Opinião e Análise

Thimotie Aragon Heemann

Durante os últimos três anos – em especial no período pandêmico –, diversos estados como Paraná,<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> Pernambuco,<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Ceará,<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> Minas Gerais,<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> São Paulo,<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> Bahia,<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> Rio de Janeiro,<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> Rio Grande do Sul<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> e Rondônia<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a> editaram leis, a partir de suas respectivas Assembleias Legislativas, criando deveres e obrigações em matéria de violência doméstica e familiar contra a mulher aos condomínios residenciais e comerciais situados em seus limites territoriais.<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a> Parcela expressiva de municípios brasileiros também legislaram acerca do tema.<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>
A obrigação de afixação de cartazes nas áreas comuns do condomínio com o objetivo de cientificar os condôminos sobre o dever de prevenção e combate à violência doméstica contra a mulher; o próprio dever de comunicar casos suspeitos de violência doméstica e familiar contra a mulher pelos condôminos ao síndico e por este à autoridade policial; além da imposição de advertências e multas aos condomínios pelo descumprimento dos deveres e obrigações antecedentes, são as normas estruturantes encontradas neste emaranhado de leis estaduais e municipais, razão pela qual convenciono chamá-las desde já de leis de compliance condominial em matéria de violência doméstica e familiar contra a mulher.<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>
Cuida-se, portanto, de uma iniciativa encampada de forma sistemática e coordenada por diversas Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais espalhadas pelo país afora, demonstrando o legislador brasileiro – independentemente de sua envergadura no escalonamento da federação – a sensibilidade e preocupação necessária com a proteção de mulheres e meninas situadas em nosso país.
Mais do que isso. Ao projetar deveres e obrigações que espraiam efeitos no interior de condomínios residenciais e comerciais, as leis de compliance condominial em matéria de violência doméstica e familiar contra a mulher rompem de uma vez por todas com o obsoleto, equivocado e perigoso adágio de que “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Há, em verdade, mais uma sinalização – desta vez emitida por estados e municípios – no reconhecimento do combate à violência doméstica e familiar contra a mulher como uma questão de Estado, não sendo possível – seja por violação às leis ou ao próprio texto constitucional – que o intérprete do direito delimite eventuais casos ocorridos no interior de condomínios edilícios como “acontecimentos de natureza privada”, supostamente protegidos por uma expectativa de privacidade e intimidade dos envolvidos.<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>
Porém, antes de analisarmos de forma mais detalhada as três normas estruturantes das leis de compliance condominial em matéria de violência doméstica e familiar contra a mulher, alguns avisos devem ser feitos aos leitores desta coluna: (a) este autor filia-se a orientação majoritária da doutrina civilista e utiliza a expressão “condomínio edilício”<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a> para se referir às edificações constituídas por partes exclusivas e outras de uso comum, nos termos adotados pelo próprio <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/codigo-civil">Código Civil</a>;<a href="#_ftn15" name="_ftnref15">[15]</a> (b) os dispositivos contidos nas referidas legislações estaduais e municipais aqui em análise devem ser sistematicamente interpretados à luz dos artigos 1.331 à 1358 do Código Civil, normas que regulamentam a temática do condomínio edilício de maneira geral; e (c) na opinião deste autor, as convenções condominiais, embora possuam a natureza jurídica de negócio jurídico plurilateral, são dotadas de força normativa quando regularmente aprovadas e registradas no respectivo Cartório de Registro de Imóveis (arts. 1.333 e 1.334 do CC). Contudo, mesmo quando agraciadas de caráter normativo, não podem elas contrariar às disposições contidas nas leis de compliance condominial em matéria de violência contra a mulher, dada a natureza de ordem pública e interesse social das disposições lá encartadas.<a href="#_ftn16" name="_ftnref16">[16]</a>
Dirimidos estes pontos, é momento de examinarmos juntos as três principais normas estruturantes comumente encontradas nas leis que regulamentam o combate à violência contra a mulher no interior dos condomínios edilícios.
