Opinião e Análise

Júlio Camargo de Azevedo

Elemento indicativo da personalidade, o nome constitui o principal elemento de identificação da pessoa. Ao pronunciar o próprio nome, a pessoa se vê, se autodefine, se apresenta e se distingue no meio social.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
É como ela também é reconhecida perante terceiros, já que o nome adianta no imaginário do outro a percepção da pessoa, signo que também revela a origem social, familiar e cultural de um indivíduo. Em síntese, o nome densifica a personalidade e é intrínseco à própria dignidade humana.
O que ocorre é que as pessoas transgênero normalmente se enxergam e ostentam características fenotípicas diversas dos padrões heteronormativos esperados pelo sexo atribuído, tornando o prenome registral inadequado à sua designação perante o meio social.
Por isso, passam constantemente por enorme desconforto civil sempre que lhes são exigidas a apresentação de documentos de identidade, em especial nas situações formais e informais que envolvem a socialização.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) se debruçou sobre o tema no julgamento da ADI 4275/DF. Na ocasião, assegurou-se às pessoas trans o direito à alteração do nome e gênero no registro civil, independentemente de procedimento cirúrgico ou laudos médicos patologizantes, reconhecendo-se tratar de um direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade.
A decisão, de caráter vinculante e eficácia erga omnes, acompanhou a Opinião Consultiva 24/2017 da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/corte-idh">Corte Interamericana de Direitos Humanos</a>, a qual define uma série de obrigações estatais em relação à retificação de nome e classificação do gênero, em especial a desburocratização dos procedimentos previstos na lei civil.
Seguindo por estas trilhas simplificadoras, o Provimento 73/2018 da Corregedoria Nacional de Justiça regulamentou o procedimento extrajudicial de retificação, garantindo o direito à alteração do nome e a classificação de gênero por pessoas trans nos assentos de nascimento e casamento constantes dos Registros Civis das Pessoas Naturais (RCPN).
Mais recentemente, a Lei 14.382 de 2022, que alterou à Lei 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), também contribuiu para a facilitação desse direito, mitigando o princípio registral da imutabilidade do nome em favor do direito à livre disposição da personalidade humana.
A <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/L14382.htm">Lei 14.382/2022</a> trouxe, assim, duas grandes modificações em matéria de retificação registral.
De um lado, tornou imotivada a manifestação do interesse para modificação do prenome e sobrenome às pessoas maiores de 18 anos, não se cogitando mais da necessidade de “justo motivo” ou do prazo decadencial de 1 ano para a realização do pedido.
De outro, desburocratizou o pedido de retificação, que agora pode ser deduzido extrajudicialmente perante qualquer Cartório de Registro Civil. A limitação fica por conta do § 1º do artigo 56, porquanto a alteração imotivada do nome somente pode ser feita uma única vez pela via extrajudicial, dependendo sua futura desconstituição de ação judicial.
O grande problema é que todo este arcabouço permissivo à retificação do registro civil não vem observando outra barreira (in)visível que afeta o acesso à justiça das pessoas trans: a vulnerabilidade socioeconômica.
Porque marginalizado socialmente, esse segmento populacional costuma experimentar situações de grave hipossuficiência financeira, as quais comprometem a efetividade das normas antes mencionadas, em especial a possibilidade de retificação extrajudicial do seu registro civil.
Não por outra razão, o tema foi objeto de debate da Comissão Parlamentar de Inquérito da Violência Contra Pessoas Trans e Travestis, realizada em 10 de março de 2022.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
De acordo com dados levantados pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 90% da população trans utiliza a prostituição como fonte de renda e possibilidade de subsistência. Isso decorre da extrema dificuldade de inserção no mercado formal de trabalho e da deficiência na qualificação profissional causada pela exclusão não apenas escolar, mas também social e familiar dessa população.
Estudo feito pela entidade estima em 13 anos a idade média em que as pessoas trans são expulsas de casa pelos próprios pais. Ademais, apenas 0,02% do grupo encontra-se na universidade, 72% não possui o ensino médio e 56% sequer completou o ensino fundamental.
Já o “1º Mapeamento de Pessoas Trans na cidade de São Paulo”, realizado pelo Centro de Estudos de Cultura Contemporânea em 2021, concluiu que “da totalidade da população trans pesquisada”, há concentração “em duas faixas de renda: de R$ 523 a R$ 1.045 (33%) e de R$ 1.046 a R$ 2.090 (34%), que correspondem às faixas de 1/2 a 1 salário mínimo no estado de São Paulo, e acima de 1 a 2 SM”.
As estatísticas acima demonstram a situação de extrema vulnerabilidade socioeconômica que atinge a esmagadora maioria da população trans brasileira.
Esse entrecruzamento de vulnerabilidades indica que a normativa tendente a tornar o direito fundamental à retificação do nome uma realidade concreta não pode desconsiderar medidas conexas que assegurem a gratuidade dos procedimentos voltados a efetivar referido direito.
