Opinião e Análise

Vinicius Rodrigues Vieira

O discurso que o presidente <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lula">Luiz Inácio Lula da Silva</a> (PT) vai proferir na abertura dos trabalhos da Assembleia-Geral da ONU nesta terça-feira (19) deve refletir a tendência global de preocupar-se menos com valores cívico-políticos que com direitos econômicos, sociais e culturais. Conforme amplamente divulgado pela imprensa, a fala do chefe de Estado brasileiro tende a enfocar a necessidade de mudança na governança global, a crise climática e o combate à desigualdade social em escala mundial.
Por ter derrotado um grupo político que claramente articulava um golpe de Estado, seria salutar se Lula também abordasse a necessidade de respeito as instituições e à vontade do povo como elementos fundamentais da soberania das nações. Porém, esses temas — caso venham a ser abordados no discurso do presidente — não devem ter grande destaque. Político com características pragmáticas, Lula é um homem do seu tempo. O fato é que desde 2008 todos os índices de democracia confiáveis apontam para um declínio desse tipo de regime no mundo e, consequentemente, uma redução nos direitos civis e políticos, particularmente em comparação ao que havia se passado no pós-Guerra Fria, na transição do século 20 para o século 21.
Aqueles favoráveis à ênfase dos direitos humanos universais em aspectos econômicos, sociais e culturais argumentam corretamente que não se pode pensar na defesa da liberdade individual e participação política se os indivíduos não tiverem às mãos meios apropriados materiais para exercê-las. Essa argumentação foi basicamente aquela empregada pelo bloco soviético e o movimento dos não alinhados contra os Estados Unidos e seus aliados da Europa Ocidental durante debates na Assembleia-Geral da ONU durante a Guerra Fria.
Dito isso, a falsa oposição entre direitos individuais e coletivos já foi desmontada há tempos por Amartya Sen, economista de origem indiana e Prêmio Nobel. Com a noção de desenvolvimento como liberdade, Sen destrói o argumento de que para haver direitos sociais e econômicos precisamos passar por uma fase em que o Estado é mais forte que a sociedade — ou seja, em português claro, há espaço para tendências autoritárias. Se o objetivo do desenvolvimento tal como o economista argumenta é aumentar as capacidades individuais, não faz sentido, portanto, exercê-la apenas a posteriori.
O desenvolvimento é, assim, necessariamente participativo. Toda forma de participação, claro, demanda algum elemento de liberalismo no sentido de valorizar os indivíduos e, destarte, da democracia. Os opositores ao argumento de Sen podem insistir dizendo que no pós-Guerra Fria não foram os discursos muitas vezes vazios de promoção de democracia vindos do Ocidente que levantaram milhares de pessoas da pobreza ao redor do mundo.
Em vez disso, a geração de oportunidade de desenvolvimento para o Sul Global resultou sobretudo da abertura comercial sem precedentes que o mundo testemunhou após a queda do Muro de Berlim. A própria China seria exemplo disso em casa e no exterior, pois é difícil de imaginar a onda de prosperidade que ocorreu nos últimos 30 anos sem a demanda de Pequim por produtos primários e a criação de classes médias emergentes ao redor do mundo — em particular nas ditas novas potências, entre elas o Brasil.
Convido os defensores desse argumento que ignorem — ainda que por um breve momento — que o Ocidente usa a defesa da democracia de modo hipócrita, conforme seus interesses na arena internacional. Convido-os ainda a pensar na democracia como um regime em que há competição de ideias e políticas, representadas por diferentes partidos que competem entre si em eleições livres e justas. Sem esse cenário, a dinâmica social imaginada por Sen dificilmente seria satisfeita. Assim, fica evidente como defender ideias liberais não significa endossar os horrores praticados pelo Ocidente na era colonial tampouco ignorar as necessidades de desenvolvimento.
O Brasil estaria, caso quisesse, em condições únicas de defender a abordagem de Sen. Isso porque há quase 40 anos — desde a transição do poder militar para o poder civil — temos avançado em inclusão social ainda que o crescimento econômico tenha sido insuficiente. Esse talvez seja o equilíbrio necessário para que o desenvolvimento seja também liberdade. Uma marcha forçada aumenta o PIB, como nós mesmos testemunhamos durante o milagre econômico da ditadura militar, mas talvez ao custo de redução de direitos e elevação da desigualdade, o que cerceia a capacidade dos indivíduos de fazerem suas escolhas. Assim, a produção de riqueza perde sentido.
Sem reconciliar desenvolvimento e liberdade, qualquer discurso de Lula, por mais bem intencionado que seja, pode soar como mero reflexo da defesa dos ditos valores chineses sobre o que seria a democracia. Para Pequim, ela deve ser praticada não dentro das nações, mas entre elas. Qualquer reforma da governança global que não tenha como fim a ampliação das capacidades individuais e, portanto, a abertura de janelas de desenvolvimento e liberdade para todos os povos é apenas reproduzir o velho jogo das potências — sejam elas democráticas ou autocráticas.

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JOTA

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