mas tais propostas sequer chegaram ser organizadas, estruturadas e apreciadas quando o fenômeno da utilização de modelos de IA como o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/chatgpt">ChatGPT</a> emergiu – alheio às iniciativas em pauta.
Para além da regulação eficiente da tecnologia, é preciso considerar, agora, que modelos de IA como o ChatGPT podem modificar a forma como o ser humano se comunica; do idioma à linguagem. A complexidade técnica é aterradora porque convida a conciliar o que parecia inconciliável: tecnologia e filosofia, alma e algoritmo.
Assim que, nos últimos anos, médicos, filósofos, juristas, matemáticos e engenheiros começaram a se preocupar com o desenvolvimento e com as repercussões das neurotecnologias e com a tutela aos <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/neurodireitos">neurodireitos</a>.
Em sentido amplo, a neurotecnologia se desdobra em diversos meios: químico, físico e virtual, com propósito de intervenção ou mensuração cerebral. Neste escopo, a neurotecnologia abrangeria qualquer interferência direta ou indiretamente na atividade cerebral humana, e os neurodireitos seriam uma proposta de estruturar juridicamente a necessidade de salvaguardar o cérebro em um cenário de desenvolvimento tecnológico exponencial com potencial para corrompê-lo.
A Neurorights Foundation classifica os neurodireitos de modo muito didático e intuitivo em: identidade pessoal; livre arbítrio (proteção contra neuromanipulação por neurotecnologias – algorítmica, química, física); privacidade mental; acesso equitativo a aprimoramento mental e proteção contra vieses (como premissa algorítmica)<a href="#_edn1" name="_ednref1">[1]</a>.
Marcello Ienca, autoridade chilena no estudo sobre neurodireitos, atualizou o debate que vinha sendo desenvolvido no Chile<a href="#_edn2" name="_ednref2">[2]</a> e propôs classificar os neurodireitos (espécie) em cinco grandes grupos conectados a direitos já reconhecidos (gênero)<a href="#_edn3" name="_ednref3">[3]</a>.
Em primeiro lugar estariam os direitos derivados da liberdade de pensamento, como a liberdade cognitiva (o direito à autodeterminação mental), o direito à agência (reconhecimento da capacidade de escolha ou livre arbítrio), a liberdade mental (controle consciente sobre a própria mente) e a liberdade de pensamento.
Em segundo viriam os direitos derivados da privacidade, como a privacidade mental e o direito à neuroprivacidade (proteção dos dados neuronais ou cerebrais). O terceiro grupo seriam dos direitos derivados do bem-estar e integridade, em especial a integridade mental (proteção contra manipulação mental). Em quarto estariam os direitos derivados da identidade pessoal que se projetam (i) na preservação da identidade pessoal e da continuidade do pensamento/mentalidade e (ii) na integridade física e mental.
Por fim, tutela-se o direito existir em um ambiente adequado à promoção dos demais direitos, o que dependeria do acesso ao aprimoramento mental e da proteção contra vieses algorítmicos<a href="#_edn4" name="_ednref4">[4]</a>. A tutela aos neurodireitos precisa considerar também os riscos advindos de vertentes de neurotecnologia diversas, como a farmacológica e a hospitalar, afinal, é natural o desenvolvimento de drogas e dispositivos (chips, implantes) capazes de alterar a química cerebral e o funcionamento fisiológico das pessoas.
As nuances atribuídas aos neurodireitos se propõem a abarcar um universo de mecanismos diretos e indiretos de influência que vão desde o estabelecimento de role models em redes sociais e filmes (seja de beleza ou como parâmetro de sucesso pessoal e profissional); a diagnósticos (muito reais) de transtornos não orgânicos como o TDHA (transtorno do déficit de atenção); sintético (estado de atenção/desatenção ao qual a mente pode ser induzida pelo uso constante de telas); desafios (dares) que põem em risco a integridade física e psíquica (blue whale); bullying; vício; violência; cancelamento digital; imersão religiosa (prayer apps) etc.
