Opinião e Análise

Thimotie Aragon Heemann

Chegamos ao fim do estudo sobre “dosimetria da pena em crimes contra as mulheres” aqui na coluna Direito dos Grupos Vulneráveis. Os textos antecedentes abordaram inúmeras situações nas quais o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stj">Superior Tribunal de Justiça (STJ)</a> admite, à luz da perspectiva de gênero (ainda que o Tribunal da Cidadania não tenha expressamente mencionado a expressão), a exasperação da pena-base em crimes contra meninas e mulheres. O estudo da temática se desenvolveu, até este momento, voltado à análise da primeira fase da dosimetria da pena.
Pois bem. Neste texto de encerramento sobre o assunto, é hora de nos debruçarmos sobre um segundo momento de aplicação da pena ainda não abordado por aqui: a análise de agravantes e atenuantes.
Desde já, gostaria de agradecer a todos os leitores e leitoras pelas inúmeras mensagens e e-mails recebidos após a publicação dos primeiros artigos sobre a temática. O feedback de vocês é sempre essencial para o aprimoramento das ideias expostas aqui neste espaço gentilmente cedido pelo JOTA. Por fim, se você não leu as partes um e dois desta pesquisa, recomendo — antes de avançar na leitura do texto de hoje — a leitura dos referidos textos publicados aqui nesta coluna.
1 Inexistência de bis in idem na aplicação conjunta da agravante prevista no art. 61, inciso II, alínea ‘f’, do Código Penal, com o artigo 17 da Lei Maria da Penha:
Inaugurando o exame das agravantes e/ou atenuantes que possuem aplicação no Direito das Mulheres, a principal discussão na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça ainda é, sem sombra de dúvidas, acerca da possibilidade de aplicação conjunta da agravante prevista no artigo 61, inciso II, alínea ‘f’, do Código Penal, (crime praticado com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher) com o artigo 17 da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm">Lei Maria da Penha</a>, que possui a seguinte inteligência: “É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa”. Periodicamente, inúmeros casos chegam ao STJ sob o argumento de que a aplicação conjunta dos referidos dispositivos violaria o princípio do bis in idem, uma vez que o agressor teria a sua situação jurídica agravada (ou restringida) simultaneamente por dois diplomas distintos ao mesmo tempo (Código Penal e Lei Maria da Penha). Tal raciocínio afigura-nos equivocado, e não devemos confundir alhos com bugalhos.
Ao vedar a aplicação isolada de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa, o artigo 17 da Lei 11.340/2006 incide apenas de maneira negativa e eventual sobre a dosimetria da pena, não influindo no cálculo dosimétrico propriamente dito,<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> situação diametralmente oposta do espectro de aplicação da agravante prevista no artigo 61, inciso II, alínea ‘f’ do Código Penal, que permite o incremento da reprimenda penal na segunda fase da dosimetria da pena.
Reforçando esse raciocínio, o Superior Tribunal de Justiça adverte que, a inteligência do artigo 17 da Lei Maria da Penha “mostra-se consectária da vedação à proteção insuficiente, por conseguinte, o afastamento da agravante levaria a situação mais amena aquele que cometeu crime em situação de violência doméstica, o que iria de encontro ao escopo normativo apontado”.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Trata-se, ao fim e ao cabo, de uma questão de proporcionalidade sob a ótica da proibição de proteção deficiente, princípio caro ao Direito das Mulheres, não apenas na jurisprudência do Tribunal da Cidadania, mas também no âmbito do Supremo Tribunal Federal.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> Acerta, o STJ, ao não verificar qualquer violação do ne bis in idem na situação.
2 Inexistência de bis in idem na aplicação conjunta da agravante prevista no art. 61, inciso II, alínea ‘f’, do Código Penal, com a causa de aumento de pena prevista no artigo 226, II, do Código Penal:
Outra situação que costuma aparecer com frequência nas arcadas do Superior Tribunal de Justiça consiste na suposta violação ao princípio do bis in idem quando da aplicação conjunta da agravante prevista no art. 61, inciso II, alínea ‘f’ do Código Penal (explicada de forma detalhada no tópico anterior deste artigo) com a causa de aumento de pena prevista no artigo 226, II, do Código Penal (quando o crime é praticado por ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tiver autoridade sobre ela).
Primeiramente, é oportuno lembrar que o próprio STJ reconhece a possibilidade de aplicação da Lei Maria da Penha em casos envolvendo meninas menores de dezoito anos, sendo complementar – e não excludente – à proteção conferida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente em conjunto com a Lei 11.340/2006<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Pois bem. Voltando à análise da situação concreta, o Tribunal da Cidadania não vem reconhecendo, com base na mesma argumentação da hipótese analisada no tópico número um deste texto, a violação ao princípio do bis in idem quando da aplicação cumulativa da agravante do crime cometido em contexto de violência contra mulher e a causa de aumento prevista no artigo 226, inciso II, do Código Penal. Para o STJ, o raciocínio é simples: tratam-se de dispositivos do Código Penal com razões distintas de incidência.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> Enquanto a primeira é aplicada durante a segunda fase do cálculo dosimétrico da pena e possui como raison d'être o contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, a segunda possui a natureza jurídica de causa de aumento de pena a ser aplicada na terceira fase da dosimetria da pena, a partir da existência de determinado grau de parentesco.
Acerta novamente o Superior Tribunal de Justiça ao não reconhecer qualquer violação ao ne bis in idem.
3 Possibilidade de compensação entre a agravante prevista no artigo 61, inciso II, alínea ‘f’, do Código Penal, (crime praticado em situação de violência contra a mulher) e a atenuante prevista no artigo 65, inciso III, alínea ‘d’ (confissão espontânea)
Ponto sempre polêmico no momento de aplicação da pena pelo magistrado, a compensação entre agravantes e atenuantes também encontra espaço no Direito das Mulheres.