<h3>Obrigação de afixação de cartazes em áreas comuns do condomínio edilício</h3>
Positivada em todas as leis de compliance condominial em matéria de combate à violência contra a mulher, a obrigação de afixação de cartazes em áreas comuns do condomínio possui como principais objetivos dar publicidade ao conteúdo da lei aprovada pelo município e/ou estado-membro aos condôminos, além de cientificá-los acerca do dever de prevenção e comunicação de casos suspeitos em matéria de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Para fins de cumprimento desta obrigação, este articulista compreende a expressão “áreas comuns” como espaços de acesso coletivo aos condôminos, seus hóspedes e visitas, tais como: elevadores, salões de festas, academias, piscinas, hall de entrada, garagem, além de outros previstos na respectiva convenção de condomínio. Recomenda-se, ainda, que a afixação de cartazes ocorra sempre nas áreas comuns de maior circulação de pessoas, maximizando-se o telos da própria da obrigação: a cientificação do dever de comunicação de casos suspeitos ao maior número de pessoas.
<h3>Dever de comunicação de casos suspeitos de violência doméstica e familiar contra a mulher</h3>
A criação de um dever de comunicação de casos suspeitos de violência doméstica e familiar contra a mulher não é propriamente uma inovação das leis de compliance condominial, embora a introdução ex lege desta obrigação em relação aos fatos ocorridos no interior de condomínios edilícios deva ser considerada um avanço substancial na proteção de mulheres e meninas brasileiras.
Ao menos no que pertine ao momento de sua criação, o dever de comunicação de casos suspeitos de violência doméstica e familiar contra a mulher foi introduzido de maneira específica aos profissionais da saúde em nosso ordenamento jurídico pela <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13931.htm">Lei 13.931/2019</a>, oportunidade em que o referido novel diploma alterou a Lei 10.778/2003,<a href="#_ftn17" name="_ftnref17">[17]</a> introduzindo em seu corpo legislativo o art. 1º, §4º (“Os casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher referidos no caput deste artigo serão obrigatoriamente comunicados à autoridade policial no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, para as providências cabíveis e para fins estatísticos”). Todavia, conforme já mencionado, trata-se de hipótese adstrita aos profissionais de saúde.
Com o advento do emaranhado de leis estaduais e municipais em análise neste texto, instituiu-se pela segunda vez o dever legal – desta vez outorgado ao síndico ou à administradora do condomínio – em comunicar indícios e ocorrências de casos de violência doméstica e familiar contra a mulher ocorridos nas dependências do respectivo condomínio edilício pelo qual encontra-se incumbido à autoridade policial.<a href="#_ftn18" name="_ftnref18">[18]</a>
Outra informação reproduzida em expressiva parcela das leis de compliance condominal em matéria de violência doméstica é o prazo para realização da comunicação à autoridade policial: a comunicação deverá ser in continenti em situações envolvendo ocorrências em andamento, afinal, nestes casos, estar-se-á diante de uma situação de flagrância, e em vinte e quatro horas nos demais casos. 
<h3>Sanções de advertência e multa ao condomínio condescendente</h3>
Por fim, e certamente não menos importante, parcela expressiva das leis de compliance condominial disciplinam as sanções de advertência e, em caso de reincidência, multa ao condomínio condescendente ao descumprimento dos deveres impostos pelas normas estruturantes acima mencionadas. Aqui, no entanto, um alerta deve ser realizado: praticamente todas as leis – sejam elas estaduais, sejam municipais – estabelecem uma ordem de precedência entre as sanções.
