Opinião e Análise

Vinicius Rodrigues Vieira

Ives Gandra Martins, um dos mais conceituados juristas brasileiros, forneceu as fundamentações jurídicas para a suposta legalidade do golpe que militares bolsonaristas preparavam após a derrota de Jair Bolsonaro (PL) na campanha para a reeleição à Presidência da República. Foi esse <a href="https://veja.abril.com.br/politica/exclusivo-ives-gandra-foi-consultado-para-verniz-juridico-do-golpe">um dos destaques do material publicado na última sexta-feira (16) pela revista Veja</a> sobre a malsucedida conspiração contra a República articulada pelo tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens do então chefe de Estado.
Há, porém, um capítulo importante da contribuição de Martins na estruturação do golpismo de extrema direita no Brasil contemporâneo que cabe ser lembrado: o jurista defendeu publicamente em maio de 2020, em meio à pandemia que acabou por ceifar a vida de 700 mil brasileiros, a chamada “aplicação pontual do artigo 142 da Constituição”.
Em entrevista a Oswaldo Eustáquio, <a href="https://www.cnnbrasil.com.br/politica/pf-localiza-oswaldo-eustaquio-mas-pedido-de-asilo-no-paraguai-evita-prisao/">autointitulado jornalista e blogueiro atualmente foragido no Paraguai</a> após ter sido acusado de incentivar atos antidemocráticos no âmbito do inquérito que investiga a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, Martins deixou claro que entende caber a qualquer Poder da República — Executivo, Legislativo e Judiciário — a mobilização de militares federais para reestabelecer a ordem.
Abordei o assunto em 29 de maio de 2020, um dia depois da entrevista ter sido veiculada no canal de Eustáquio no YouTube, hoje suspenso mediante decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Naquela data, publiquei na coluna Entendendo Bolsonaro, no UOL— antecessora desta Democracia em Transe — artigo intitulado <a href="https://entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br/2020/05/29/bolsonaristas-preparam-verniz-constitucional-para-golpe/">“Bolsonaristas preparam verniz constitucional do golpe”</a>.
O verniz, que depois seria considerado por Cid e seus comparsas para fundamentar uma eventual intervenção na Justiça Eleitoral mediante ordem de Bolsonaro no papel de chefe do Executivo, fundamenta-se em interpretação esdrúxula do artigo 142. Ele estabelece o seguinte:
<blockquote class="jota-article__citation">“As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem". (grifo nosso)</blockquote>
Conforme escrevi em 2020, “Ives Gandra argumenta que o trecho destacado permite que qualquer um dos Poderes constitucionais — isto é, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário — pode convocar as Forças Armadas para manter a lei e a ordem. O jurista — conhecido por suas ligações com o grupo ultraconservador católico Opus Dei — fala em ‘aplicação pontual’ do artigo, com o uso hipotético de militares para que um poder se recuse a cumprir determinações entendidas como inconstitucionais de outro poder”.
Convenientemente, o então presidente Bolsonaro deu publicidade à entrevista do jurista ao hoje jornalista foragido <a href="https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1266101269975924744?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1266101269975924744%7Ctwgr%5E%7Ctwcon%5Es1_&amp;ref_url=https%3A%2F%2Fentendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br%2F2020%2F05%2F29%2Fbolsonaristas-preparam-verniz-constitucional-para-golpe%2F">ao divulgá-la via Twitter</a>. O vídeo foi gravado e divulgado um dia após o ministro do STF Alexandre de Moraes ter autorizado a Polícia Federal a cumprir ordens de busca e apreensão em endereços ligados a blogueiros e empresários apoiadores do então governo, no âmbito do controverso inquérito das fake news.
Mais relevante é o fato de o dia 28 de maio de 2020 ter sido quando Bolsonaro soltou no nada saudoso cercadinho do Alvorada <a href="https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/28/acabou-porra-diz-bolsonaro-sobre-ordem-do-stf-para-operacao-policial-contra-aliados.ghtml">a infame frase “acabou, porra!”</a> <a href="https://piaui.folha.uol.com.br/materia/vou-intervir/">Conforme demonstrou em agosto de 2020 a revista Piauí</a>, não tinha sido um mero desabafo. Afinal, quase uma semana antes, em 22 de maio de 2020, Bolsonaro havia avaliado com militares que ocupavam cargos em seu governo a possibilidade de intervir no STF mandando tropas ao tribunal numa resposta a um mero procedimento de rotina do então decano da corte, Celso de Mello “...para saber se deveria ou não mandar apreender o celular do presidente e do seu filho Carlos Bolsonaro“, em resposta à notícia-crime impetrada por partidos que se opunham ao governo, tal como descrito pela publicação.
Os indícios de uma verdadeira orquestração para fundamentar juridicamente um golpe completam-se com artigo publicado também em 28 de maio daquele mesmo ano por Martins. Cabe destacar, sem prejuízo de eventuais nuances do pensamento do jurista, <a href="https://www.conjur.com.br/2020-mai-28/ives-gandra-artigo-142-constituicao-brasileira">reproduzir o parágrafo que, a meu ver, melhor resume o texto:</a>
<blockquote class="jota-article__citation">“Minha interpretação (...) é que NO CAPÍTULO PARA A DEFESA DA DEMOCRACIA, DO ESTADO E DE SUAS INSTITUIÇÕES, se um Poder sentir-se atropelado por outro, poderá solicitar às Forças Armadas que ajam como Poder Moderador para repor, NAQUELE PONTO, A LEI E A ORDEM, se esta, realmente, tiver sido ferida pelo Poder em conflito com o postulante”.</blockquote>
Martins não vê no cenário descrito acima um golpe de Estado, muito embora tenha manifestado no mesmo artigo ser receptivo a interpretações divergentes a sua. Da mesma forma, Cid e aqueles que o usaram como fantoche não se viam como golpistas. Cabe, portanto, como remédio a qualquer golpismo a ser chancelado por usurpadores da Carta Magna, reformular o artigo 142, removendo dele qualquer ambiguidade.
Todavia, é provável que o atual Congresso, declaradamente de direita, vai preferir manter essa carta na manga, à disposição dos que vão se digladiar pelos espólios do bolsonarismo, cujo líder-mor deve ser declarado inelegível nesta semana. Enquanto isso, cabe perguntar — na linguagem nada sutil da extrema direita brasileira — quando e se o povo dará um “acabou, p....” para as tentações autoritárias explícitas ou travestidas de legalidade que nos assombram.

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JOTA

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