Opinião e Análise

Júlio Camargo de Azevedo

Como já afirmado em um dos <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/o-que-e-isto-a-vulnerabilidade-29042021">primeiros textos</a> dirigidos a esta coluna,<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> a vulnerabilidade consiste em uma situação de risco social reprodutora de violações aos direitos humanos, que ofende a existência digna de determinados sujeitos e grupos sociais.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
À vista de um processo civil democrático, que considere as desigualdades presentes na realidade que o permeia, importante que se franqueie às partes a chance de arguir a sua condição vulnerável no processo, corolário de uma concepção substancial de acesso à justiça que não se revele cega às diferenças sociais.
Mas como identificar a condição vulnerável no processo? Haveria algum momento oportuno para afirmar essa condição? Quais seriam os desdobramentos processuais desta alegação? Estas são, em síntese, algumas das questões que pretendo debater neste escrito.
Na primeira etapa, tratarei da cláusula-geral de consideração da vulnerabilidade no processo, oferecendo um ferramental dogmático aos nossos leitores para sua arguição. Na segunda, discutirei alguns dos possíveis desdobramentos processuais desta afirmação. Uma perspectiva de ordem prática, portanto.
Mãos à obra.
<h3>A cláusula-geral de consideração da vulnerabilidade no CPC</h3>
Em sua tese de doutoramento, Fernanda Tartuce conclui que a vulnerabilidade processual constitui uma suscetibilidade do litigante, que o impede de praticar atos processuais em razão de uma limitação pessoal involuntária ensejada por fatores de saúde e/ou de ordem econômica, informacional, técnica ou organizacional de caráter permanente ou provisório.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
A partir deste raciocínio, indica que a incidência desta condição possibilitaria ao juiz uma ampla margem de consideração acerca da vulnerabilidade manifestada no processo, garantindo-se uma atuação jurisdicional rumo à superação destas situações comprometedoras da isonomia.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Doravante, a processualista identifica diversos fatores objetivos que serviriam à aferição da vulnerabilidade, representados pela insuficiência econômica, óbices geográficos, debilidades na saúde, desinformação pessoal, dificuldades na técnica jurídica e incapacidade de organização.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
Em síntese, conclui como legítima a diferenciação operada pelo magistrado que: i) considere o critério discriminatório à luz do princípio da isonomia, recaindo o traço distintivo na pessoa e na situação processual; ii) justifique racionalmente o fator erigido como discrímen e o tratamento jurídico diversificado, iii) atenda as finalidades reconhecidas na Constituição.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
Endossando as lições externadas no pioneiro estudo citado, sobretudo a admissão da vulnerabilidade como pressuposto legítimo a fundamentar uma distinção de tratamento processual dirigido às partes, este autor compreende que a vulnerabilidade pode ser avaliada concretamente pelo magistrado à luz da condição pessoal de risco afirmada pela parte na demanda.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>
Normativamente, as 100 Regras de Brasília sobre Acesso à Justiça das Pessoas em Condição de Vulnerabilidade estabelecem importante norte para aferição da vulnerabilidade no processo (Regras 3 e 4), tomando como vulnerável a pessoa que, por razões contingenciais, encontra especial dificuldade de exercitar seus direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico perante o Sistema de Justiça.
Indica, ademais, como hipóteses de vulnerabilidade a idade, a deficiência, o pertencimento a comunidades indígenas ou outras diversidades étnico-culturais, a afrodescendência, a vitimização, a migração, a condição de refugiado ou deslocado interno, a pobreza, o gênero, a orientação sexual, a identidade de gênero ou a privação de liberdade.
Com base nesta normativa, advoga-se ser possível a fixação de algumas balizas para o reconhecimento da vulnerabilidade no processo. Isso porque o próprio CPC ergueu a vulnerabilidade à categoria de critério discriminador genérico em nossa ordem processual, justificando o tratamento diferenciado das partes pelo magistrado à luz do controle de validade exercido sobre as convenções processuais.
Viável, nessa linha, atribuir ao parágrafo único do artigo 190 a função de cláusula-geral da vulnerabilidade no Direito Processual Civil brasileiro, o qual, à mercê de qualquer elemento objetivo pré-determinado, admite a consideração concreta da vulnerabilidade como fator de discrímen envolvendo a adequação da técnica processual.
Importante mencionar que, para a Codificação de 2015, a vulnerabilidade consubstancia verdadeira questão preliminar<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> a ser aferida pelo juiz, eis que sua solução opõe ou remove obstáculo à apreciação da validade do negócio jurídico processual, cumprindo ao magistrado investigar previamente “se alguma parte se encontra em manifesta situação de vulnerabilidade”.
Trata-se de questão prévia e incidental que, impassível de ser objeto de processo autônomo,<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a> admite a comprovação do fato alegado pela parte mediante qualquer meio de prova juridicamente admitido (documental, testemunhal, pericial etc.), autorizando inclusive a designação de audiência de justificação para este fim (arts. 300, § 2º, e 381, § 5º).
