Opinião e Análise

Thimotie Aragon Heemann

Com origem no Direito alemão<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> e no item 11 ‘b’ da Carta Mundial da Natureza de 1982, publicada pela Assembleia Geral da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/onu">ONU</a>,<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> o princípio da precaução (precautionary principle) foi originariamente concebido como norma de direito ambiental, mas o seu uso vem sendo admitido pelos tribunais superiores nos mais variados ramos do Direito (v.g: Direito ambiental<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, Direito do consumidor<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, direito à saúde<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> etc).
O cenário não é diferente no Direito comparado, admitindo-se a aplicação do princípio da precaução inclusive – cum grano salis, é verdade – no Direito Penal.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> Portanto, engana-se quem interpreta o princípio da precaução como uma norma de incidência exclusiva em casos ambientais. Cuida-se também – na opinião deste autor – de um princípio geral do Direito dos Grupos Vulneráveis, sobretudo por dois principais motivos: i) o alto grau de abstração do seu conteúdo; e ii) salvaguardar determinada pessoa ou coletividade (na ampla maioria dos casos, vulneráveis) de determinado risco hipotético, porém desconhecido, o que caracteriza sua principal funcionalidade
Em relação ao primeiro atributo, é a acentuada densidade normativa que permite ao princípio da precaução uma aplicação de forma desvinculada de qualquer área específica, sendo alargado o seu âmbito de incidência também para feitos envolvendo mulheres, consumidores, crianças e adolescentes, comunidades tradicionais, idosos, pessoas com deficiência, população LGBTQIA+ etc.
Se, por um lado, a abstração do princípio da precaução o habilita a transitar pelo <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis">Direito dos Grupos Vulneráveis</a> – como princípio reitor – e em de outros ramos da ciência jurídica, é verdade que a referida característica não é isenta de críticas. Não à toa, Cass Sunstein, em obra paradigmática sobre o tema, alerta que: “Embora tenha sido incorporado explicita ou implicitamente, em uma multiplicidade de ordenamentos jurídicos nacionais e internacionais, não existe consenso sobre o conteúdo e forma de utilização do referido princípio”.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> Nesse mesmo sentido, a própria Corte Interamericana de Direitos Humanos reconhece que “O conteúdo do princípio da precaução varia dependendo do instrumento que o consagra”.<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>
O segundo atributo do princípio da precaução diz respeito à sua funcionalidade. A precaução possui espaço de aplicação quando não se há certeza acerca do risco ou dano que aparenta estar em vias de ser consumado. Neste ponto introdutório, um pequeno disclaimer deve ser feito: na opinião deste autor, o risco/dano a ser evitado pelo princípio da precaução não deve ser compreendido unicamente na perspectiva científica, mas também sob o ângulo existencial e de proteção de direitos humanos.<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>
Assim, diante de uma zona de penumbra (twilight zones), a precaução propõe uma atuação precavida, objetivando elidir ex ante o potencial risco/dano. Frederico Amado define com precisão a ideia do princípio em comento, ao afirmar que “a precaução caracteriza-se pela ação antecipada diante do risco desconhecido”.<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a> Ou, ainda, nas palavras da professora Italiana Silva Zorzetto: “uma prevenção da prevenção”.<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a> Para ilustrar o tema central deste texto aos queridos leitores desta coluna, trago à baila alguns exemplos de aplicação do ethos da precaução no Direito dos Grupos Vulneráveis.
Exemplo nº 01: Realização do direito à consulta livre, prévia e informada às comunidades tradicionais, nos termos do artigo 6.1, alínea ‘a’ da Convenção da 169 da OIT. Não raras as vezes o asseguramento da realização do direito à consulta deriva, dentre outros fundamentos, também do princípio da precaução, afinal, nem sempre é possível realizar um juízo de certeza e conhecimento ex ante acerca do potencial risco vindouro de um empreendimento econômico, política pública ou qualquer outro ato a ser realizado às margens de uma comunidade indígena, quilombola ou ribeirinha.
Exemplo nº 02: A promoção de acolhimento institucional de criança e adolescente pelo Conselho Tutelar, com a comunicação incontinenti do fato ao Ministério Público, nos termos do artigo 136, parágrafo único, do Estatuto da Criança e do Adolescente (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/eca">ECA</a>). É bem verdade que, neste caso, a grande maioria dos casos de acolhimento institucional pelo Conselho Tutelar ad referendum do Poder Judiciário é pautada em um risco conhecido. Todavia, nada impede que, existindo dúvida acerca da existência de uma situação de perigosidade narrada aos Conselheiros Tutelares, e sendo o acolhimento a única solução disponível in concreto, este seja realizado com base no superior interesse da criança/adolescente, bem como no princípio da precaução.
