Opinião e Análise

Thimotie Aragon Heemann

Além das formas clássicas e já conhecidas de discriminação que vitimam os grupos vulneráveis de maneira geral (discriminação negativa, direta, indireta etc.)<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, a população em situação de rua também é atingida por uma modalidade de preconceito específico existente em razão da sua condição de vulnerabilidade, denominada pela literatura jurídica estrangeira de discriminação tutelar.
Desenvolvida com maior robustez no direito mexicano<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, a discriminação tutelar é definida como “uma forma encoberta de ações autoritárias que subordinam as pessoas em situação de rua, negando-as a possibilidade que expressem a sua vontade e desenvolvam a sua personalidade jurídica, encontrando no espaço público um terreno propício para a sua reprodução sistêmica”.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Esta espécie especifica de discriminação se diferencia de forma sutil e encoberta das formas tradicionais, consumando-se mediante a prática de um falso discurso de ações afirmativas supostamente benéfico para a implementação de direitos daquele que se encontra em situação de rua, este último tido pelo mainstream como “incapaz de opinar” em razão de sua condição de vulnerabilidade<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Trocando em miúdos, a discriminação tutelar opera infantilizando as pessoas em situação de rua<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, ou seja, deixando de levar em consideração a autonomia da vontade do indivíduo em situação de rua, sob o pretenso argumento de que são as pessoas que vivem fora das ruas que estariam em melhores condições para deliberar acerca das escolhas existenciais daqueles em situação de rua. Impede-se as pessoas em situação de rua de realizarem suas próprias escolhas existenciais a partir do reconhecimento – de forma discriminatória – de uma causa da incapacidade não prevista em lei, ocasionando evidente transgressão aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana enquanto autonomia<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
A discriminação tutelar pode ser praticada tanto por agentes públicos quanto por particulares, não sendo raros os casos em que a prática ocorre a partir de atos de organizações não governamentais ou até mesmo associações privadas que atuam em causas envolvendo a população de rua. Trago alguns exemplos práticos aos leitores da coluna.
Exemplo de discriminação tutelar geral: caso hipotético envolvendo o encaminhamento compulsório e contra a sua vontade de pessoa em situação de rua para os serviços da rede de proteção em bairro distante do qual está em situação de rua por considerável período de tempo, sob os argumentos de que “será melhor assim”, “você não pode recusar” ou ainda “esta é a única opção para você”.
Mais um exemplo de discriminação tutelar geral: caso hipotético envolvendo o deslocamento forçado de pessoas em situação de rua para instalações e locais fechados, sob o argumento de proteção de direitos humanos<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, ignorando-se qualquer oposição por parte da população em situação de rua.
Exemplo de discriminação tutelar específico envolvendo mulheres em situação de rua: a imposição forçada de métodos contraceptivos às mulheres em situação de rua<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
Exemplo de discriminação tutelar específico envolvendo idosos em situação de rua: encaminhamento sem qualquer embasamento médico de pessoas idosas em situação de rua para instituições psiquiátricas por prazo indeterminado<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>.
Diante do exposto, é possível perceber que, em ultima ratio, a discriminação tutelar resulta em um pernicioso fenômeno de coisificação das pessoas em situação de rua, já que seu ponto de partida está arraigado em duas premissas que não se coadunam com a atual fase humanista do direito das pessoas em situação de rua: a) uma equivocada compreensão acerca da capacidade das pessoas em situação de rua e; b) um falso discurso de ações afirmativas, sob a pretensa bandeira de proteção de direitos da pessoa em situação de rua discriminada, mas que na prática resulta em violação dos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana.
Por fim, alerto aos leitores do JOTA que não são raros os casos nos quais a discriminação tutelar resulta em práticas de natureza higienista e está imbuída de um sentimento de “limpeza social”. Mas esta discussão ficará para um próximo texto da coluna!
Até a próxima!
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a>Sobre o tema, ver o texto <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/teoria-do-impacto-desproporcional-e-protecao-de-grupos-vulneraveis-10062021">“Teoria do Impacto Desproporcional e proteção de grupos vulneráveis”</a> publicado nesta coluna.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a>Centro de Investigacion Aplicada em Derechos Humanos. Situación de los derechos humanos de las poblaciones callejeras en el Distrito Federal 2012-2013. México, 2014, disponível em: <a href="http://cdhdfbeta.cdhdf.org.mx/wp-content/uploads/2014/09/poblaciones-callejeras-integrado-imprenta.pdf">http://cdhdfbeta.cdhdf.org.mx/wp-content/uploads/2014/09/poblaciones-callejeras-integrado-imprenta.pdf</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a>PÉREZ GARCÍA, Juan Martín “La infancia callejera: paradigma de la discriminacion tutelar”, en Manfred Liebel y Marta Martinez Munoz (coords.), Infancia y derechos humanos. Hacia una ciudadanía participante y protagónica, Peru, Instituto de Formacion para Educadores de Jovenes, Adolescentes y Ninos Trabajadores de America Latina y el Caribe, 2009. Na linha de raciocínio do conceito de discriminação tutelar, enfatizando a ideia de que para as pessoas serem livres elas devem desenvolver capacidades, ver SEN, Amartya. Desenvolvimento Como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a>Derechos de las poblaciones callejeras. Mecanismo de Seguimiento y Evaluación del Programa de Derechos Humanos del Distrito Federal (MSyE del PDHDF) México, 2010. Disponível em: <a href="https://pdh.cdmx.gob.mx/storage/app/uploads/public/5b9/acb/ef6/5b9acbef678d7893415036.pdf">https://pdh.cdmx.gob.mx/storage/app/uploads/public/5b9/acb/ef6/5b9acbef678d7893415036.pdf</a>