O raciocínio exposto é coerente, afinal se o Código admite a vulnerabilidade enquanto critério a legitimar o controle ope judice das convenções processuais firmadas sobre o procedimento, restringindo, portanto, a liberdade negocial das partes, com maior razão deve admitir o controle das inadequações procedimentais legislativas, cuja validade deriva da presunção genérica de legalidade das normas processuais, nem sempre acomodando os interesses dos segmentos vulneráveis da população, carentes, na maior parte das vezes, de adequada representação legislativa.
Aplicável aqui a máxima latina in eo quod plus est semper inest et minus, segundo a qual quem pode o mais (restringir a autonomia privada das partes e adequar o procedimento), pode o menos (adequar o procedimento).
<h3>Desdobramento processuais possíveis</h3>
Vencida a etapa inicial, é momento de analisar as implicações práticas desta consideração. Assim, a afirmação da condição vulnerável pode vir deduzida enquanto matéria de fato no bojo da petição inicial ou da contestação, permitindo-se ao juiz uma oportuna verificação a respeito da presença ou não de referida condição de risco social.
Nada impede, entrementes, venha a vulnerabilidade suscitada ao longo dos demais atos procedimentais, seja mediante simples petição proposta com esta finalidade, seja mediante alegação tópica em arrazoados sucessivos (memoriais, apelação etc.).
Tratando-se de situação transitória, é possível que a vulnerabilidade venha inclusive a aparecer ou desaparecer no curso do processo, razão pela qual a eleição de um momento processual estanque para a arguição da vulnerabilidade no processo parece não fazer muito sentido.
Doravante, na aferição da condição vulnerável, o juiz deve avaliar não apenas a dimensão da autodeterminação do sujeito (afirmação da parte), mas também o contexto concreto em que inserido o indivíduo, cotejando-o com a pertinente legislação protetiva (ex: ECA, Lei Maria da Penha, Lei Brasileira de Inclusão etc.).
Recomendável que o magistrado leve também em consideração a complexidade da causa deduzida em juízo (questões jurídicas e probatórias envolvidas, número de partes, valor da causa etc.), assim como a importância da demanda para o sujeito, evitando, e.g., que causas sensíveis envolvendo a esfera existencial do sujeito (ex: retificação de assento civil por transexual, divórcio de mulher vítima de violência doméstica etc.) sejam tratadas como pretensões comuns ou mero exercício de direitos patrimoniais.
Sempre que possível, deve a parte também indicar ao magistrado os fundamentos de fato e de direito que sustentam à situação de vulnerabilidade afirmada, inclusive apresentando documentos, testemunhas ou outros elementos probatórios que possam permitir uma adequada evidenciação da condição pessoal sustentada.
Como sustentado anteriormente, a arguição da vulnerabilidade atrai verdadeira questão preliminar ao processo, podendo dar origem a incidente específico destinado a averiguar a situação de risco afirmada, inclusive mediante justificação em audiência.
Igualmente relevante que a parte indique ao magistrado para quais atos entende comprometido o exercício de suas posições jurídicas processuais, facilitando a eleição da técnica processual adequada e eventual atividade procedimental flexibilizadora, corolários do processo cooperativo (art. 6º).
Assim, supondo que a situação de vulnerabilidade importe risco de prejuízo na esfera da comunicação dos atos processuais (ex: pessoa em situação de abrigamento) ou no cumprimento dos prazos estabelecidos pela legislação (defesa de pessoa em situação de rua), recomendável que a parte indique quais modalidades de citação/intimação entende adequadas (pessoal, epistolar, institucional etc.), bem como o prazo necessário para que o processo se desenvolva regularmente.
Por força do que estabelecem os artigos 9º e 10 do CPC, exigível que sobre esta alegação incida o contraditório da parte adversa.  Some-se a isso o dever de fundamentação judicial das decisões (arts. 11 e 489, CPC/2015), que objetivam impedir, no plano endoprocessual, a discricionariedade no reconhecimento jurídico da vulnerabilidade.
Em complemento, o princípio da proporcionalidade (art. 8º, CPC/2015), avaliado em sua tríplice perspectiva (adequação-necessidade-proporcionalidade strictu sensu), exerce papel relevante como vetor aplicativo da adequação procedimental, especialmente nos casos de afastamento de ônus ou deveres processuais da parte vulnerável que impliquem restrições a direitos processuais da parte adversa.
É bom que se diga: eventuais abusos de direito praticados por indivíduos que se autodenominem “vulneráveis” e eventualmente não o sejam, podem e devem ser coibidos pelo magistrado a partir dos instrumentos de combate à improbidade processual estabelecidos pela Codificação (arts. 5º, 77, inc. I, e 139).
A existência de medidas para combater a má-fé processual deveria inclusive ilidir indesejado conservadorismo na flexibilização do procedimento envolvendo sujeitos vulneráveis, garantindo uma tutela jurisdicional que não tome a dimensão da adequação como letra morta.
É factível, todavia, que em casos complexos apareçam situações de vulnerabilidade cruzada, isto é, casos em que ambas as partes se apresentem em condição vulnerável, afirmando uma predisposição à risco no processo.
