Opinião e Análise

Júlio Camargo de Azevedo

Como debatido nos textos antecedentes desta série de artigos, a “fixação de critérios objetivos para aferição da hipossuficiência na apreciação do pedido de gratuidade de justiça formulado por pessoa natural” encontra-se afetado para julgamento perante a Corte Especial do STJ (Tema Repetitivo 1.178).
É cediço que o tema atrai uma imensa gama de dificuldades, seja em função das diferentes realidades regionais em um país continental, seja em função do possível entrecruzamento de vulnerabilidades econômicas e sociais que assolam a sociedade brasileira.
Acredita-se, todavia, que a experiência angariada em décadas de prestação do serviço de assistência jurídica pelas <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/defensoria-publica">Defensorias Públicas</a> pode contribuir com o desfecho de um dos mais importantes julgamentos do país para a população necessitada.
Tomando por base evidências empíricas, a Pesquisa Nacional da Defensoria Pública de 2022<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> reuniu os principais parâmetros de elegibilidade da hipossuficiência financeira para a fruição do serviço de assistência jurídica fornecido pelas Defensorias Públicas Estaduais, do Distrito Federal e da União.
Ao todo, foram coletados 28 relatórios administrativos, contendo quesito específico a respeito dos critérios objetivamente adotados para atendimento da população vulnerável brasileira.
Da análise dos dados levantados, extrai-se que 26 Defensorias Públicas apresentaram parâmetros de elegibilidade previamente definidos em atos normativos internos (Deliberações ou Resoluções), sendo que em apenas dois Estados não foram observados critérios objetivos pré-fixados (Amazonas e Ceará).
Em linhas gerais, os parâmetros de elegibilidade relacionados à renda variaram entre 1 a 5 salários mínimos federais, dirigindo-se, em média, o serviço de assistência jurídica gratuita ao cidadão brasileiro que aufere renda mensal familiar de até 3 salários mínimos, fato apurado em 16 estados.
Por renda familiar, as Defensorias Públicas consideraram a soma dos rendimentos brutos auferidos mensalmente pela totalidade dos membros da entidade familiar, excluindo-se desse montante rendimentos recebidos por programas oficiais de transferência de renda, benefícios assistenciais e contribuições previdenciárias oficiais.
Em alguns estados, foi possível observar a dedução de outras despesas, como o gasto comprovado com tratamento médico por doença grave ou aquisição de medicamentos de uso contínuo (Minas Gerais e Paraná), valores gastos com água e energia (Sergipe), pagamento de pensão alimentícia (Paraná) e pagamento do imposto de renda (Minas Gerais e Paraná).
Apurou-se, ainda, a existência de presunções objetivas de vulnerabilidade econômica nas normativas internas, como no caso de a pessoa integrar programas oficiais de transferência de renda ou receber benefícios assistenciais e previdenciários pagos a idoso ou deficiente (DPU) ou ser beneficiária de programas sociais federais e estaduais (ex: “Bolsa Família”, “Minha Casa, Minha Vida”, “Programa Universidade Para Todos”).
Para além da renda, 21 Defensorias Públicas do país apresentaram parâmetros vinculados à análise do patrimônio, sendo possível elencar como critérios negativos de elegibilidade:
<ol>
<li>ser o usuário proprietário, titular de aquisição, herdeiro, legatário ou usufrutuário de bens móveis, imóveis ou direitos, variando os valores entre 120 (cento e vinte) a 300 (trezentos) salários mínimos (média de 120 salários mínimos) </li>
<li>possuir recursos financeiros em aplicações ou investimentos, variando os valores entre 06 (seis) a 20 (vinte) salários mínimos federais (média de 12 salários mínimos)</li>
</ol>
Critérios negativos específicos foram observados em algumas unidades federativas, tais como:
<ol>
<li>não ser proprietário, possuidor ou titular de direito sobre mais de 1 bem imóvel (Distrito Federal e Rio de Janeiro),</li>
<li>não ser proprietário, possuidor ou titular de direito sobre bens móveis, de valor superior a 40 salários mínimos, ressalvados os instrumentos de trabalho (Espírito Santo e Rio de Janeiro);</li>
<li>não possuir participação societária em pessoa jurídica de porte incompatível com a alegada vulnerabilidade (Bahia, Espírito Santo e Rio de Janeiro);</li>
<li>ser integrante de núcleo familiar cuja renda per capita supere 1,5 salários mínimos (Goiás).</li>
</ol>
Doutro giro, as Defensorias Públicas dos Estados do Amazonas, Ceará, Paraíba, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe e a Defensoria Pública da União não apresentaram critérios negativos relacionados ao patrimônio para fins de atendimento jurídico.
Observou-se, ademais, a possibilidade de elevação do parâmetro de elegibilidade previsto enquanto teto da renda familiar em algumas unidades federativas, majorando-se entre 1 a 2 salários mínimos o limite da renda, desde que observado:
<ol>