Transportando o ethos da precaução para o combate à violência contra a mulher, a postura do Estado e de suas respectivas autoridades (juízes, membros do Ministério Público etc.) deve ser pautada por uma ação precavida e antecipada, buscando evitar a consumação de uma situação de violência de gênero prognosticamente visualizada a partir das declarações prestadas pela mulher (ou menina) vítima de violência ou, ainda – e na mesma linha –, salvaguardar a integridade de mulheres e meninas, ainda que exista dúvida acerca da perigosidade da situação narrada às autoridades. Sobre esse ponto, Thiago Pierobom de Ávila foi preciso ao afirmar que “se não há certeza de que a mulher está protegida, então ela deve ser protegida”.<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a> Este raciocínio final pode ser defendido a partir das seguintes premissas.
Premissa nº 01: o Superior Tribunal de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/superior-tribunal-de-justica">STJ</a>) vem admitindo a concessão de medidas protetivas de urgência (MPUs) com base exclusivamente na palavra da vítima.<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a> Sobre esse ponto em específico, é de bom alvitre lembrar que as medidas protetivas de urgência previstas na <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lei-maria-da-penha">Lei Maria da Penha</a> podem ser revogadas ou alteradas a qualquer tempo, eis que regidas pela cláusula rebus sic stantibus.
Premissa nº 02: o STJ confere especial relevância, em matéria probatória, à palavra da vítima nos crimes cometidos em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher.<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a> Dessa forma, somando esse raciocínio à teoria dos poderes implícitos (implied powers),<a href="#_ftn15" name="_ftnref15">[15]</a> segundo a qual “quem pode o mais, pode o menos”,  é possível afirmar que nada obstaria, ao sentir deste autor, a aplicação do princípio da precaução no bojo das medidas protetivas que, para parcela do Superior Tribunal de Justiça, sequer precisam estar atreladas a determinado fato criminoso ou expediente investigatório.<a href="#_ftn16" name="_ftnref16">[16]</a> A propósito, oportuno lembrar neste momento da lição Maria Berenice Dias: “As medidas protetivas não são, necessariamente preparatórias de qualquer ação judicial. Não visam processos, mas pessoas”.<a href="#_ftn17" name="_ftnref17">[17]</a>
Premissa nº 03: não há consenso acerca da natureza jurídica das MPUs no Superior Tribunal de Justiça, existindo três posições acerca do tema. A primeira posição compreende as medidas protetivas de urgência como cautelares satisfativas de natureza cível.<a href="#_ftn18" name="_ftnref18">[18]</a> Neste caso, a aplicação do princípio da precaução não encontraria maiores obstáculos já que se daria por intermédio do seu fluxo normal. Por outro lado, existem provimentos decisórios do STJ reconhecendo a natureza híbrida (cível e criminal) das medidas protetivas de urgência, razão pela qual seriam desafiadas pelo recurso do agravo de instrumento.<a href="#_ftn19" name="_ftnref19">[19]</a>
Nessa hipótese, também não existiriam maiores óbices para a aplicação do princípio da precaução. Por fim, uma terceira posição no Tribunal da Cidadania reconhece a natureza de cautelar acessória de natureza criminal às medidas protetivas de urgência.<a href="#_ftn20" name="_ftnref20">[20]</a> Trata-se , na opinião deste autor e com todas as vênias ao STJ, de entendimento equivocado a partir do estudo da própria morfologia das MPUs, conforme a própria natureza do rol exemplificativo (numerus apertus) das medidas protetivas previstas contra o agressor (art. 22) e para a ofendida (art. 23), que evidencia pela expressão “dentre outras” o caráter aberto e atípico do rol de MPUs, além de materializar o poder geral de cautela do juiz no bojo da Lei Maria da Penha, este último não admitido pela maioria da doutrina no processo penal brasileiro.<a href="#_ftn21" name="_ftnref21">[21]</a> E mesmo que compreendidas como cautelares acessórias no âmbito criminal – posição a qual na opinião deste autor não faz sentido –, as premissas número um e dois autorizam sem maiores problemas a aplicação do princípio da precaução no manejo das MPUs.
Defende-se como ideia central deste texto, portanto, a aplicação do princípio da precaução no âmbito das medidas protetivas de urgência. A precaução como um standard interpretativo para a análise das medidas protetivas de urgência, em especial nos casos em que paira sobre os atores do sistema de justiça uma incerteza acerca da efetiva perigosidade da mulher/menina vítima de violência diante da situação narrada, ou mesmo em casos de dúvidas acerca da concessão ou não da medida – sobretudo nas hipóteses em que a verossimilhança dos fatos narrados se situa em uma zona de penumbra – nada impedindo que, uma vez verificada a inoportunidade da concessão da medida, seja ela imediatamente revogada.
Já dizia adagio popular que “é melhor prevenir do que remediar”. Pois bem. Em matéria de violência doméstica contra a mulher o cenário não é diferente, e a realidade nos impõe uma certeza: é necessário agir, antes que seja tarde demais!
Até a próxima!
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> ANTUNES, Paulo de Bessa. Enciclopédia Jurídica da PUCSP. Disponível em: <a href="https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/330/edicao-1/os-principios-da-precaucao-e-da-prevencao-no-direito-ambiental">https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/330/edicao-1/os-principios-da-precaucao-e-da-prevencao-no-direito-ambiental</a>. Acesso em: 12 abr. 2022