Neste caso, o juiz deve optar pela adequação que represente o círculo mais amplo de guarida ou proteção procedimental a ambas as partes no processo, acautelando-se para que as medidas e apoios instituídos em favor de um dos sujeitos processuais não implique o agravamento da vulnerabilidade presente no outro polo da demanda.
Nada impede, ademais, que o magistrado cinda as adequações rituais ao longo do processo, aplicando-as conforme a necessidade apresentada em cada etapa do arco procedimental.
Assim, possível que a flexibilização se verifique em relação aos atos de comunicação processual dirigidos a uma das partes (ex: intimação pessoal de idoso agressor afastado do lar), ao mesmo tempo em que promova o afastamento do ônus da impugnação específica dos fatos afirmados pela outra parte (ex: mulher idosa e expulsa de casa que não teve acesso aos documentos pertinentes aos bens do casal).
Em suma, é a situação de vulnerabilidade que vai condicionar a flexibilização de cada etapa do procedimento, restando sempre ao juiz a possibilidade de recorrer às regras gerais do procedimento comum.
Dúvidas há, por fim, sobre eventual recurso cabível contra a decisão que indefere no curso do procedimento o reconhecimento da vulnerabilidade no processo. Isso porque as hipóteses taxativas do agravo de instrumento não comportam discussão a respeito da situação pessoal da parte (art. 1.015).
À primeira vista, poder-se-ia recorrer aos chamados sucedâneos recursais, garantindo-se à parte, via mandado de segurança, eventual consideração de sua condição vulnerável no processo.
Caminho prático de maior efetividade se afigura, entretanto, na impugnabilidade imediata da decisão interlocutória, com fulcro na teoria da taxatividade mitigada encampada pelo Superior Tribunal de Justiça (Resp nº 1.704.520/MT), sobretudo com base na demonstração de urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação.
Considerando se tratar a vulnerabilidade de condição que pressupõe uma situação de risco social protegida pelo ordenamento jurídico, podendo inclusive acarretar indesejado vilipêndio aos direitos humanos de sujeitos vulneráveis, admissível cogitar da aplicação do precedente proclamado pelo Corte Superior, garantindo-se a recorribilidade imediata desta questão preliminar.
Das linhas aqui expendidas, parece evidente que o ordenamento jurídico brasileiro ainda carece de técnicas específicas para a consideração da vulnerabilidade no processo. Isso não impede, todavia, sejam as situações de desigualdade trabalhadas por meio da adequação judicial do procedimento, sobretudo a partir dos ferramentais estabelecidos pela normativa posta.
Tentou-se neste breve escrito elucidar algumas balizas que podem servir de supedâneo para a atividade judicial de consideração da vulnerabilidade no processo. Que a ideia de processo justo (“giusto processo”; “fair procedure”; “faires Verfahren”) não perca de vista à noção de justiça procedimental na aplicação das regras processuais.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/o-que-e-isto-a-vulnerabilidade-29042021">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/o-que-e-isto-a-vulnerabilidade-29042021</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> AZEVEDO, Júlio Camargo de. Vulnerabilidade: critério para adequação procedimental – a adaptação do procedimento como garantia ao acesso à justiça de sujeitos vulneráveis. Belo Horizonte: Editora CEI, 2021.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> TARTUCE, Fernanda. Igualdade e vulnerabilidade no processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 184.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Ibid., p. 185.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Ibid., p. 189-218.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Como conclui a autora: “a vulnerabilidade processual configura um critério legítimo de diferenciação por distinguir entre os litigantes aqueles que se encontram limitados para a prática dos atos processuais em razão de situações contingentes ou provisórias a que não deram causa voluntariamente. Por meio desse critério permite-se a esses litigantes um tratamento jurídico diferenciado para que sua suscetibilidade não comprometa fatalmente a atuação em juízo e que seja assegurada a igualdade de oportunidades mediante a superação dos óbices que os acometeram”. Ibid., p. 222.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> “A vulnerabilidade é um estado inerente de risco, uma situação permanente ou provisória, individual ou coletiva, que fragiliza ou enfraquece o sujeito de direitos, desequilibrando a relação jurídica”. CUNHA, Leonardo Carneiro da. Comentários ao novo Código de Processo Civil. In: CABRAL, Antônio do Passo; CRAMER, Ronaldo (Coord.). 2ª e. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 321.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Ver quanto ao conceito de questão preliminar e sua distinção em relação às questões prejudiciais: MOREIRA, José Carlos Barbosa. Questões prejudiciais e questões preliminares. Direito processual civil: ensaios e pareceres. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, p. 87.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> DIDIER JR., Fredie Souza. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. 20ª e. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 515.

Estátua da justiça

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JOTA

Como afirmar a condição vulnerável da parte em um processo?