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça vem admitindo a possibilidade de compensação entre a agravante prevista no artigo 61, inciso II, alínea ‘f’, do Código Penal, (crime praticado em situação de violência contra a mulher) e a atenuante prevista no artigo 65, inciso III, alínea ‘d’ (confissão espontânea).<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> Também em matéria de dosimetria da pena em crimes contra as mulheres, o Tribunal da Cidadania admite a possibilidade de compensação entre a agravante da prevista no artigo 61, inciso II, alínea ‘h’, do Código Penal, (crime praticado contra mulher grávida) e a atenuante da confissão espontânea.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>
Na análise de ambas as situações, parece-nos oportuno lembrar da existência do verbete sumular nº 545 do próprio STJ, o qual preconiza que: “quando a confissão for utilizada para a formação do convencimento do julgador, o réu fará jus à atenuante prevista no artigo 65, III, d, do Código Penal”. Assim, sempre que o membro do Poder Judiciário reconhecer, ao mesmo tempo, a confissão espontânea e uma das agravantes específicas do Direito das Mulheres (crime praticado em situação de violência contra a mulher ou crime praticado contra mulher grávida), será possível, a partir da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a compensação entre agravante e atenuante.
4 Incidência da agravante prevista no artigo 61, inciso II, alínea ‘h’, do Código Penal, independentemente do conhecimento do estado gravídico da vítima pelo réu.
Conforme mencionado no tópico anterior deste estudo, o artigo 61, inciso II, alínea ‘h’, do Código Penal, prevê, dentre as situações que agravam a pena, a hipótese em que o crime for cometido contra mulher grávida. Em que pese o tema pareça, ao menos em um primeiro momento, não possuir maior complexidade, é possível encontrar na doutrina e na própria jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) duas correntes absolutamente distintas acerca da natureza jurídica da agravante em estudo.
A primeira corrente, a qual chamarei neste texto de clássica, compreende a agravante do crime cometido contra mulher grávida como de natureza subjetiva, não sendo possível a sua incidência caso o réu desconhecesse, no momento da prática criminosa, o estado gravídico da vítima. Esta corrente é defendida de forma amplamente majoritária na doutrina brasileira,<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> sendo sido, por muito tempo, o posicionamento encampado também pelo STJ.<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>
Recentemente, contudo, o Superior Tribunal de Justiça vem adotando posição diversa e reconhecendo a natureza objetiva da agravante em comento. Para esta corrente – aqui denominada de contemporânea –, ocorrendo a empreitada criminosa contra vítima mulher grávida, a incidência da agravante é obrigatória, pouco importando se o acusado possuía conhecimento do estado gravídico da vítima à época dos fatos.<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>
Com todas as vênias ao Tribunal da Cidadania, esta última posição adotada pela Corte parece-nos deveras equivocada. Desconsiderar o prévio conhecimento do estado gravídico da vítima como pré-requisito para a incidência da agravante é, em última ratio, cristalizar uma hipótese de responsabilidade penal objetiva, situação absolutamente vedada em nosso ordenamento jurídico. Não se está, com isso, adotando postura leniente com a punição de agressores por ato tão abjeto (violência contra a mulher grávida), tampouco enfraquecendo o Direito das Mulheres. Muito pelo contrário. Ser fiel às premissas estruturantes do Direito Penal é um ponto nevrálgico para o fortalecimento combate à violência contra a mulher e a responsabilização dos agressores na medida de sua culpabilidade.
Este colunista filia-se, portanto, a corrente clássica, entendendo ser necessário o conhecimento do estado gravídico da vítima por parte do agente criminoso para a incidência da agravante prevista no artigo 61, inciso II, alínea ‘h’, do Código Penal.
Feitas estas considerações, finalizamos a terceira e última parte desta longa pesquisa sobre dosimetria da pena em crimes contra mulheres. Gostaria, novamente, de agradecer a todos os leitores que realizaram observações e apontamentos ao longo das publicações. O propósito desta coluna é não somente debater o tema de forma acadêmica, mas também influenciar no desenvolvimento do direito na sua perspectiva prática, tornando-o menos injusto e desigual aos grupos vulneráveis.
Até a próxima!
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 1.079.004/SE. Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, j. 13/6/2017.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no HC n. 720.797/SC. Rel. Min. Ribeiro Dantas, j. 22/3/2022.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Foi com base na vedação de proteção insuficiente que o Supremo Tribunal Federal reconheceu, ao julgar a ADI 4424, que, nas situações envolvendo o crime de lesão corporal praticada no em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, seja leve, grave ou gravíssima, dolosa ou culposa, a ação penal é sempre pública incondicionada. Atualmente, há, inclusive, um verbete sumular do STJ acerca do tema: “A ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada”. (Súmula 542 do STJ).
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1.652.968/MT. Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, j. 15/12/2020.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp n. 1.780.561/PR. Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 14/9/2021.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp n. 689.064/RJ. Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 6/8/2015.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 126.486/SP. Rel. Min. Laurita Vaz, j. 26/8/2010.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci em Código Penal Comentado… 2020; Celso Delmanto em Código Penal Comentado… 2021; Cezar Roberto Bittencourt em Código Penal Comentado… 2020, dentre outros.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 284.951/MG, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 8/4/2014.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no HC 582.200/SP. Rel. Min. Ribeiro Dantas, j. 4/8/2020.

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JOTA

Na parte final deste estudo, é hora de analisarmos as agravantes e atenuantes a partir da perspectiva de gênero

Dosimetria da pena em crimes contra mulheres – parte 3

Na parte final deste estudo, é hora de analisarmos as agravantes e atenuantes a partir da perspectiva de gênero