Ilustrativamente, no estado de São Paulo, uma pessoa trans que pretenda a retificação de seu assento civil pode gastar aproximadamente R$ 620 relacionados a custas e emolumentos notariais, considerando a necessidade de emissão de certidões negativas de protesto dos locais de residência nos últimos cinco anos, taxa para averbação do nome e taxa de remessa de documentação entre cartórios.
Os valores aumentam significativamente caso a pessoa tenha nascido em estado diverso da federação ou tenha se mudado constantemente de domicílio nos últimos cinco anos, podendo ultrapassar o valor de um salário mínimo.
Considerando que a grande maioria desse segmento populacional possui concentração de renda abaixo do piso mínimo nacional, a conclusão que se assoma com foros de obviedade é que as pessoas trans muitas vezes se veem obrigadas a optar entre obter sua cidadania reconhecida ou pagar as despesas básicas de sobrevivência, tais como alimentação, água, luz, moradia etc.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
É cediço, ademais, que a ausência de regularização da documentação alija as pessoas transgênero do acesso a programas e serviços envolvendo outros direitos e benefícios sociais, tais como a inscrição no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CAD-Único).
Justamente por envolver barreiras econômicas que afetam o patrimônio mínimo de uma classe vulnerabilizada, o tema da gratuidade de retificação extrajudicial do nome à população trans vem sendo alvo de ações da Defensoria Pública.
No estado de São Paulo, o tema foi objeto de suscitação de dúvida perante à Corregedoria-Geral de Justiça do Tribunal paulista (processo 1099884-49.2018.8.26.0100), a qual, entretanto, manteve o indeferimento do pedido de gratuidade nos casos de retificação extrajudicial do assento de nascimento para a alteração de prenome e gênero de cidadãos transgêneros.
Conforme fundamentado, em função da natureza tributária do emolumento, a isenção para retificação de registro às pessoas trans somente poderia decorrer de lei em sentido formal, mesmo para aquelas que compõem o público-alvo da Defensoria Pública.
Seguindo a linha de raciocínio acima exposta, os Cartórios de Registro Civil paulistas também compartilham do entendimento de que a comprovação extrajudicial da hipossuficiência não autorizaria a isenção de cobrança de emolumentos dos serviços notariais.
Diante deste posicionamento, o Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial (NUDDIR) da Defensoria Pública paulista chegou a ajuizar Reclamação perante o Supremo (Rcl. 53235/SP), visando assegurar a autoridade da decisão proferida na ADI 4275/DF.
O relator, ministro Luís Roberto Barroso, todavia, compreendeu pela ausência de estrita aderência entre o ato jurídico impugnado e o paradigma invocado, eis que na ADI 4.275 a corte havia reconhecido o direito à alteração do prenome e gênero no registro civil pela via administrativa ou judicial, não abrangendo, todavia, o direito à gratuidade de emolumentos para promover a referida alteração.
Compreende-se que a hermenêutica jurídica conferida ao tema não colhe a melhor razão jurídica e coloca em risco o acesso à igual cidadania das pessoas transgênero.
A argumentação baseia-se em três principais fundamentos.
Primeiro, é inaceitável que pessoas trans tenham o seu direito de acesso (extrajudicial) à justiça vilipendiado tão somente pelo fato de serem hipossuficientes econômicas. Viola-se, neste aspecto, o princípio basilar da isonomia, o qual impede sejam tratados desigualmente pessoas que se encontrem na mesma situação jurídica.
Uma pessoa trans com recursos financeiros pode simplesmente se dirigir a um Cartório de Registro Civil e, em posse da documentação exigida, promover a retificação de seu assento e a classificação do gênero. O mesmo não ocorre caso essa mesma pessoa se encontre em situação de carência econômica, passando o sistema a exigir prévia assistência jurídica e o ajuizamento de ação judicial para referido fim.
Segundo, o entendimento desconsidera todos os dados socioeconômicos captados a respeito das pessoas trans no país, que atestam a linha abissal de pobreza que afeta a extrema maioria dessa população. Ora, se não podem pagar sem o comprometimento do patrimônio mínimo, de nada adianta taxar os economicamente fragilizados.
Ainda, obrigar o ajuizamento de milhares de ações individuais para efetivação do direito à retificação do registro, à mercê da desburocratização operada pelo Provimento 73 da CGJ e pela Lei 14.382/2022, parece caminhar contra a atmosfera de desjudicialização que atualmente envolve o Sistema de Justiça brasileiro.
Em tempos de valorização dos mecanismos extrajudiciais de resolução de conflitos e do combate à tempestade de litígios no âmbito do Poder Judiciário, soa no mínimo paradoxal incentivar o ajuizamento de uma enxurrada de demandas judiciais para cumprir a única finalidade de se declarar o direito à gratuidade da parte para obtenção de documentos civis.
Terceiro, há diversos outros caminhos hermenêuticos que poderiam melhor solucionar a questão. A principiar por uma adequada interpretação do artigo 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal de 1988 e artigo 98, inciso IX, do CPC, para nestes abranger a isenção de emolumentos devidos a registradores pela prática de atos notariais indispensáveis à prestação da assistência jurídica integral e gratuita às pessoas trans.
