Opinião e Análise

Júlio Camargo de Azevedo

No <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/vulnerabilidade-economica-e-processo-parte-1-29052023">primeiro texto</a> desta série firmou-se a premissa de que o custo econômico do acesso à justiça pode envolver as custas judiciárias (custas em sentido estrito e taxas judiciárias), as custas processuais (despesas processuais e honorários advocatícios) e as custas extraprocessuais (emolumentos e custas do processo autocompositivo).
Haveria, ademais, outras duas categorias de custos não econômicos, tratando-se dos custos psicossociais do acesso (rota crítica da litigância) e dos custos políticos do não acesso (litigiosidade contida e necessidades jurídicas não atendidas da população).
Com foco nestas ideias, a presente coluna tratará do direito à gratuidade de custas, procurando demonstrar sua evolução histórica e regulamentação legal no contexto brasileiro.
Historicamente, é possível observar que os parâmetros erigidos para sustentar a concessão da gratuidade de custas suportou variações ao longo do tempo, acompanhando a evolução normativa do conceito de necessitado e as reformas instituídas para a superação das barreiras econômicas vinculadas ao acesso à justiça.
A Constituição Federal de 1934, primeira Carta Constitucional a elevar o direito à gratuidade ao status constitucional (art. 132, nº 32), nada dispôs a respeito dos parâmetros para a prestação deste serviço estatal.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> A regulamentação somente adveio depois, com a promulgação do CPC de 1939.
Inspirado no Decreto 2.457/1897, que instituiu o primeiro modelo organizado de assistência judiciária no âmbito do Distrito Federal, o CPC de 1939 previu que a “parte que não estivesse em condições de pagar as custas do processo sem prejuízo do sustento próprio ou familiar faria jus ao benefício de gratuidade” (art. 68).
A Codificação vinculava a concessão do benefício ao ajuizamento de petição específica, impondo à parte a comprovação dos rendimentos ou vencimentos percebidos e os encargos pessoais e familiares (art. 72), além da apresentação do atestado de pobreza, àquela altura expedido pelo serviço de assistência social ou pela autoridade policial do distrito ou circunscrição de residência do solicitante (art. 74).
O mesmo sistema passou a ser adotado pelo Código de Processo Penal de 1941, que previa a indicação de defensor pelo magistrado diante da constatação da pobreza do acusado ou querelante.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Com o advento da Lei de Assistência Judiciária em 1950 (Lei 1.060), o conceito de necessitado manteve-se vinculado à impossibilidade econômica de recolhimento das custas processuais, alinhando-se, igualmente, à prévia comprovação da renda e encargos familiares, assim como à expedição do famigerado atestado de pobreza.
Com a edição da Lei 5.478/1968, dispensou-se a apresentação formal do atestado nas ações de alimentos, admitindo-se para a demonstração do estado de hipossuficiência a mera afirmação por escrito da condição de necessitado econômico.
Por meio da Lei 6.654/1979, o atestado de pobreza foi substituído pela apresentação da Carteira de Trabalho e Previdência Social, mesmo ano em que a Lei 6.707/1979 passou a considerar presumidamente hipossuficiente os trabalhadores que percebessem salário igual ou inferior ao dobro do mínimo legal.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
Em meio à desburocratização dos serviços públicos ocorrida na década de 80, foram editadas as Leis 7.115/1983 e 7.510/1986, esta última responsável por alterar a redação do artigo 4º da Lei 1.060/1950, instituindo o sistema de presunção de pobreza para fins de concessão da gratuidade de custas e da assistência judiciária.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
A partir daí, passou a ser dispensada a apresentação de qualquer prova relativa à condição econômica do requerente, bastando a simples afirmação do interessado de não ser capaz de prover as despesas processuais e os honorários advocatícios sem sacrifício do sustento próprio ou familiar.
A <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l1060.htm">Lei 1.060/1950</a> manteve as bases gerais para a concessão da gratuidade, em especial o conceito de necessitado (art. 2º), a especificação dos atos isentos (art. 3º), o procedimento para a concessão do benefício e o regime de comprovação da pobreza (art. 4º).
Inovou, entretanto, ao ampliar o espectro de impugnabilidade referente à gratuidade, admitindo a interposição de agravo de instrumento contra todas as decisões envolvendo o benefício, as quais limitavam-se até então aos casos “denegatórios” recorríveis pelo recurso de agravo de petição.