Ocorrido o descumprimento de uma das obrigações previstas nas leis em análise, o condomínio é autuado para, sob o crivo do contraditório e ampla defesa, responder administrativamente perante o Poder Público. Se condenado na instância administrativa, uma sanção de advertência lhe será aplicada. Havendo uma nova condenação, será possível a imposição de uma sanção de multa. Sobre esta última, apenas duas observações a título de elucidar eventuais questionamentos: (a) não há uma uniformidade acerca dos valores cobrados pelo ente estatal a título de multa, sendo necessária a consulta na respectiva lei estadual ou municipal; (b) a doutrina do administrativista é uníssona no sentido de que sanções pecuniárias não são dotadas de autoexecutoriedade,<a href="#_ftn19" name="_ftnref19">[19]</a> devendo, neste caso, o Poder Público adotar as vias próprias para realizar a cobrança dos valores; (c) em que pese a multa recaia sobre o condomínio, nada impede – na opinião deste autor – que o condomínio exerça o direito de regresso em desfavor do síndico desidioso. Neste caso, porém, a assembleia condominial deverá investir outra pessoa em poderes de representação do condomínio, conforme preconiza o artigo 1.348, §1º, do Código Civil, já que, em regra, o síndico representa ativa e passivamente o condomínio em juízo, conforme disposto no art. 1.348, inciso II, também do Código Civil brasileiro.
Para encerrar o texto desta semana aqui no JOTA, este autor entende como prudente – de lege ferenda –, para fins de aperfeiçoamento do compliance condominial em matéria de combate à violência contra a mulher, a aprovação de uma lei federal uniformizando o tema em todo o território brasileiro (prazos, formas de comunicação, órgãos públicos a serem comunicados, sanções a serem aplicadas etc.).<a href="#_ftn20" name="_ftnref20">[20]</a>
No mais, a iniciativa promovida por estados e municípios é digna de aplausos, e demonstra não apenas preocupação do Poder Legislativo com um tema tão caro à sociedade, como também perspicácia, já que passa a projetar a atenção do Estado para um terreno fértil para o florescimento de casos de violência doméstica e familiar contra a mulher: os condomínios edilícios.
Até a próxima!
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Lei Estadual nº 20.145/2020.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Lei Estadual nº 16.587/2019.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Lei Estadual nº 17.211/2020.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Lei Estadual nº 23.643/2020.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Lei Estadual nº 17.407/2021
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Lei Estadual nº 14.278/2020.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Lei Estadual nº 8.697/2020.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Lei Estadual nº 15.549/2020.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Lei Estadual n° 4.675/2019.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Algumas das leis de compliance condominal aprovadas tratam ainda da violência contra idosos, crianças, adolescentes e pessoas com deficiência.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> Apenas a título exemplificativo, cito os municípios de São Paulo/SP (Lei 17.803/2022), Campinas/SP (Lei 16.034/2020), Vila Velha/ES (Lei 6.611/2022), Nova Lima/MG (Lei 2.915/2022), Sorocaba/SP (Lei 12.509/2022) dentre outros.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> O termo compliance possui origem no verbo inglês “to comply”, que significa “cumprir”, “estar de acordo”, “obedecer”. No setor público, é definido pelo art. 41 do Decreto 8.250/2015 como: “conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes como objetivo de detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos práticos contra a administração pública, nacional ou estrangeira”.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> O chamado “direito de família mínimo”, empreendimento teórico que propõe a mínima intervenção do Estado nas relações familiares (cf. MOREIRA, ALVES, Leonardo Barreto. Direito de Família Mínimo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010) é rejeitado pelo Supremo Tribunal Federal, conforme raciocínio que pode ser facilmente extraído dos votos proferidos no bojo da ADI 4424, oportunidade em que a Corte Constitucional brasileira cristalizou o entendimento no sentido de que, em casos envolvendo a prática do crime de lesão corporal em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, a iniciativa da persecução penal ocorre mediante ação penal pública incondicionada.