<li>a presença de núcleos multifamiliares (entre 4 a 6 pessoas);</li>
<li>núcleos com renda advinda da agricultura familiar;</li>
<li>núcleos com a presença de familiar em situação de vulnerabilidade social conjugada (enfermos, pessoas com deficiência ou transtorno global do desenvolvimento, nascituro, criança ou adolescente, idoso ou egresso do sistema prisional).</li>
</ol>
É o caso das Defensorias Públicas do Amapá, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Rondônia, Roraima, Santa Catarina e São Paulo.
Doravante, demonstrando fina sintonia com a moderna exigência de prestação do serviço de assistência jurídica integral e gratuita a pessoas e grupos em situação de vulnerabilidade social, instituições de 20 unidades federativas apresentaram parâmetros de elegibilidade distanciados do critério financeiro-patrimonial, destinando atendimento jurídico a pessoas em situação de vulnerabilidade não econômica.
Assim, foram considerados vulneráveis, independentemente do critério da renda, os seguintes grupos: mulheres vítimas de violência doméstica ou familiar; idosos; pessoas com deficiência; crianças e adolescentes; povos originários, quilombolas, ribeirinhos ou membros de comunidades tradicionais; consumidores superendividados ou em situação de acidente de consumo; pessoas vítimas de discriminação por motivo de etnia, cor, gênero, origem, raça, religião ou orientação sexual; pessoas vítimas de tortura, abusos sexuais, tráfico de pessoas ou outras formas de grave violação de direitos humanos; população LGBTQIAPN+; pessoas privadas de liberdade em razão de prisão ou internação; migrantes e refugiados; pessoas em situação de rua; usuários de drogas; catadores de materiais recicláveis e trabalhadores em situação de escravidão.
Destaque para as Defensorias Públicas da Bahia, Mato Grosso do Sul, Pará, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rondônia, Roraima, Rio Grande do Sul e Tocantins, unidades federativas que adotaram maior amplitude do atendimento jurídico a indivíduos vulneráveis, não se baseando em critérios estritamente econômicos.
Ainda, em todas as Defensorias Públicas, foi possível apurar que o serviço de assistência jurídica dirigido a réus no processo e execução penal, assim como aos beneficiários da curadora especial, excepcionaram a avaliação econômico-financeira do usuário.
A experiência do serviço de assistência jurídica prestado pelas Defensorias Públicas ensina que o critério econômico é insuficiente para lidar com todas as vicissitudes sociais da população brasileira.
Isso obrigou as instituições de todo o país a desenvolver outros parâmetros de elegibilidade para aferição da vulnerabilidade da pessoa natural, os quais alargaram em muitos aspectos a consideração do binômio patrimônio-renda como circunstância autorizadora do direito à assistência jurídica.
Não só. Em praticamente todas as localidades em que instaladas, as Defensorias Públicas se viram compelidas a observar, por força do mandamento constitucional e convencional de proteção dos direitos humanos, aspectos de vulnerabilidade social e cultural que se distanciaram do critério financeiro-patrimonial.
Ainda que haja uma clara diferença entre gratuidade de custas e assistência jurídica integral e gratuita, é certo que os parâmetros para superação das barreiras econômicas do acesso à justiça se aproximam, na linha da primeira onda renovatória preconizada por Cappelletti e Garth.
Nesse sentido, o saber prático granjeado pelas Defensorias Públicas, revela que um critério para aferição da hipossuficiência que se proponha fixo, objetivo e estanque pode custar o fechamento das portas do Poder Judiciário aos que mais necessitam, conferindo eco à frase de Ovídio no sentido de que “curia pauperibus clausa est” (“o tribunal está fechado para os pobres”).
A fim de evitar este estado de coisas, no quarto e último texto dessa série, serão apresentadas algumas propostas de aprimoramento hermenêutico das disposições contidas nos artigos 98 e 99, § 2º, do CPC, que, talvez, possam auxiliar o Tribunal da Cidadania a equilibrar os vetores arrecadação-gratuidade, sem, todavia, descuidar das necessidades econômicas da população vulnerável.
Até breve!
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> ESTEVES, Diogo. AZEVEDO, Júlio Camargo de Azevedo. GONÇALVES FILHO, Edilson Santana. JIOMEKE, Leandro Antonio. LIMA, Marcus Edson de. MENEGUZZO, Camylla Basso Franke. SADEK, Maria Tereza. SILVA, Franklyn Roger Alves. SILVA, Nicholas Moura e. TRAVASSOS, Gabriel Saad. WATANABE, Kazuo. Pesquisa Nacional da Defensoria Pública 2022, Brasília: DPU, 2022. Disponível em: <a href="https://pesquisanacionaldefensoria.com.br/download/pesquisa-nacional-da-defensoria-publica-2022-eBook.pdf">https://pesquisanacionaldefensoria.com.br/download/pesquisa-nacional-da-defensoria-publica-2022-eBook.pdf</a>

stj edificio

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JOTA

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