Opinião e Análise

Vinicius Rodrigues Vieira

Por <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/com-zanin-e-barroso-stf-tem-placar-de-4-a-2-contra-tese-do-marco-temporal-31082023">4 votos a 2</a>, vai prevalecendo no Supremo Tribunal Federal (STF) o entendimento de que, para serem reconhecidas, terras indígenas não precisam ter sido ocupadas até a promulgação da Constituição de 1988. Assim,<a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/stf-tem-maioria-contra-tese-do-marco-temporal-das-terras-indigenas-21092023"> o julgamento do recurso extraordinário 1.017.365 encaminha-se para refletir na prática um dos aspectos teóricos mais distintivos da democracia liberal em relação a outros regimes políticos: a proteção aos direitos das minorias, impedindo que seus interesses e reivindicações sejam esmagados pela maioria</a>.
Nesse contexto, o termo minoria não se refere apenas àqueles grupos que desde o ponto de vista sócio-institucional são discriminados em função da origem étnica, linguística, racial e/ou religiosa — isso para não citar outros marcadores de hierarquias sociológicas além das divisões de classe, notadamente aquelas oriundas da identificação de gênero e orientação sexual. Minorias também são aquelas de cunho exclusivamente político, como um partido e/ou uma tendência representada ou não nos Poderes Executivo e Legislativo.
Contrapostos à democracia liberal estão não apenas os regimes autocráticos, mas também aqueles que, ainda que preservem eleições livres e competitivas, estão permeados por um majoritarismo. No contexto brasileiro, o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/bolsonarismo">bolsonarismo</a> é a principal tendência nesse sentido, muito embora setores da dita direita liberal — pelo menos em termos econômicos — não se envergonhem de, na prática, se alinharem à lógica de que minorias devem se curvar à maioria.
“Outro dia eu falei... A mãe quer que o Joãozinho continue sendo Joãozinho. Ah, declaração homofóbica... Meu Deus do céu. Porra... Onde nós iremos? Cedendo para as minorias... As leis existem, no meu entender, para proteger as maiorias. As minorias têm que se adequar.” <a href="https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/07/15/bolsonaro-defende-falas-transfobicas-minorias-tem-que-se-adequar.htm?cmpid=copiaecola">Foi o que falou o então candidato à Presidência Jair Bolsonaro</a> em 14 de julho de 2018, em comício em Imperatriz, no interior do Maranhão.
Não é mera coincidência, portanto, que justamente os ministros do STF indicados por Bolsonaro — Nunes Marques e André Mendonça — tenham sido aqueles que por ora não acompanharam o voto do relator Edson Fachin, que propõe a ilegalidade do <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/stf-tem-maioria-contra-tese-do-marco-temporal-das-terras-indigenas-21092023">marco temporal</a>.
A Constituição de 1988 claramente adota uma perspectiva liberal ao proibir distinções pela raça, etnia, religião ou sexo. Pode-se argumentar, porém, que a discussão sobre o marco temporal recai sobre direitos de propriedade. No entanto, nas culturas indígenas, um território é mais do que uma commodity — um fator de produção sujeito à comercialização e, portanto, a leis de oferta e demanda. Uma terra indígena compreende a totalidade da existência e persistência das tradições de povos subjugados pela colonização.
Nesse sentido, cabe destacar o voto do recém-indicado ministro Cristiano Zanin. <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/com-zanin-e-barroso-stf-tem-placar-de-4-a-2-contra-tese-do-marco-temporal-31082023">Conforme relatado em reportagem do JOTA</a>, ele argumentou que os povos indígenas “...possuem a proteção da posse exclusiva desde o império, e, em sede constitucional, a partir de 1934”. Com todas suas limitações e não obstante sua vida curta, a Constituição de 1934 foi a primeira promulgada após extensão do sufrágio às mulheres — analfabetos ainda não podiam votar, mas se trata da primeira Carta Magna brasileira que busca superar o domínio oligárquico que permeou nosso primeiro século de vida política soberana. Ou seja, tratava-se de uma ordem política fundamentada no majoritarismo dos detentores de terras e demais meios de produção.
Zanin vem sendo criticado pela esquerda por ter adotado posturas conservadoras e até mesmo reacionárias em seus primeiros votos no STF. Um ministro da Suprema Corte, porém, não precisa ter afiliação ideológica definida. Deve, acima de tudo, preservar as colunas do regime democrático estruturadas pelo edifício constitucional. <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/zanin-contraria-tendencia-no-stf-e-mantem-decisoes-trabalhistas-que-reconheceram-vinculo-31082023">Ainda conforme publicado no JOTA</a>, o primeiro indicado ao Supremo pelo governo Lula 3 tem votado a favor do reconhecimento de vínculo empregatício em decisões relacionadas a contextos de terceirização e "pejotização". Protege-se, assim, a minoria proletária contra a pressão do empresariado por subterfúgios jurídicos nas relações trabalhistas.
Uma República pode sustentar-se com maior ou menor intervenção do Estado. Porém, um governo cujo poder emana do povo para o povo somente pode assim ser caracterizado caso as minorias estejam a salvo da tirania da maioria. No Supremo, todos os indicados por Chefes de Estado que reconheceram de fato a ordem constitucional vigente parecem ter seguido esse princípio. Separar o joio do trigo é essencial para identificar as reais ameaças à nossa democracia em transe.

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JOTA

Direitos dos povos indígenas são contraponto ao majoritarismo da direita bolsonarista

Rejeição do marco temporal expressa vitória da lógica democrática-liberal

Julgamento do marco temporal encaminha-se para refletir um dos aspectos mais distintivos da democracia liberal em relação a outros regimes