Opinião e Análise

Júlio Camargo de Azevedo

Em fevereiro de 2023, o Superior Tribunal de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stj">STJ</a>) firmou inédito precedente no julgamento do Conflito de Competência 190.666-MG, reconhecendo a existência de um “microssistema de proteção dos vulneráveis” no ordenamento jurídico brasileiro.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
O tema foi primorosamente tratado nesta coluna, em <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/principio-do-juizo-imediato-e-medidas-protetivas-de-urgencia-07082023#_ftn6">texto escrito pelo amigo e coautor Thimotie A. Heemann</a>, no qual se discutiu a aplicação do princípio do juízo imediato às mulheres em situação de violência, quando da apreciação dos pedidos de medidas protetivas de urgência.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Considerando a relevância do debate, bem como que a ideia de “microssistema protetivo” já foi objeto dos estudos deste autor em outra oportunidade,<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> toma-se a liberdade de acrescentar algumas reflexões à presente discussão, que talvez possam auxiliar a evolução da tutela jurisdicional prestada a indivíduos e grupos vulneráveis.
O presente escrito procura atender, portanto, a dois objetivos: i) fundamentar a existência de um microssistema protetivo em favor de sujeitos vulneráveis no ordenamento jurídico brasileiro; ii) explorar algumas potencialidades que o reconhecimento desse microssistema pode surtir no campo da tutela jurisdicional.
De saída, cumpre destacar que um microssistema pode ser definido como um mosaico integrado de diplomas intercomunicantes, cujos comandos normativos se interpenetram e subsidiam, a fim de tornar efetiva a tutela jurisdicional dirigida a determinadas classes de pessoas ou direitos.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Caracterizam-se pela intertextualidade sistêmica, pela integração dinâmica e pela residualidade de aplicação das regras ordinárias, privilegiando-se os comandos evidenciados nas legislações componentes do conjunto de normas interligadas.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
É o que ocorre, por exemplo, com o microssistema de processo coletivo brasileiro, que têm na Lei de Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985) e no Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990) um centro valorativo-normativo, que irradia aplicabilidade a todos os demais diplomas afetos à tutela dos direitos transindividuais.
No caso da proteção jurídica destinada a indivíduos e grupos vulneráveis, a ideia de um microssistema calha à promoção da tutela jurídica de distintas espécies de vulnerabilidade, tomando-se a condição vulnerável dos sujeitos como ponto de partida.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
Referido fio condutor, identificado pela situação de risco ou fragilidade derivada de relações de desrespeito, subjugação e discriminações histórico-culturais, permite cogitar de uma plêiade de situações normativas protetivas, viabilizando uma prestação jurisdicional especificamente voltada a estes segmentos sociais.
A proposta aqui exposta é vantajosa face à existência de um contingente significativo de grupos populacionais que carecem de adequada representatividade política nas arenas legislativas, permanecendo à deriva de qualquer proteção específica. É o caso, por exemplo, da população LGBTQIAP+, da população em situação de rua, dos refugiados e deslocados internos etc.
Juridicamente, a ideia de microssistema caminha ainda ao encontro da indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, afinal, ao instituírem regras de proteção específica a pessoas vulneráveis, os tratados internacionais e os estatutos internos desenvolvem uma afinidade normativa incindível, interagindo e complementando-se para concretizar efetiva guarida a estas populações marginalizadas.
É o que ocorre, aliás, com as 100 Regras de Brasília sobre Acesso à Justiça das Pessoas em condição de Vulnerabilidade, documento internacional que, sem prescindir da distinção entre as espécies de vulnerabilidade, espraia eficácia protetiva sobre todas as classes de sujeitos que se enquadrem como vulneráveis.
A reforçar o alegado, importante considerar, na linha do que decidiu o Tribunal da Cidadania, que o artigo 13 da Lei Maria da Penha estabelece verdadeira norma de reenvio em relação às normas instituídas pelo Estatuto do Idoso e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), garantindo uma intercomunicabilidade entre as regras protetivas.
Conforme estabelece o dispositivo: “Ao processo, ao julgamento e à execução das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher aplicar-se-ão as normas dos Códigos de Processo Penal e Processo Civil e da legislação específica relativa à criança, ao adolescente e ao idoso que não conflitarem com o estabelecido nesta Lei”.
Como bem salientou a Ministra Laurita Vaz, em relação à aplicação do juízo imediato:
