Opinião e Análise

Thimotie Aragon Heemann

No Brasil, em que pese a maioria das infrações penais sejam processadas pelo <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ministerio-publico">Ministério Público</a> sem qualquer necessidade de aquiescência da vítima, determinados crimes possuem a sua apuração condicionada à exteriorização de vontade da parte ofendida. Nesses casos, embora titular exclusivo da ação penal pública, o parquet somente poderá dar início à persecução penal após um “pedido-autorização” da vítima,<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> o que ocorre por intermédio de uma representação.
Essa representação é regida pelo art. 39 do <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm">Código de Processo Penal</a> brasileiro (“o direito de representação poderá ser exercido, pessoalmente ou por procurador com poderes especiais, mediante declaração, escrita ou oral, feita ao juiz, ao órgão do Ministério Público, ou à autoridade policial”), e ostenta, ao menos para os Tribunais Superiores<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> e para a doutrina majoritária,<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> a natureza jurídica de condição de procedibilidade da ação penal. Isto é: nos crimes condicionados à representação, não há que falar em deflagração da persecutio criminis sem o inequívoco desejo da vítima. Não à toa, a representação também é conhecida como delatio criminis postulatória<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>já que a mesma pessoa que leva ao conhecimento do Estado a existência de um fato supostamente criminoso também exterioriza a sua intenção no sentido de que providências sejam tomadas pelo sistema de justiça<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
A verificação da vontade da vítima (leia-se: o “ato de representar”) não está submetida a maiores formalidades, sendo absolutamente desnecessária, segundo o Superior Tribunal de Justiça (STJ), a confecção de uma peça nos autos de inquérito policial ou da própria ação penal com o nomen iuris de “representação”<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. Exige-se tão somente a caracterização do inequívoco interesse da parte ofendida na persecução penal.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>
Nessa perspectiva, a representação pode ser aferida de forma expressa, quando a vítima se manifesta categoricamente (v.g.: afirmação contida em seu depoimento perante a autoridade policial expressando “que deseja representar”), ou ainda, deduzida de maneira tácita, quando a vítima – em nossa análise, mulheres em situação de violência doméstica – pratica determinados comportamentos ativos durante a fase de investigação que possibilitam ao intérprete do direito depreender o seu inequívoco interesse na responsabilização do agressor. É sobre esta última hipótese que o texto desta semana se circunscreve.
Em matéria de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, dois são os principais crimes condicionados à representação dentre aqueles usualmente praticados: o crime de ameaça (art. 147, caput, do Código Penal) e o crime de perseguição obsessiva, popularmente conhecido como stalking (art. 147-A, caput, do Código Penal). Nesses casos, infelizmente não é incomum verificar inquéritos policiais em tramitação por longínquos anos – muitas vezes até a consumação da prescrição – diante da inexistência de representação expressa por parte da vítima. Essa situação geralmente ocorre por variados fatores: vulnerabilidade jurídica e informacional das mulheres e meninas em situação de violência doméstica, falta de estrutura e capacitação de parcela dos agentes do Estado que procedem a tomada de depoimento das vítimas, dificuldade no acesso à justiça etc.
No entanto, o não oferecimento de denúncia pelo Ministério Público em tais casos, sem uma apurada análise acerca dos comportamentos até então realizados pela vítima, configura – na opinião deste autor – um grande equívoco. Essa situação vai de encontro ao âmago do sistema de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, que tem como premissa uma resposta célere, eficaz e suficientemente protetiva às mulheres e meninas em situação de violência doméstica e familiar.
Buscando transformar este cenário, a proposta do texto desta semana da coluna Direito dos Grupos Vulneráveis consiste em esmiuçar de quais são os comportamentos da vítima já avalizados pelo STJ como equivalentes à representação para fins de início da persecução penal.
<h3>Comparecimento da vítima à delegacia de polícia e registro do boletim de ocorrência</h3>
Dentre os comportamentos praticados pela mulher em situação de violência doméstica a serem interpretados como “inequívoco interesse na deflagração da persecução penal” para fins de representação, o comparecimento da vítima à delegacia de polícia e o consequente registro do boletim de ocorrência é, sem sombra de dúvidas, aquele com maior incidência na jurisprudência do Tribunal da Cidadania.
O STJ possui um vultuoso número de acórdãos reconhecendo o registro do boletim de ocorrência por parte da vítima como uma atitude equivalente à representação,<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> interpretação que também encontra eco na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF)<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>. Parece-nos evidente o acerto dos Tribunais Superiores nessa situação, uma vez que o ato de levar ao conhecimento do Estado fatos que evidenciam – ao menos prima facie – o interesse da vítima na tomada de providências.
