Opinião e Análise

Camilla Ayala Felisberto Silva

Fernanda Botelho de Oliveira Dixo

Quem atua com habitualidade na área do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/direito-de-familia">Direito de Família</a>, lidando com discussões do cotidiano familiar, que trazem questões sensíveis com relação ao fim de um relacionamento envolvendo, por vezes, divórcio, alimentos, guarda e convivência de menores, já deve ter se deparado com situações em que as decisões acabam desconsiderando a perspectiva de gênero e, assim, se distanciam de uma decisão mais acertada para a realidade do núcleo familiar tratado.
Diante de uma sociedade marcada pelo patriarcado, machismo, entre outros estigmas, muitas vezes as decisões acabam sendo enviesadas ou influenciadas por questões há muito incorporadas como cláusulas pétreas, como, por exemplo, que a mulher é quem cuida melhor da criança ou que o pai não pode pernoitar com o(a) filho(a) de tenra idade por não ser capaz de cuidar sozinho da prole, entre outros exemplos.
Mesmo após considerável evolução legislativa e jurisprudencial ao longo do tempo, que possibilitou uma importante isonomia entre homens e mulheres no Direito de Família e no Direito Civil, de forma geral, ainda assim é possível ver mulheres sendo vítimas de um sistema jurisdicional concebido e atuante de forma estruturalmente sexista. Ou seja, a mulher, mesmo após tantas mudanças, permanece sendo alvo de discriminação no Judiciário.
Em outras palavras, o princípio da igualdade entre homem e mulher esculpido na nossa Constituição Federal e também reproduzido em diversos artigos do Código Civil, em especial no âmbito do Direito de Família, significou grande passo em busca da equiparação, mas a igualdade formal está bem distante de representar a igualdade de gênero na prática.
Por conta disso, é com muitos bons olhos que vemos o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero desenvolvido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam)<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, pois se trata de uma mudança de rumo importante para o Judiciário brasileiro, aproximando a igualdade formal da igualdade prática.
Esse protocolo estabelece diretrizes que servem como instrumento para que seja alcançada a igualdade de gênero, cujo compromisso foi firmado pelo <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">Supremo Tribunal Federal (STF)</a> e pelo CNJ atendendo ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável ODS 5 da Agenda 2030 da ONU.
Neste artigo, nos limitaremos a tratar das diretrizes acerca da área do Direito de Família, pois a família vem ganhando contornos mais amplos e flexíveis, com mudança dos personagens que antes exerciam papéis preestabelecidos e com hierarquia, sendo essencial que as decisões dentro da esfera familiarista acompanhem essa evolução.
Não há dúvidas de que as mulheres vêm conquistando, nas últimas décadas, espaços importantes em busca da igualdade de gênero, sendo uma das grandes conquistas a posição marcante no mercado de trabalho (espaço público). Em contrapartida, a grande maioria dos homens não conquistaram o mesmo espaço dentro da vida doméstica (espaço privado).
Tal realidade levou a uma sobrecarga da maioria das mulheres que acumulam os trabalhos no espaço público com, quase sempre, a integralidade do trabalho no espaço privado — conhecido como doméstico, o que nem sempre é considerado quando se está decidindo questões relativas ao fim de um casamento, por exemplo.
Percebemos, portanto, que toda a evolução legislativa e social já alcançada em favor das mulheres não foi suficiente para modificar a postura e o discurso de alguns magistrados e demais operadores do Direito. Nas varas de família essa violência, chamada por Artenira Silva, Patrícia Bertolin e Cláudia Luna<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> de “violência institucional de gênero”, se torna ainda mais latente. Afinal, espera-se daquele que atua em nome do Estado o cumprimento da garantia dos direitos e não ações ou omissões que se prestam a subjugar ou diminuir alguém. Entretanto, o que vemos é uma atuação baseada no subjetivismo opinativo preconceituoso, pelo exercício, por exemplo, do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/machismo">machismo</a> e do sexismo.
Esse tipo de postura não pode ser tratado apenas como meros equívocos ou detalhes a serem corrigidos. Pelo contrário, precisa de um olhar atento e de atitudes práticas que trabalhem em prol de uma mudança nesse comportamento. Pois a produção de decisões sem a observação dessa perspectiva de gênero tem prejudicado a integridade física, psíquica, moral, financeira e patrimonial da mulher no âmbito do Direito de Família, o que se desdobra em consequências que tomam proporções ainda maiores.
Exemplo da ausência de julgamento com perspectiva de gênero é a controvérsia sobre a obrigação alimentar entre ex-cônjuges. Como se percebe das decisões atuais, está se consolidando a posição de que a pensão entre ex-cônjuges tem caráter excepcional e não pode servir de incentivo ao ócio ou parasitismo, invocando ainda a questão da igualdade constitucional como fundamento para afastar a obrigação alimentar, sem notar que, repise-se, a igualdade formal não pressupõe, nem de longe, a igualdade material invocada.