O reconhecimento dos neurodireitos como realidade conduz os aplicadores do Direito (e outros pensadores no meio acadêmico) a ressignificarem ideias como liberdade, dignidade e privacidade. De fato, a capacidade de dirigir a própria consciência, bem como os processos mentais relacionados à gestão das crenças, ideologias, opiniões e percepções do mundo ao redor, são o que definem o homem.
Quando essa faculdade definidora do ser humano passa a ser influenciada de modo relevante por elementos químicos, eletrônicos, por manipulação algorítmica ou por causa do ócio intelectual (que inclina o indivíduo a delegar seu trabalho ao ChatGPT ou a achar aceitável que o score social decida suas amizades pessoais), é preciso ponderar sobre causas e consequências; e é preciso intervir.
Ressalva-se, mesmo assim, que intervir não significa "correr" com a normatização. Mesmo porque os neurodireitos são desdobramento e aprofundamento de garantias e direitos fundamentais vigentes.
Quer dizer: embora a necessidade de regulação do uso tecnologia, em especial do uso da neurotecnologia seja inegável, é preciso não confundir a regulação do uso de uma ferramenta com a proteção dos direitos e garantias potencialmente afetados pelo uso do citado instrumento.
Feita a resssalva, pende de apreciação Projeto de Emenda Constitucional 29/23 que sugere a inclusão, entre os direitos e garantias fundamentais de que trata o artigo quinto da Constituição Federal, da proteção “à integridade mental e à transparência algorítmica”. É curioso que o texto mencione transparência, expressão reiteradamente utilizada no contexto da regulação da tecnologia, em diversos escopos diferentes, mas nunca como um objetivo em si mesmo.
Evidentemente que é possível e importante verticalizar o estudo das garantias e princípios fundamentais para melhor contextualizá-los, mas é igualmente verdadeiro que não adianta dar nome a novos direitos com a expectativa de que isso tornará mais fácil garanti-los. Até mesmo porque os direitos e garantias fundamentais em sentido amplo (gênero) deveriam estar tão fortemente enraizados na sociedade, que a sua proteção deveria ser segunda natureza das instituições, do mercado e da sociedade. E se isso não é real agora, não se tornará real com a promulgação de uma emenda constitucional.
Em outras palavras: bater o martelo para nomear neurodireitos e incluí-los na Constituição não resolverá automaticamente os desafios das aplicações neurotecnológicas. É preciso trabalhar pelo enforcement das garantias constitucionais e humanas já vigentes enquanto se estuda, compreende e regula o uso das tecnologias de modo informado e eficiente.
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<a href="#_ednref1" name="_edn1">[1]</a> The Five Neurorights. Neurorights Foundation. Disponível em <a href="https://neurorightsfoundation.org/mission">https://neurorightsfoundation.org/mission</a>. Acesso em 10 jul 2023.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[2]</a> Os neurodireitos já foram objeto de emenda constitucional no Chile com o seguinte texto: "o desenvolvimento tecnológico deve estar a serviço das pessoas, respeitando a integridade psíquica. A lei deverá resguardar a atividade cerebral e a informação proveniente dela".
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[3]</a> ASÍS, R. DE. Sobre la propuesta de los neuroderechos. DERECHOS Y LIBERTADES: Revista de Filosofía del Derecho y derechos humanos, n. 47, p. 51-70, 22 abr. 2022.
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[4]</a> ASÍS, R. DE. Sobre la propuesta de los neuroderechos. DERECHOS Y LIBERTADES: Revista de Filosofía del Derecho y derechos humanos, n. 47, p. 51-70, 22 abr. 2022.

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JOTA

Nomear neurodireitos e incluí-los na Constituição não resolverá por si só os desafios das aplicações neurotecnológicas

A integridade mental e os neurodireitos

Nomear neurodireitos e incluí-los na Constituição não resolverá por si só os desafios das aplicações neurotecnológicas