Assim, existindo no bojo de determinado inquérito policial, boletim de ocorrência registrado pela mulher vítima de violência doméstica, o membro do parquet terá por satisfeito o requisito da representação da ofendida, sendo possível – se for o caso – o oferecimento da denúncia, e não sendo necessária a concessão de prazo à autoridade policial para colher de forma expressa a representação da vítima.
<h3>Solicitação de medidas protetivas de urgência pela mulher em situação de violência doméstica</h3>
O requerimento de medidas protetivas de urgência (MPUs) já foi interpretado algumas vezes pelo STJ como um comportamento da vítima equivalente à representação para fins de deflagração da persecutio criminis.<a style="font-family: inherit; font-style: inherit; font-variant-ligatures: inherit; font-variant-caps: inherit;" href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a> Embora não tenha ocorrido propriamente um overruling deste entendimento, o tema é árido e algumas considerações devem ser realizadas.
Em 19 de abril deste ano, entrou em vigor a <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14550.htm">Lei 14.550/2023</a>, diploma legislativo que promoveu algumas alterações na Lei Maria da Penha. Dentre as modificações, foi acrescentado ao art. 19, o §5º, o qual possui a seguinte redação: “As medidas protetivas de urgência serão concedidas independentemente da tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência”. Em suma, o legislador brasileiro colocou – de uma vez por todas – uma pá de cal na discussão sobre a obrigatoriedade ou não, de uma medida protetiva de urgência estar sempre atrelada a fatos revestidos de natureza penal.
Atualmente, não existem mais dúvidas: uma mulher em situação de violência doméstica pode requerer medidas protetivas de urgência sem a necessidade de narrar um fato delituoso à autoridade policial. E não é só. Caso tenham sido vítimas de uma infração penal, mulheres e meninas podem optar por requerer MPUs, porém não registrar o boletim de ocorrência. A lógica inversa também é possível (registro de boletim de ocorrência sem o requerimento de medidas protetivas de urgência).
Indaga-se, portanto: após as modificações promovidas na Lei Maria da Penha pela Lei 14.550/2023, o requerimento de medidas protetivas de urgência pode ser interpretado como comportamento da vítima apto a demonstrar o inequívoco interesse em deflagrar a persecução penal para fins de representação? A resposta é: depende.
Se a vítima comparecer até a delegacia de polícia e apenas requerer MPUs, o requisito da representação não estará satisfeito, ainda que os fatos narrados no requerimento de medidas protetivas de urgência sejam revestidos de natureza penal. Neste caso, deverá ser respeitada a autonomia da mulher em situação de violência doméstica e familiar, que optou pela não confecção do boletim de ocorrência, mas apenas pelo requerimento das medidas, nos termos do novel art. 19, §5º, da Lei 11.340. Por outro lado, caso sejam requeridas MPUs em conjunto com a confecção de boletim de ocorrência, o ato de requerer as medidas protetivas de urgência será mais um elemento que, somado ao registro do B.O, serão levados em consideração para aferir o interesse da vítima no processamento do agressor.
<h3>Fornecimento e indicação de material probatório pela própria mulher vítima de violência doméstica</h3>
Em matéria de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, é absolutamente natural que as vítimas forneçam à autoridade policial material apto a corroborar suas declarações, especialmente em crimes condicionados à representação (v.g.: ameaça, perseguição obsessiva, invasão de dispositivo informático etc.). Vejamos dois exemplos.
Exemplo 1: mulher em situação de violência doméstica relata ter sido ameaçada de morte (art. 147, caput, do Código Penal) e apresenta para a autoridade policial prints de whatsapp que corroboram suas declarações.
Exemplo 2: mulher em situação de violência doméstica relata ser vítima do crime de perseguição obsessiva praticada na rede mundial de computadores (cyberstalking, art. 147-A, §1º, II, do Código Penal) por seu ex-namorado, e entrega vídeos, mensagens de áudio enviadas pelo agressor, e ainda indica testemunhas que podem colaborar na investigação.
Ambas as situações evidenciam um comportamento ativo da vítima para além do depoimento prestado perante a autoridade policial. Nesses casos, o STJ vem interpretando a apresentação de material probatório no curso das investigações,<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a> ou mesmo a indicação de testemunhas a serem ouvidas pela autoridade policial<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a> como atitudes equivalentes à representação para fins de deflagração da persecução penal.
<h3>Ofício e/ou e-mail dirigido à autoridade policial</h3>