É preciso ter em mente e analisar cada caso concreto para se avaliar a real possibilidade de (re)inserção da mulher no mercado de trabalho após o fim do casamento, por conta de diversos fatores que, em muitos casos, impedem que isso ocorra por questões alheias à vontade da mulher que acaba sendo tratada pejorativamente como oportunista, golpista, parasita, entre outros adjetivos preconceituosos.
Outro exemplo que é costumeiro nos julgamentos de ações envolvendo Direito de Família e que renega totalmente a igualdade de gênero, refere-se à fixação de guarda e regime de convivência de menores de tenra idade. A maioria dos juízes têm enraizado, talvez associado ao fato que a mulher é quem gera a criança, que a mãe cuida melhor que o pai e que a criança de tenra idade precisa ficar mais com a mãe do que com o pai.
Mudança importante e que buscou refletir a igualdade de gênero é a alteração da lei no que diz respeito à guarda. Atualmente a lei determina como regra a fixação de guarda compartilhada buscando enterrar o paradigma de que “mãe é quem cuida”, refletindo o fato de que, nos dias atuais, praticamente 50% da população ativa é formada por mulheres, o que significa que é preciso que a mesma proporção se estabeleça nas tarefas domésticas, o que se verifica muito mais efetivo quando a guarda é compartilhada e a custódia física também.
Vale mencionar aqui o Enunciado 671, recentemente aprovado na IX Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, que veio reforçar a necessidade de divisão das tarefas domésticas,  propondo que “a tenra idade da criança não impede a fixação de convivência equilibrada com ambos os pais”.
Assim, é necessário que não só os integrantes do Judiciário, mas todos os operadores do direito potencializem a aplicação desse ideal, através do uso constante do Protocolo desenvolvido pelo CNJ, que atende à recente Recomendação nº 128/2022<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, para que as mudanças relacionadas ao rompimento dessa cultura de opressão e discriminação sejam efetivamente operadas.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero 2021. Disponível em: &lt;<a href="https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-18-10-2021-final.pdf">https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-18-10-2021-final.pdf</a>&gt;
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> SILVA, Artenira. BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins. LUNA, Cláudia Patrícia. Quando as desiguais vão a Juízo: exercício de violência institucional e da violência por poderes no Sistema de Justiça brasileiro. 19 nov. 2020. Disponível em: &lt;<a href="https://noticias.oabsp.org.br/artigos/quando-as-desiguais-vao-a-juizo-exercicio-de-violencia-institucional-e-da-violencia-por-poderes-no-sistema-de-justica-brasileiro/">https://noticias.oabsp.org.br/artigos/quando-as-desiguais-vao-a-juizo-exercicio-de-violencia-institucional-e-da-violencia-por-poderes-no-sistema-de-justica-brasileiro/</a>&gt;. Acesso em: 2 ago. 2022.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> <a href="https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadas-cej/enunciados-aprovados-2022-vf.pdf">https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadas-cej/enunciados-aprovados-2022-vf.pdf</a>, pagina 42
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Art. 1º Recomendar aos órgãos do Poder Judiciário a adoção do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, aprovado pelo Grupo de Trabalho instituído por intermédio da <a href="https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3714">Portaria CNJ nº 27/2021</a>, para colaborar com a implementação das Políticas Nacionais estabelecidas pelas <a href="https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2669">Resoluções CNJ nº 254/2020</a> e <a href="https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2670">255/2020</a>, relativas, respectivamente, ao Enfrentamento à Violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário e ao Incentivo à Participação Feminina no Poder Judiciário.
Parágrafo único. O referido Protocolo encontra-se anexo a este ato normativo.
Art. 2º O Protocolo para julgamento com Perspectiva de Gênero poderá ser adotado no âmbito de todos os órgãos do Poder Judiciário brasileiro.
Art. 3º Esta Recomendação entra em vigor na data de sua publicação.
Disponível em: &lt;<a href="https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4377">https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4377</a>&gt;

perspectiva de gênero

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JOTA

Apesar de evolução legislativa e jurisprudencial, ainda é possível ver mulheres sendo vítimas de um sistema sexista

A atuação com perspectiva de gênero por um Judiciário mais igualitário

Evolução alcançada em favor de mulheres não foi suficiente para modificar algumas posturas no direito. Clique aqui para saber mais.