Posteriormente, o CPC de 1973 manteve as premissas gerais da Lei 1.060/1950, modificando o artigo 17 para tornar cabível a “apelação das decisões proferidas em consequência da aplicação desta lei (...)”. Manteve-se assim, embora por outro instrumento processual (apelação), a possibilidade de impugnação da decisão concessiva de gratuidade.
Doravante, a Constituição Federal de 1988 elevou a gratuidade ao status de direito fundamental, substituindo a expressão “assistência judiciária” pela prestação da “assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” (art. 5º, LXXIV).
Encampando um modelo público de assistência jurídica, investiu a Defensoria Pública na missão constitucional de prestar “orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados” (art. 134), superando os modelos pro bono (assistencialista) e judicare (remuneração case-by-case a profissionais privados) até então praticados em muitos Estados.
A gratuidade de custas tornou a suportar nova regulamentação com o advento do CPC de 2015, diploma que revogou os dispositivos 2º, 3º, 4º, 6º, 7º, 11, 12 e 17 da Lei 1.060/1950, conforme artigo 1072, inciso III, das Disposições Transitórias.
O novo regime abandonou o critério do comprometimento do sustento próprio ou familiar, instituindo um parâmetro abstrato de elegibilidade para o reconhecimento da gratuidade: a insuficiência de recursos.
Assim, não apenas os recursos indispensáveis para a manutenção física ou material do indivíduo e de sua família passam a estar abrangidos, mas todos aqueles necessários para que as pessoas possam sobreviver à luz da dignidade humana, em especial o piso mínimo existencial representado pelos direitos sociais previstos no artigo 6º da Carta Democrática de 1988.
A Codificação de 2015 manteve, outrossim, a alegação de hipossuficiência financeira baseada na mera afirmativa do postulante (pessoa natural), submetendo-a a uma presunção relativa de veracidade (art. 99, § 3º).
Valorizou, ademais, a fidelidade da declaração do postulante à luz do princípio da boa-fé objetiva, consoante artigo 5º do CPC/2015, do qual são corolários os deveres de cooperação, lealdade, probidade e vedação ao comportamento processual contraditório.
A legislação ampliou também o rol de beneficiários da gratuidade de custas, estendendo às pessoas jurídicas o benefício, desde que comprovada a insuficiência de recursos (não incidindo, portanto, a regra da mera alegação de hipossuficiência).
Por fim, aboliu a exigência de “residência no país” para concessão do benefício aos estrangeiros (art. 98, caput), o que reforçou a extensão da gratuidade a grupos sociais vulneráveis, notadamente imigrantes e populações refugiadas.
Desta breve análise histórica a respeito da regulamentação da gratuidade de custas, é possível perceber que a legislação brasileira migrou de um modelo burocrático-comprovacionista da hipossuficiência para um modelo simplificado-presumicionista<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> da necessidade econômica, baseando-se na simples afirmação de insuficiência de recursos da parte postulante, desde que feita em benefício de pessoa natural.
Tal exegese vem reforçada pelo exposto no art. 99, § 2º, que restringe as hipóteses de indeferimento do pedido à existência nos autos de “elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão de gratuidade, devendo, antes de indeferir o pedido, determinar à parte a comprovação do preenchimento dos referidos pressupostos”.
Trata-se de medida histórica de facilitação do acesso à justiça, cujo objetivo central foi evitar a burocratização do processo de análise e concessão do benefício aos litigantes necessitados, ao mesmo tempo em que impede o consumo de tempo e atividade do já abarrotado órgão judiciário.
Justamente por isso, compreende-se que o afastamento desse modelo implica indesejado retrocesso técnico-jurídico no tratamento da gratuidade, já que a detida avaliação da condição de hipossuficiência – que demanda a consulta a sistemas governamentais e a análise de provas produzidas pela parte postulante – tende a burocratizar ainda mais os procedimentos afetos à legislação civil e trabalhista.
Não obstante, o sistema processual brasileiro já prevê instrumentos de controle suficientes à correção de abusos cometido por litigantes relacionados à gratuidade de custas, seja pela via judicial, seja pela via processual adversarial.
Nessa linha, o CPC manteve o caminho trilhado pelo revogado art. 4º da Lei 1.060/1950, prevendo que, em caso de má-fé processual (leia-se: alegação indevida de hipossuficiência econômica), a parte arcará com multa de até dez vezes o valor das custas processuais, sem prejuízo do recolhimento das despesas dispensadas (art. 100, parágrafo único).
Ainda, no que atina à concessão do benefício, o direito subjetivo à gratuidade permanece intransferível aos litisconsortes e sucessores processuais (art. 99, § 6º), de modo que, para também fazerem jus ao benefício, os novos integrantes da relação processual possuem o ônus de afirmar situação de incapacidade financeira em nome próprio (art. 99, § 3º).