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolução A/RES/37/7 da Assembleia da Organização das Nações Unidas, de 28 de outubro de 1982. Disponível em: https://www.soas.ac.uk/cedep-demos/000_P514_IEL_K3736-Demo/treaties/media/1982%20UN%20World%20Charter%20for%20Nature%201982.pdf. Acesso em: 12 abr. 2022.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 627189. Rel. Min. Dias Toffoli, j. 08/06/2016, entre outros.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Trata-se de princípio implícito no Código de Defesa do Consumidor, que tem por objetivo resguardar este de riscos desconhecidos e relativos aos produtos e serviços colocados no mercado de consumo. Sobre o tema, ver: HARTMANN, Ivan Alberto Martins. O princípio da precaução e sua aplicação no direito do consumidor. Revista Direito &amp; Justiça, v. 38. n. 2 p. 156-182, jul/dez 2012.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 5592. Rel. Min. Cármen Lúcia, Relator p/ Acórdão: Edson Fachin, Tribunal Pleno, j. 11 set. 2019.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> BESTANI, Adriana. Principio de precaución. Buenos Aires: Astrea, 2015, p. 237-304
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> SUNSTEIN, Cass. Laws of fear – beyond the precautionary principle. Reino Unido: Cambridge University Press, 2005, p. 15
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Corte IDH, Opinião Consultiva nº 26/2020, publicada em 09 de novembro de 2020, parágrafo § 179.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Este parece também ser o entendimento de Maria Berenice Dias, ao afirmar que: “As medidas fundadas na precaução não pressupõem que as práticas às quais reagem sejam perigosas, mas simplesmente que exista uma suspeita acerca da sua perigosidade. Diferentemente do conceito clássico de prevenção do perigo, no de precaução está em causa ‘um cuidado antes do cuidado’. Uma vez comprovada a perigosidade ou ausência de perigosidade de uma ação, o princípio da precaução perde sentido já que deixa de existir qualquer dúvida”. (DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 8. ed. Bahia: JusPodivm, 2020, p. 170).
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> AMADO, Frederico. Direito ambiental. Bahia: JusPodivm, 2018, p. 81.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> ZORZETTO, Silvia. Concepto de Riesgo y Princípio de Precaución. Santiago: Ediciones Olejnik, 2018, p. 25.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> DE ÁVILA, Thiago Pierobom. Medidas protetivas da Lei Maria da Penha: natureza jurídica e parâmetros decisórios. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 157, jul. 2019.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RHC 34.035/AL. Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 05 nov. 2013.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 1236017/ES. Rel. Min. Felix Fischer, j. 05 abr. 2018.
<a href="#_ftnref15" name="_ftn15">[15]</a> ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Supreme Court of the United States. Miranda v. Arizona, 384 U.S. 436 (1966), Washington D.C, 13 de junho de 1966.
<a href="#_ftnref16" name="_ftn16">[16]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.419.421/GO. Rel. Ministro Luís Felipe Salomão, j. 11 fev. 2014. Nesse sentido, ainda, é o teor do Enunciado nº 37 do Fórum Nacional de Juízes de Violência Doméstica: “A concessão da medida protetiva de urgência não está condicionada à existência de fato que configure, em tese, ilícito penal”.
<a href="#_ftnref17" name="_ftn17">[17]</a>DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 8. ed. Bahia: JusPodivm, 2020, p. 170.
<a href="#_ftnref18" name="_ftn18">[18]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.419.421/GO. Rel. Ministro Luís Felipe Salomão, j. 11 fev. 2014.
<a href="#_ftnref19" name="_ftn19">[19]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgREsp 608.061/PE. Rel. Min Sebatistão Reis Júnior, j. 17 maio 2016.
<a href="#_ftnref20" name="_ftn20">[20]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1623144/MG. Rel. Min. Nefi Cordeiro, j. 17 ago. 2017.
<a href="#_ftnref21" name="_ftn21">[21]</a> Sobre a figura do poder geral de cautela no processo penal, adverte Antônio Magalhães Gomes Filho: “(...) não se pode cogitar em matéria criminal de um poder geral de cautela, por meio do qual o juiz possa impor ao acusado restrições não expressamente previstas pelo legislador, como sucede no âmbito da jurisdição civil; tratando-se de limitação da liberdade, é imprescindível a expressa permissão legal para tanto, pois o princípio da legalidade dos delitos e das penas não diz respeito apenas ao momento da cominação, mas à legalidade da inteira repressão , que põe em jogo a liberdade da pessoa desde os momentos iniciais do processo até a execução da pena imposta.” (FILHO, Gomes Antônio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 57) Ainda nesse sentido: BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo penal. Rio de Janeiro: Campus: Elsevier, 2012. p. 759-761. GOMES, Luiz Flávio. Prisão e medidas cautelares: comentários à Lei 12.403, de 4 de maio de 2011. In BIANCHINI, Alice et al; GOMES, Luiz Flávio; MARQUES, Ivan (coords). 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 4

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JOTA

Havendo suspeita ou dúvida acerca da perigosidade da situação narrada, mulheres e meninas devem ser protegidas

Princípio da precaução e medidas protetivas de urgência

Havendo suspeita ou dúvida acerca da perigosidade da situação narrada, mulheres e meninas devem ser protegidas