Dada a praticidade ofertada, o acúmulo de tarefas diárias e, às vezes, até mesmo a distância territorial, é comum que em determinadas circunstâncias, vítimas de crimes optem por comunicar determinado fato delituoso ao Estado por intermédio de e-mails ou ofícios. Em tais situações, o STJ já decidiu, por mais de uma vez,<a style="font-family: inherit; font-style: inherit; font-variant-ligatures: inherit; font-variant-caps: inherit;" href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a> que o encaminhamento de ofício e/ou e-mail à autoridade policial solicitando providências em relação a determinados fatos deve ser interpretado como um comportamento da vítima que reflete em inequívoco interesse na promoção da responsabilização penal do agente.<a style="font-family: inherit; font-style: inherit; font-variant-ligatures: inherit; font-variant-caps: inherit;" href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a>
A análise dos comportamentos ativos promovidos por mulheres vítimas de violência doméstica durante a fase de investigação aparenta ser uma grande possibilidade de desburocratizar a persecução penal dos crimes condicionados à representação, especialmente em localidades com altos índices de vulnerabilidade, baixo acesso à justiça e estrutura estatal deficitária.
Diante deste estado de coisas, caberá aos membros do Ministério Público um exame minucioso e com acurácia de todos os atos até então praticados no bojo do inquérito policial, promovendo de forma célere – porém não açodada – a responsabilização criminal de homens autores de violência doméstica e evitando qualquer paralisação desnecessária de casos já aptos a serem denunciados.
Espero que tenham gostado!
Até a próxima!
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Embora visualizada em diversos cursos e manuais de processo penal, a expressão “pedido-autorização” para se referir à representação do ofendido é de autoria do professor Júlio Fabbrini Mirabete. Para um aprofundamento sobre esta ideia, ver MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no HC 817.678/SP. Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 09/05/2023.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Processual Penal. 20. ed. São Paulo: Forense, 2023; DE LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal. 12. ed. Salvador: JusPodvim, 2023; ALVES, Leonardo Barreto Moreira. Manual de Processo Penal. Salvador: JusPodivm, 2022; MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2007. Em sentido contrário, Guilherme Madeira Dezem reconhece o direito de representação como uma questão ligada ao interesse de agir: “Entendemos que se trata de uma questão ligada ao interesse de agir. A representação é necessária tanto para o inquérito policial quanto para a ação penal. Não pode haver inquérito policial ou ação penal na falta de representação”. DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. p. 342.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RHC 57.487/RS. Rel. Min. Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 07/06/2016.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a>  Art. 5º §4º do CPP: O inquérito, nos crimes em que a ação pública depender de representação, não poderá sem ela ser iniciado.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no HC 791.617/SP. Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 06/03/2023; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 203398 AgR. Rel. Min. Alexandre de Moraes, Primeira Turma, julgado em 17/08/2021.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no HC 791.617/SP. Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 06/03/2023; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 203398 AgR. Rel. Min. Alexandre de Moraes, Primeira Turma, julgado em 17/08/2021.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> A título de exemplo: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1.933.600/SP. Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 08/06/2021; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1.988.018/SP. Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 24/05/2022.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RHC 123086. Min. Rel. Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 09/09/2014.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no HC n. 510.464/PR, Rel. Min. Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 15/12/2020; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg nos EDcl no HC 674.675/SP. Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 03/08/2021.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no RHC 156.133/CE. Rel. Min. Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 27/03/2023.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 349.938/SP. Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 12/04/2016.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1.455.575/RS. Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 10/11/2015.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RHC 156.955/SP. Rel. Min. Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 02/05/2023.

violência contra a mulher

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JOTA

Desburocratizando o início da persecução penal em casos de violência doméstica

Violência contra a mulher e crimes condicionados à representação da vítima

Desburocratizando o início da persecução penal em casos de violência contra a mulher, que em sua maioria ocorrem por representação da vítima