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> A propósito, a origem da expressão é explicada com acurácia por Arnaldo Rizzardo em obra especializada sobre o tema: “O termo cum significa conjuntamente, enquanto a palavra dominum expressa domínio, propriedade. Portanto, condomínio é propriedade conjunta – que pertence a mais de um. Já a palavra edilício, aedilitium, diz respeito à edificação – que pode ser de unidades em loteamento (casas) ou edifício de pavimentos – apartamentos, salas etc. Assim, condomínio edilício é a copropriedade numa edificação da qual constam unidades privativas autônomas, de uso exclusivo, e partes que são propriedade comum dos condôminos” (RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio Edilício e Incorporação Imobiliária. Rio de Janeiro - RJ: Grupo GEN, 2020. p. 24)
<a href="#_ftnref15" name="_ftn15">[15]</a> Uma das maiores autoridades na matéria, Caio Mário da Silva Pereira, realiza críticas à expressão adotada pelo Código Civil, preferindo a utilização de expressões diversas: “Como autor de obra monográfica em torno do assunto, publicada em 1961 sob o título “Propriedade Horizontal”, recebemos o encargo de elaborar “Projeto” a respeito do condomínio e incorporações, que veio afinal a converter-se na Lei no 4.591, de 16 de dezembro de 1964.12 O Código Civil de 2002 trata do condomínio especial dos edifícios coletivos nos arts. 1.331 a 1.358, sob o título de “Do Condomínio Edilício”, denominação que criticamos durante toda a fase de elaboração do Projeto do Código, sem sucesso. Cabe o registro, aliás, que esta espécie de condomínio sempre recebeu denominações as mais variadas: “propriedade horizontal” (por se ter originado da divisão dos prédios por planos horizontais, expressão, aliás, que granjeou muito da preferência dos autores ibero-americanos); “condomínio especial”; “condomínio de edifícios divididos por planos horizontais” e “copropriedade de prédio de apartamentos”, entre muitas outras. (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil - Direitos Reais. v. IV. 27. ed. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2019. p. 70).
<a href="#_ftnref16" name="_ftn16">[16]</a> Miguel Serpa Lopes explica com propriedade o conceito e a funcionalidade das normas de ordem pública, “As normas revestidas desse caráter visam garantir e assegurar a existência do corpo social, base do ordenamento jurídico. Disciplinam relações com objetivos relevantes, tendendo à conservação e melhoria da sociedade”. (LOPES, Miguel Serpa. Curso de Direito Civil. v. 1.  4. ed. Freitas de Bastos:  Rio de Janeiro, 1961. p. 43) A aplicação das normas de ordem pública nas relações privadas é denominada pela doutrina civilista como “privatização do direito privado”.
<a href="#_ftnref17" name="_ftn17">[17]</a>A Lei 10.778/2003 trata, em termos gerais, da notificação compulsória, figura jurídica que não se confunde com o dever de comunicação de casos suspeitos.
<a href="#_ftnref18" name="_ftn18">[18]</a>Além da autoridade policial, algumas leis de compliance condominial em matéria de violência doméstica determinam ainda a necessidade de comunicação ao “órgão de segurança pública regional especializado”. É o caso da Lei nº 20.162/2020, promulgada pelo Estado do Paraná.
<a href="#_ftnref19" name="_ftn19">[19]</a>MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 16ª ed. São Paulo: GEN, 2014, p. 523. Ainda: MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 35ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009, p. 140
<a href="#_ftnref20" name="_ftn20">[20]</a>Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 2510/2020, já aprovado no Senado Federal, e que busca uniformizar no bojo do Código Civil, as normas de compliance condominial tratadas neste artigo, além de promover alterações na Lei das Incorporações Imobiliárias (Lei 4.591/1964) e no Código Penal. Neste último, adicionando uma causa de aumento de pena ao tipo penal previsto no art. 135, em casos nos quais a omissão de socorro é praticada em contexto envolvendo situação de violência doméstica e familiar contra a mulher ou contra outros grupos vulneráveis praticada no interior de condomínios edilícios.

lei maria da penha

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JOTA

As novas leis de compliance condominial e o Direito das Mulheres

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