<blockquote class="jota-article__citation">“De fato, a aplicação do princípio do juízo imediato na apreciação dos pedidos de medidas protetivas de urgência não entra em conflito com as demais disposições da Lei 11.343/06. Ao contrário, essa medida facilita o acesso da mulher vítima de violência doméstica a uma rápida prestação jurisdicional, que é o principal objetivo perseguido pelas normas processuais especiais que integram o microssistema de proteção de pessoas vulneráveis que já se delineia no ordenamento jurídico brasileiro.</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">O acesso rápido e efetivo à tutela jurisdicional assume especial relevo na situação de risco em que a mulher se encontra quando solicita medidas protetivas de urgência. É justamente o seu caráter de urgência que reclama a aplicação do princípio do juízo imediato, tendo em vista que o juízo do domicilio normalmente é o primeiro ao qual a mulher tem acesso e o que tem interação mais próxima com a vítima”.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a></blockquote>
Para além desta hipótese aplicativa, entretanto, advoga-se ser possível cogitar de outras situações práticas de intercomunicação normativa, decorrentes do reconhecimento de um microssistema protetivo em favor de sujeitos vulneráveis.
Nesse sentido, entende-se possível:
<ol>
<li>a adoção da jurisdição mais favorável (forum shopping), com base no art. 15 da Lei Maria da Penha;</li>
<li>o suprimento do pressuposto processual da capacidade postulatória, com base nos arts. 12, § 1º, e 19 e 27 da Lei Maria da Penha, 87 da Lei Brasileira de Inclusão, 49, inc. IV, da Lei nº 12.594/2012 (Sinase), 232 da CF/1988 e nas regras 33 e 34 das 100 Regras de Brasília;</li>
<li>a admissão da intervenção do terceiro apoiador em favor da parte vulnerável, à luz da regra instituída no art. 206 do ECA;</li>
<li>a tramitação prioritária de autos, com fulcro nos arts. 1.048 do CPC/2015, 71 do Estatuto do Idoso, 152, § 1º, do ECA e 33 da Lei Maria da Penha;</li>
<li>a ampliação das hipóteses de segredo de justiça, com base no art. 143 do ECA e na regra 76 das 100 Regras de Brasília;</li>
<li>a autorização do processamento de autos nas férias forenses e a prática de atos processuais em horários noturnos, com suporte no art. 14, parágrafo único, da Lei Maria da Penha;</li>
<li>a flexibilização dos prazos processuais, com fulcro no art. 198, inc. II, do ECA;</li>
<li>o conhecimento de pedidos de medidas protetivas de urgência deduzidos por sujeitos vulneráveis, com base nos arts. 98 a 102 do ECA, 43 a 45 do Estatuto do Idoso, 18 a 23 da Lei Maria da Penha, 10, parágrafo único, da Lei Brasileira de Inclusão e 4º da Lei de Migração;</li>
<li>a admissão do apoio de equipes multidisciplinares, com base nas regras 41, 64 e 65 das 100 Regras de Brasília e arts. 29 a 32 da Lei Maria da Penha, 150 e 151 do ECA e 2º, §§ 1º e 4º, inc. I, e 36, § 1º, da Lei Brasileira de Inclusão;</li>
<li>a aplicação das especificidades recursais protetivas, com base nos arts. 198 a 199-E do ECA.</li>
</ol>
Todas essas hipóteses de adequação da tutela jurisdicional no campo processual, favorecem uma aplicação sistêmica das normas erigidas em favor de sujeitos vulneráveis, referendando a aplicabilidade prática de um microssistema protetivo.
Buscou-se, neste breve escrito, explorar algumas dessas potencialidades, quem sabe auxiliando o descobrimento de novas ferramentas para uma adequada tutela de indivíduos vulneráveis.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.  CC 190.666/MG. Rel. Min. Laurita Vaz, 3ª Seção, j. em 8/2/2023.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/principio-do-juizo-imediato-e-medidas-protetivas-de-urgencia-07082023#_ftn6">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/principio-do-juizo-imediato-e-medidas-protetivas-de-urgencia-07082023#_ftn6</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> AZEVEDO, Júlio Camargo de. Tutela jurisdicional adequada às pessoas em situação de vulnerabilidade. 2019. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> AZEVEDO, Júlio Camargo de. O microssistema de processo coletivo brasileiro: uma análise feita à luz das tendências codificadoras. Revista Jurídica da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, v. 2, 2012, p. 111-130.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> AZEVEDO, Júlio Camargo de. Vulnerabilidade: critério para adequação procedimental – a adaptação do procedimento como garantia ao acesso à justiça de sujeitos vulneráveis. Belo Horizonte: Editora CEI, 2021.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Sobre a condição vulnerável, conferir texto escrito nesta coluna: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/o-que-e-isto-a-vulnerabilidade-29042021">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/o-que-e-isto-a-vulnerabilidade-29042021</a>
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.  CC 190.666/MG. Rel. Min. Laurita Vaz, 3ª Seção, j. em 8/2/2023.

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JOTA

Dez situações práticas de intercomunicação normativa

Microssistema de proteção de sujeitos vulneráveis

Dez situações práticas de intercomunicação normativa