Opinião e Análise

Tainã Levorato Basso

Thimotie Aragon Heemann

De acordo com estudos realizados pelo Fundo da Organização das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre os anos de 2016 e 2020, 35 mil crianças e adolescentes foram mortas de forma violenta em território brasileiro.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> Como se isso não bastasse, mais de 180 mil meninos e meninas foram vítimas de violência sexual.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Dados empíricos extraídos do próprio estudo demonstram a existência de dois fatores determinantes para esse fenômeno: a) a exponencial parcela dos crimes são cometidos no interior da própria residência da vítima e; b) mais de 86% dos crimes são praticados por alguém que possui vínculo familiar ou afetivo com a vítima.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> Mostrou-se evidente, portanto, a necessidade da criação de um microssistema legal de combate à violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes.
Percebendo esse cenário inóspito no qual crianças e adolescentes têm dificuldade de exercer seus direitos fundamentais sob as mais variadas perspectivas, o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/congresso-nacional">Congresso Nacional</a> editou, em maio de 2022, a <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/l14344.htm">Lei 14.344/2022</a>, popularmente conhecida como Lei Henry Borel.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Inspirada e espelhada na Lei Maria da Penha, o novo diploma criou o tão esperado sistema combate à violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes, disciplinando medidas protetivas de urgência, tipificando crimes específicos para aqueles que atentam contra o próprio microssistema protetivo, alargando o rol de atribuições de órgãos como o Conselho Tutelar, dentre outras medidas.
A jurisprudência envolvendo os efeitos espraiados pela Lei Henry Borel ainda é tímida – para não dizer inexistente –, sendo possível verificar no âmbito dos Tribunais Superiores apenas três decisões monocráticas no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Todas dizem respeito à aplicação (ou não) da lei no caso analisado.
A partir deste cenário, e buscando antecipar uma discussão que certamente chegará aos bancos do STJ, é que propomos na coluna desta semana a seguinte tese jurídica: toda criança e adolescente vítima de crime cometido em contexto de violência doméstica e familiar sofre, automaticamente e de forma presumida, abalo moral indenizável. Vamos aos argumentos que evidenciam este raciocínio.
<h3>Posicionamento do STJ em casos de violência doméstica contra a mulher</h3>
Ao julgar o Recurso Especial 1.643.051/MS, o Superior Tribunal de Justiça decidiu, em sede de recurso repetitivo, que em casos de infrações penais cometidas em âmbito de violência doméstica e familiar contra a mulher, “a indenização por dano moral é in re ipsa (presumida), ou seja, exsurge da própria conduta típica, independentemente de produção de prova específica”.<a style="font-family: inherit; font-style: inherit; font-variant-ligatures: inherit; font-variant-caps: inherit;" href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> Em síntese: para o STJ, toda mulher vítima violência doméstica e familiar sofre automaticamente dano moral a ser indenizado, sendo desnecessária qualquer instrução probatória.
Entendemos que, a fortiori, o raciocínio deve ser aplicado in totum aos casos envolvendo crianças e adolescentes. Conforme mencionamos no início deste texto, a Lei Henry Borel materializa uma “cópia adaptada” da Lei Maria da Penha, porém destinada aos menores de 18 anos. Ambos os diplomas normativos trabalham com duas premissas estruturais para fins de verificação/caracterização do dano: infrações penais cometidas em contexto de violência doméstica e familiar e vítimas vulneráveis.
Não há, portanto, razão lógica para a ratio decidendi cristalizada pelo STJ aos casos envolvendo infrações penais cometidas em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher não ser transportada in utilibus também aos casos envolvendo crianças e adolescentes<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
<h3>A hipervulnerabilidade de crianças e adolescentes em situação de violência doméstica</h3>
Assim como mulheres em situação de violência doméstica e familiar,<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> crianças e adolescentes são consideradas hipervulneráveis pela jurisprudência do STJ.<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> Isso significa, sob o ponto de vista jurídico, que pessoas menores de 18 anos possuem uma vulnerabilidade acentuada quando figuram em uma relação processual. Esta hipervulnerabilidade de crianças e adolescentes deriva da própria condição peculiar de pessoas em desenvolvimento biológico e psicossocial. Dessa forma, é o critério etário que torna possível o reconhecimento de crianças e adolescentes como pessoas hipervulneráveis.