Igualmente, necessário compreender que o serviço prestado pela Defensoria Pública ostenta natureza pública, i. é, ao realizar a prévia avaliação da incapacidade financeira do cidadão, obedecendo a rígidos critérios de controle de renda e constatação de vulnerabilidades, a instituição torna despicienda nova avaliação judiciária a respeito da mesma situação fática comprovada pelo interessado.
Do contrário, estar-se-ia destacando duas instituições públicas para a realização de uma mesma tarefa administrativa, em nítida violação ao princípio da eficiência administrativa (art. 37, caput, CF/1988).
Mais adequado seria que a Defensoria Pública requisitasse diretamente a gratuidade dos atos notariais aos Cartórios de Registro Civil, apresentando as documentações referentes à avaliação da incapacidade financeira, restando aos registradores, após cumprido o ato e em caso de fundada suspeita, suscitar o procedimento de dúvida perante o juiz competente, como, aliás, já autoriza o §8º do artigo 98 do CPC.
Ademais, perfeitamente possível que essa interpretação ampliativa relacionada à isenção de custas extrajudiciais aos atos necessários à cidadania de pessoas trans encontre amparo em ato administrativo do Conselho Nacional de Justiça, que, mediante alteração do Provimento n. 73/2018, pode substituir a exigência de emissão de certidões de protesto por mera consulta à Central Nacional de Protestos, como, aliás, já sugeriu a Defensoria Pública do Estado da Bahia.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
A propósito, em tempos de facilidades digitais e sistemas operacionais integrados, parece não fazer sentido exigir altas taxas de porte de remessa e retorno de documentação entre Cartórios, principalmente em se tratando de condição de possibilidade para efetivação de um direito fundamental atrelado a uma população hipervulnerável.
O acesso à justiça das pessoas trans, aqui compreendido como acesso à cidadania e à ordem jurídica justa, não pode permanecer censurado pelas barreiras econômicas que o acometem. O presente escrito certamente não esgota as soluções possíveis para referido problema, mas procura jogar novas luzes sobre a efetividade deste direito fundamental em debate.
Post scriptum: no dia 18 de março de 2023, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo realizou importante audiência pública na Câmara Municipal sob o tema “Renascer pela dignidade: meu nome, minha existência” para tentar contornar as barreiras econômicas à retificação registral envolvendo a população trans do Município de São José dos Campos. Espera-se que os depoimentos colhidos e os encaminhamentos administrativos reforcem o movimento de luta por um efetivo acesso à cidadania das pessoas trans do Vale do Paraíba.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> CHIECO, Adriana; MAIA, Camila Ieracitano Macedo; SOUZA, Mabel Tucunduva Prieto de. O direito de adequação do nome à identidade da pessoa humana (parte 1). Revista Consultor Jurídico, 02/05/2022, disponível em: <a href="https://www.conjur.com.br/2022-mai-02/opiniao-direito-adequacao-nome-identidade">https://www.conjur.com.br/2022-mai-02/opiniao-direito-adequacao-nome-identidade</a> Acesso em 15/07/2022.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> SILVA, Vinicius Conceição Silva. A gratuidade extrajudicial da retificação de nome das pessoas trans: interpretação do art. 98, § 1º, inciso IX do CPC em conformidade com o julgamento realizado pelo STF na ADI4275. Tese apresentada ao XIX CONADEP, Rio de Janeiro. Disponível em:  <a href="https://www.anadep.org.br/wtksite/cms/conteudo/42536/Gratuidade_Extrajudicial_da_Retifica__o_de_Nome_das_Pessoas_Trans_(SP).pdf">https://www.anadep.org.br/wtksite/cms/conteudo/42536/Gratuidade_Extrajudicial_da_Retifica__o_de_Nome_das_Pessoas_Trans_(SP).pdf</a> Acesso em 15/07/2022.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Disponível Em: <a href="https://www.youtube.com/watch?v=wjlllknpoly">https://www.youtube.com/watch?v=wjlllknpoly</a>. Acesso em 06/04/22.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> CEDEC - CENTRO DE ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA. Mapeamento das Pessoas Trans na Cidade de São Paulo: relatório de pesquisa. São Paulo, 2021. Disponível em: <a href="https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/direitos_humanos/LGBT/AnexoB_Relatorio_Final_Mapeamento_Pessoas_Trans_Fase1.pdf">https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/direitos_humanos/LGBT/AnexoB_Relatorio_Final_Mapeamento_Pessoas_Trans_Fase1.pdf</a>. Acesso 15/07/22.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Nesse sentido: <a href="https://www.defensoria.ba.def.br/noticias/dpe-ba-vai-ao-cnj-para-garantir-gratuidade-de-cartorios-em-adequacao-de-nomes-de-pessoas-trans-em-todo-o-pais/">https://www.defensoria.ba.def.br/noticias/dpe-ba-vai-ao-cnj-para-garantir-gratuidade-de-cartorios-em-adequacao-de-nomes-de-pessoas-trans-em-todo-o-pais/</a>

kyle-a0KL1Um0wBA-unsplash (1)

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Até quando barreiras econômicas vão impedir o igual acesso à cidadania?

Direito à retificação de nome e gênero de pessoas trans

Até quando barreiras econômicas vão impedir o igual acesso à cidadania?