Opinião e Análise

Vinicius Rodrigues Vieira

“Ê, ô, ô, vida de gado/Povo marcado, ê!/Povo feliz!”. Há quase 30 anos essas estrofes eram repetidas quase que diariamente em horário nobre na voz de Zé Ramalho para embalar as cenas da novela O Rei do Gado que retratavam o núcleo dos sem-terra. Os versos integram o refrão de "Admirável gado novo", canção cujo título faz um trocadilho com o clássico distópico de Aldous Huxley, Admirável mundo novo. Caem como uma luva para explicar a adesão de segmentos populares ao populismo de direita que expressa a raiva de eleitores contra o sistema. No Brasil pós-bolsonarista, trata-se do anarcocapitalismo encarnado pelo condenado por furto qualificado e <a href="https://www.jota.info/eleicoes/quem-sao-os-candidatos-a-prefeito-de-sao-paulo-nas-eleicoes-municipais-de-2024">ex-coach Pablo Marçal (PRTB), candidato à Prefeitura de São Paulo</a>.
“Vocês que fazem parte dessa massa/Que passa nos projetos do futuro/É duro tanto ter que caminhar/E dar muito mais do que receber/E ter que demonstrar sua coragem/À margem do que possa parecer/E ver que toda essa engrenagem/Já sente a ferrugem lhe comer.” O “M” de Marçal é a margem por ser marginal — ou seja, vende-se como antissistema. Esse trecho, que abre a canção de Ramalho, resume bem a vida daqueles que, como os vendedores do comércio popular que trabalham na madrugada nas imediações do centro paulistano, parecem ter aderido à candidatura que vem provocando tremores na extrema direita tradicional et caterva.
Há cerca de um mês, ainda na fase de pré-campanha, chamou a minha atenção um conjunto de imagens de Marçal arrebatando seguidores não no espaço virtual, mas no duro ambiente da Feira da Madrugada, dominada por máfias que exploram áreas públicas e as “alugam” a trabalhadores marginalizados em ruas do Brás e do Pari. São camelôs que vivem do comércio de quinquilharias e utilidades nem sempre de procedência legal, tampouco de qualidade confiável. Nos vídeos e fotos que vi e circularam nas redes sociais daqueles bairros, é nítida a adesão daquilo que em estudos acadêmicos costumam ser chamados de setores desorganizados da economia e da sociedade.
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Ignorados pelas forças tradicionais de esquerda e direita, aqueles que, na prática, encarnam o “admirável gado novo” de Ramalho viraram presa fácil para extremistas que se vendem como outsiders. Segundo <a href="https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/pablo-marcal-cresce-entre-homens-evangelicos-classe-media-e-35-aponta-pesquisa-atlas-em-sp,b00715fabd6dcd22404ff67c55b6de8573mjz1v5.html">pesquisa Atlas Intel</a> divulgada em 21 de agosto, Marçal avançou entre aqueles que ganham de R$ 3.000 a R$ 5.000, enquanto tanto Guilherme Boulos (PSOL), apoiado por Lula (PT), quanto Ricardo Nunes (MDB), que suplicou o apoio de Jair Bolsonaro (PL), caíram no segmento.
Segundo a <a href="https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2024/08/23/os-grupos-em-que-marcal-tem-mais-forca-segundo-datafolha.htm">pesquisa Datafolha publicada em 24 de agosto</a>, considerada a margem de erro, Marçal está em empate triplo com Boulos e Nunes e retirou do segundo a preferência manifestada por eleitores bolsonaristas. Também surpreendeu o mundo político a evolução do ex-coach entre aqueles que têm grau de escolaridade até o ensino médio (variação de 16% para 26% das intenções) e os eleitores com ensino superior (variação de 12% para 24%). Marçal mais que duplicou seus índices de preferência no eleitorado entre 35 e 44 anos (16% para 32%) e entre 45 e 59 anos (7% para 19%).
Todos esses segmentos enfrentam a informalidade no mercado de trabalho — imagine depender de atividades precárias numa faixa etária em que a sociedade espera que as pessoas tenham estabilidade para se sustentar a si e seus dependentes familiares, além de eventualmente estar se planejando para a aposentadoria.
No mundo do trabalho precarizado, a retórica coach — segundo a qual é possível quase que num piscar de olhos escalar da pobreza à riqueza — é sedutora para as massas desamparadas pelo Estado, para as quais não há futuro senão um presente contínuo de incertezas. É o Brasil do Brasil da Bia do Brás, participante do último Big Brother Brasil que, tal como seus colegas de trabalho na época em que ainda era aspirante à atriz, tinha que se virar em diversos personagens para sobreviver vendendo desde frutas até roupas no comércio popular.
Marçal também encarna uma trajetória errante, pois se hoje é o candidato mais rico da <a href="https://www.jota.info/eleicoes/quem-sao-os-candidatos-a-prefeito-de-sao-paulo-nas-eleicoes-municipais-de-2024">corrida à Prefeitura de São Paulo</a>, ele já foi alguém que operou à margem das regras do sistema. Sim, foi condenado por um crime, mas pode se vender como perseguido pelo Estado tal como camelôs e afins sofrem com o rapa.
Ou seja, há muito mais identificação entre Marçal e classes populares do que o povo da zona oeste paulistana — que ao lado da zona sul carioca é a ilha mais elitista do Brasil — poderia imaginar. Não é à toa que os descolados do circuito que abrange bairros como Pinheiros, Perdizes e Higienópolis — para não esquecermos os bichos-grilos da Vila Madalena — se perguntam como alguém pobre pode votar em Marçal.
A resposta — ou a pergunta oposta — também embute algo absurdo: como alguém relativamente mais rico pode voltar em Boulos. Seu principal ativo — ele pertence ao campo de centro-esquerda democrática — já seria o bastante para uma escolha digna nas <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/eleicoes-2024">eleições</a>. Porém, não oferece respostas claras para as externalidades derivadas do subemprego oferecido pelas plataformas e a falta de segurança que paulistanos de todas as classes enfrentam no dia a dia.
Não que Marçal ofereça soluções melhores, até porque sua campanha tem sido construída com base na antipolítica, mas o “gado” — isto é, eleitores historicamente marginalizados e invisíveis — que segue Marçal identifica-se com ele por conta da sua trajetória errante, retórica simples e um tanto quanto debochada.
Eis a vingança perfeita contra um sistema excludente. Talvez esse povo tenha se cansado de ser manipulado pelas elites tradicionais que não lhes entrega dignidade. Dos berrantes disponíveis no mercado eleitoral, prefere seguir aquele que lhe parece ser sua imagem e semelhança. O povo está marcado mesmo. Assim, deve pensar, pelo menos será feliz ao verem a ironia de alguém como Marçal fazer o “sistema” pegar fogo. Não faz diferença para as massas. A ferrugem das engrenagens carcomidas da política e da economia já lhes corroeu qualquer esperança.
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JOTA

Ex-coach arrebanha classes desorganizadas na eleição paulistana

O admirável gado novo de Pablo Marçal

Pablo Marçal, ex-coach candidato à Prefeitura de São Paulo pelo PRTB, arrebanha classes desorganizadas na eleição paulistana