Nesse contexto, a fragilidade de crianças e adolescentes é intensificada sobremaneira quando vítimas de violência doméstica e familiar. Isto se materializa a partir de um cenário pernicioso e hostil, já que, em um momento sensível de amadurecimento da vida (primeira infância, infância ou adolescência), menores de dezoito anos se veem desprotegidos no próprio seio familiar. Pessoas que possuem a obrigação legal de cuidado, proteção ou vigilância, inclusive para fins de omissão penalmente relevante (art. 13, §2º, alínea ‘a’ do Código Penal)<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a> revelam-se autores(as) de infrações penais, violando o próprio dever constitucional de cuidado destinado à família pelo art. 227, caput, da Constituição Federal de 1988.<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>
Além disso, quando vítimas de violência doméstica e familiar, crianças e adolescentes continuam – em parcela significativa dos casos – reféns de seus algozes. Isso ocorre em razão de vários fatores, dentre os quais o medo e até mesmo a ausência de compreensão acerca da ilicitude do ato em razão da tenra idade, para revelar o ocorrido para terceiros. Soma-se a isto, ainda, o permanente estado de revitimização a que são submetidas, já que geralmente continuam a habitar o “local do crime”, ambiente onde foram vítimas de violência (v.g.: casa dos pais, casa do avô etc.).
E não é só. Em razão da peculiar condição de pessoas em desenvolvimento, crianças e adolescentes são mais suscetíveis a abalos emocionais causados por sofrimentos de toda espécie. Os danos suportados na infância possuem o potencial de transformação em traumas indeléveis a serem carregadas durante toda a existência daquele(a) indivíduo.
Seria ilógico, portanto, até mesmo sob a ótica constitucional, reconhecer a existência de dano moral in re ipsa aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher e não estender o raciocínio também para os casos envolvendo vítimas crianças e adolescentes.
<h3>Garantia constitucional da prioridade absoluta e argumento a fortiori</h3>
Se o sistema de combate à violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes foi idealizado sob a inspiração da Lei 11.340/2006, não podemos olvidar, no entanto, que existem pequenas diferenças entre a Lei Henry Borel e a Lei Maria da Penha, todas plenamente justificáveis à luz da garantia constitucional da prioridade absoluta. A título de exemplo, trouxemos o prazo para análise pelo magistrado dos pedidos de medidas protetivas de urgência.
O art. 15, caput, da Lei 14.344/2022, prevê o prazo de 24 horas para a autoridade judicial analisar o requerimento de medidas protetivas de urgência, diferenciando-se do prazo de 48 horas previsto pelo art. 18 da Lei 11.340/2006. Essa distinção entre os prazos legais se justifica de forma simples: crianças e adolescentes gozam de prioridade absoluta, ou seja, uma “prioridade dentro da prioridade”.
Neste sentido, e apenas a título exemplificativo, caso o membro do Poder Judiciário se depare com dois pedidos de medidas protetivas de urgência, um com fulcro na Lei Henry Borel e outro com fundamento na Lei Maria da Penha, deverá o magistrado obedecer a uma ordem preferencial de análise, buscando salvaguardar, prioritariamente, a integridade física e psicológica de crianças e adolescentes.
Após a exposição deste pequeno raciocínio, indagamos aos leitores o seguinte questionamento: seria juridicamente possível, à luz da garantia constitucional da prioridade absoluta, o reconhecimento de dano moral in re ipsa aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, conforme o fez o Superior Tribunal de Justiça, sem a extensão do mesmo raciocínio aos casos de violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes? Parece-nos evidente que não. Com muito razão o entendimento do Superior Tribunal de Justiça deve ser estendido aos casos envolvendo crianças e adolescentes.
<h3>Posicionamento da Corte IDH</h3>
O tema da violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes e o eventual reconhecimento de danos decorrentes à vítima também já foi objeto de análise pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, especificamente no âmbito da jurisdição contenciosa da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/corte-idh">Corte Interamericana de Direitos Humanos</a>.
Ao julgar o caso V.R.P., V.P.C e outros vs Nicarágua, o tribunal interamericano examinou a falta de medidas concretas pelo Poder Judiciário nicaraguense em demanda envolvendo a prática de atos de violência sexual em contexto de violência doméstica e familiar contra um adolescente de 13 anos. A Corte IDH responsabilizou o Estado da Nicarágua, fixando uma série de medidas reparatórias, dentre elas, o pagamento de indenização por danos morais e materiais decorrentes da própria conduta criminosa cometida em contexto de violência doméstica e familiar.<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a> O entendimento defendido neste texto está, portanto, em sintonia com o Direito Internacional dos Direitos Humanos.
<h3>A exigência da prova do abalo moral como um efeito às avessas</h3>