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a>Sobre o fenômeno definido pela doutrina como “infantilização das pessoas em situação de rua”, é a lição de LEITE, Bruno Rodrigues: “A pessoa em situação de rua é tida como afônica, impotente, debilitada e incapaz de decidir os rumos da própria vida e de construir os significados da lei, precisando da ajuda de outrem para dirigir a sua vida. Esta ajuda, no entanto, pode vir sob a forma de mais violência (subjetiva, objetiva e simbólica), reproduzindo a realidade sem teorizá-la com a população em situação de rua. Portanto, a violência contribui para a infantilização das pessoas em situação de rua, não como um dado real, visto que a população em situação de tua não é infantil, mas infantilizada por estereótipos que vedam o seu reconhecimento como sujeito de direito e cidadão capaz de construir, processualmente, o seu próprio mundo”. LEITE, Bruno Rodrigues. A População em Situação de Rua e o Mandado de Segurança. Belo Horizonte: D'Plácido, 2017, p. 102
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a>“A dignidade humana como autonomia realça a liberdade do indivíduo, vale dizer, a sua autonomia privada para escolhas existenciais” FONTELES, Samuel Sales. Direitos fundamentais. Bahia: Juspodivm, 4. ed. 2021, p. 92. Ainda sobre o tema da dignidade humana como autonomia, ver: SARMENTO, Daniel. Dignidade Humana. Conteúdo, Trajetórias e Metodologia. 2ª ed. BeloHorizonte: Editora Fórum, 2020.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a>Este fenômeno ocorre com certa frequência em casos envolvendo crianças e adolescentes em situação de rua. Neste caso, deve-se realizar uma análise pormenorizada do caso concreto para aferir a existência de risco no caso concreto. Todavia, a utilização das referidas práticas por si só possui o condão de caracterizar uma discriminação tutelar. Nesse sentido, explica Juan Martín Pérez García: “En el caso de la infancia callejera esto adquiere una curiosa complejidad, ya que desde el discurso de derechos se impone la mirada tradicional sustentada en la visión de necesidades por encima de una basada en un enfoque de derechos; así parece sencillo llegar a la conclusión de que es posible violar un derecho para tutelar otros derechos. Un ejemplo paradigmático y frecuente en todas las sociedades, consiste en llevar a niñas, niños y ancianos callejeros por la fuerza a instalaciones cerradas con la noción básica de protegerlos. En todos los casos, las y los callejeros (sic) regresan nuevamente a las calles pero ahora en condiciones de mayor exclusión y vulnerabilidad de sus derechos ante la necesidad de ocultarse para evitar estas acciones de salvamento, en ocasiones no exentas de violencia. Este tipo de prácticas nos dan una muestra del desconocimiento de esta población, de la negación de sus derechos ciudadanos y la ausencia de una interlocución para encontrar alternativas que desencadenen procesos de cambio de mayor impacto; son acciones inmediatistas que sólo expresan la ausencia de una política pública, de las que lamentablemente encontramos repetidos ejemplos en diversos países de la región latinoamericana”. PÉREZ GARCÍA, Juan Martín “Interes superior de la ninez o discriminacion tutelar de la infancia callejera?”, en dfensor, ano xviii, num. 1, Mexico, cdhdf, enero de 2010. Disponível em: &lt;http://http://www.corteidh.or.cr/tablas/r23606.pdf&gt;
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a>No exemplo citado, além de configurar uma situação de discriminação tutelar, a imposição forçada de métodos contraceptivos às mulheres em situação de rua também é forma de violência de gênero. Para aprofundar, ver: Centro de Investigacion Aplicada em Derechos Humanos. Situación de los derechos humanos de las poblaciones callejeras en el Distrito Federal 2012-2013. México, 2014, p. 98 disponível em: <a href="http://cdhdfbeta.cdhdf.org.mx/wp-content/uploads/2014/09/poblaciones-callejeras-integrado-imprenta.pdf">http://cdhdfbeta.cdhdf.org.mx/wp-content/uploads/2014/09/poblaciones-callejeras-integrado-imprenta.pdf</a>
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a>Centro de Investigacion Aplicada em Derechos Humanos. Situación de los derechos humanos de las poblaciones callejeras en el Distrito Federal 2012-2013. México, 2014, p. 99 disponível em: <a href="http://cdhdfbeta.cdhdf.org.mx/wp-content/uploads/2014/09/poblaciones-callejeras-integrado-imprenta.pdf">http://cdhdfbeta.cdhdf.org.mx/wp-content/uploads/2014/09/poblaciones-callejeras-integrado-imprenta.pdf</a>

pessoas em situação de rua

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JOTA

Uma espécie de discriminação pouco abordada pelo direito brasileiro

Discriminação tutelar e pessoas em situação de rua

Uma espécie de discriminação pouco abordada pelo direito brasileiro e que envolve diretamente as pessoas em situação de rua