Ademais, quando vencido no processo, o beneficiário continua sujeito às verbas de sucumbência (multas, honorários e despesas processuais), suspendendo-se a exigibilidade do débito pelo período de cinco anos, até que a parte sucumbente supere a incapacidade financeira ou reste definitivamente extinta a obrigação tributária (art. 98, §§ 2º a 4º).
No que toca ao regime de impugnação, o CPC incluiu a gratuidade de custas como matéria defensiva a ser deduzida no bojo da contestação, simplificando essa modalidade de resposta do réu, antes ofertadas mediante incidente autônomo.
Caso a impugnação seja feita pelo autor em função de postulação do réu, caberá fazê-lo na réplica à contestação. Importante aqui o controle da gratuidade exercido pela parte adversa, igualmente interessada nos proveitos econômicos do processo, dado o regime de sucumbência do CPC.
Por fim, no que tange à fase recursal, previu o art. 101, caput: “contra a decisão que indeferir a gratuidade ou a que acolher pedido de sua revogação caberá agravo de instrumento, exceto quando a questão for resolvida na sentença, contra a qual caberá apelação”.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> Mais adiante, dispôs o art. 1.015, inc. V, que: “cabe agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias que versarem sobre: (...) V - rejeição do pedido de gratuidade da justiça ou acolhimento do pedido de sua revogação”.
Já em relação ao preparo, o § 1º do art. 101 prevê que “o recorrente estará dispensado do recolhimento de custas até decisão do relator sobre a questão, preliminarmente ao julgamento do recurso”, enquanto o §2º dispõe “confirmada a denegação ou a revogação da gratuidade, o relator ou o órgão colegiado determinará ao recorrente o recolhimento das custas processuais, no prazo de 5 (cinco) dias, sob pena de não conhecimento do recurso”.
Como se pode perceber, o regime brasileiro de gratuidade, embora presumicionista, é bastante rígido em relação aos instrumentos de controle da sua concessão, que pode ser feito tanto pelo juiz (na fase postulatória ou recursal), quanto pela parte adversa sob o sistema de impugnação.
O sistema ainda pune a improbidade processual exercida em relação à condição de necessitado econômico com multa de até dez vezes o valor das custas processuais, sem prejuízo da condenação e possibilidade de cobrança posterior caso a parte sucumbente recobre a condição financeira.
Neste prisma, se bem aplicado, o regime legal de controle da gratuidade serve para corrigir eventuais abusos cometidos por litigantes mal-intencionados, evitando a malsinada prática do deferimento desenfreado de gratuidade de custas.
Como se pretende expor no próximo texto desta série, a fixação de critérios objetivos para a concessão da gratuidade pode não constituir a melhor saída para a reconfiguração do regime de custas no cenário nacional, sendo possível cogitar de outras propostas hermenêuticas que melhor se adequam ao julgamento do Tema Repetitivo 1.178 afetado pelo STJ.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Assim previa o artigo 132, nº 32: “a União e os Estados concederão aos necessitados assistência judiciária, criando, para esse efeito, órgãos especiais assegurando, a isenção de emolumentos, custas, taxas e selos”.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Acerca das custas judiciárias no Direito Processual Penal: PÁDUA, Gabriela Mosciaro; AZEVEDO, Júlio Camargo de. O regime de custas no processo penal. In: SILVA, Franklyn Roger Alves. O Processo Penal contemporâneo e a perspectiva da Defensoria Pública. Belo Horizonte: CEI, 2020, p. 411/428.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> ESTEVES, Diogo; SILVA, Franklyn Roger Alves. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 47/57.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Ibid., p. 47/57.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> A expressão foi cunhada pelo Defensor Público carioca Diogo Esteves.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Acerca da recorribilidade do direito à gratuidade: AZEVEDO, Júlio Camargo de. O novo regime jurídico aplicado à gratuidade de justiça e sua recorribilidade no CPC/2015. In: NERY JR., Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis. Vol. 13. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 289/316.

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JOTA

A gratuidade baseada na afirmativa da pessoa como medida de facilitação do acesso à justiça

Vulnerabilidade econômica e processo – parte 2

Fixação de critérios para concessão da gratuidade pode não constituir a melhor saída para a reconfiguração do regime de custas no país