Por fim – mas não menos importante –, os aspectos processuais também devem ser postos em discussão. Atualmente, buscando-se sempre a não revitimização de menores de 18 anos, a oitiva de crianças e adolescentes vítimas de violência é realizada mediante os procedimentos humanizados da escuta especializada e do depoimento especial, ambos regidos pela Lei 13.431/2017. Busca-se, com isso, evitar em maior grau possível a revitimização de crianças e adolescentes vítimas de violência. Não à toa, a própria Lei 13.431/2017 prevê em seu art. 11, §2º, a regra da não repetitividade do depoimento especial, que somente pode ser excepcionada quando justificada a imprescindibilidade de novo depoimento.<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>
Exigir a prova do abalo emocional sofrido por crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica e familiar vai de encontro ao âmago da Lei do Depoimento Especial e da Escuta Especializada. Expor crianças e adolescentes a todo e qualquer tipo de questionamento, de forma sucessiva e reiterada, buscando a caracterização ou não do dano moral pelas partes desvirtua – e muito – o propósito do depoimento especial.
Nos casos de violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes, a exigência da prova do abalo moral encontraria ainda um segundo obstáculo: a chamada síndrome do segredo. Segundo o STJ, a chamada síndrome do segredo “ilustra o modo pelo qual crianças e adolescentes vitimados (e até mesmo as famílias) permanecem em silêncio, diante da fragilidade física, e principalmente psicológica, podendo, até mesmo, incorrer em retratação do que um dia foi revelado”.<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a> A incidência da síndrome do segredo impossibilita a prova do abalo moral e inviabiliza os fins colimados por aqueles que defendem a sua necessidade.
Exigir que crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica e familiar forneçam de forma inconteste a prova do seu abalo moral para fins do arbitramento de uma quantia a título de indenização, é compactuar com o risco de revitimização, desconsiderar o corpus iuris protetivo do Direito da Infância e da Juventude, a hipervulnerabilidade de crianças e adolescentes, e os sinais já emitidos pelo STJ e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Até a próxima!
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> UNICEF. Nos últimos cinco anos, 35 mil crianças e adolescentes foram mortos de forma violenta no Brasil. 2020. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/nos-ultimos-cinco-anos-35-mil-criancas-e-adolescentes-foram-mortos-de-forma-violenta-no-brasil. Acesso em: 02 mar. 2023.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Neste ponto, contudo, a análise se circunscreve ao período entre 2017 à 2020.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> UNICEF. Nos últimos cinco anos, 35 mil crianças e adolescentes foram mortos de forma violenta no Brasil. 2020. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/nos-ultimos-cinco-anos-35-mil-criancas-e-adolescentes-foram-mortos-de-forma-violenta-no-brasil. Acesso em: 02 mar. 2023.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> A lei recebeu este nome em homenagem ao menino de 4 anos morto após ser espancado no apartamento em que morava com a mãe e o padrasto, no Rio de Janeiro.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1.643.051/MS. Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 28/02/2018.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Em caso originário da esfera cível e anterior à edição Lei Henry Borel, o Superior Tribunal de Justiça já reconheceu a natureza in re ipsa do dano moral em caso envolvendo agressão física e verbal contra criança. Nesse sentido: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1.642.318/MS. Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 07/02/2017.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RHC n. 100.446/MG. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 27/11/2018.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1.517.973/PE. Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 16/11/2017.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Art. 13, §2º, alínea ‘a’: § 2º: A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a>Corte IDH, Caso V.R.P., V.P.C e outros vs. Nicarágua. Sentença de 08 de março de 2018. Para um aprofundamento acerca do caso: HEEMANN, Thimotie Aragon; PAIVA, Caio. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos. 3. ed. Belo Horizonte: CEI, 2020.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a>Art. 11, § 2º Não será admitida a tomada de novo depoimento especial, salvo quando justificada a sua imprescindibilidade pela autoridade competente e houver a concordância da vítima ou da testemunha, ou de seu representante legal.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1.066.724/DF. Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 24/04/2014.

violência contra mulher

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JOTA

Por que a interpretação do STJ destinada às mulheres deve ser estendida para crianças e adolescentes

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