“Mais fortes são os poderes do povo”, afirma o personagem Corisco ao final do clássico Terra em transe, de Glauber Rocha. Mas quais são os limites da vontade popular? Pode ela sobrepor-se à lei democraticamente aprovada, tal como líderes populistas argumentam?
São essas as duas grandes perguntas a guiar os textos que serão publicados toda segunda-feira nesta coluna, intitulada Democracia em transe. Somos o grupo de colaboradores que, entre 2019 e 2023, no portal UOL, assinou a coluna Entendendo Bolsonaro.
No JOTA, seguiremos o mesmo espírito que nos guiou nos quatro anos anteriores: faremos reportagens, análises fundamentadas em dados e artigos de opinião que busquem explicar aos leitores os desafios enfrentados pela democracia liberal, entendida como o regime em que a maioria legitimada pelo voto popular governa, porém sem esmagar a minoria derrotada nas urnas e os grupos marginalizados da sociedade.
Tal equilíbrio é possível apenas graças ao império da lei, tema caro ao JOTA, portal que nos recebe com entusiasmo e ao qual agradecemos pela confiança a ser retribuída com um debate franco e aberto, reunindo profundidade acadêmica e didatismo jornalístico.
Por aqui, partiremos não apenas do debate brasileiro, mas das tentações populistas que, mundo afora, continuam a ameaçar as instituições, especialmente pela via da extrema direita. Em sentido mais amplo, nosso escopo compreende a democracia liberal e seu potencial declínio, destrinchando as raízes históricas desse processo, bem como estratégias para, mais do que revertê-lo, aprimorá-lo à luz dos desafios do nosso século.
Nesse sentido, é inevitável abordar, neste primeiro texto, a intentona bolsonarista que marca, desde o princípio, a trajetória de 100 dias de governo Lula, completos nesta segunda-feira (10). Caso o golpe de 8 de janeiro tivesse vencido, esta coluna poderia até ter sido escrita, mas dificilmente estaria publicada.
Ainda que, é verdade, o modelo autoritário chinês continue a inspirar setores à esquerda, parece-nos evidente que, hoje, os maiores desafios à manutenção da democracia e das liberdades individuais em países do Norte e do Sul Global residem em movimentos à direita, que, à sua maneira, transitam entre o nacionalismo étnico-religioso, o conservadorismo moral e um individualismo pré-moderno.
Conforme já argumentamos em textos anteriores, as eleições presidenciais de 2022 foram, na prática, um referendo sobre os últimos 93 anos no Brasil. A partir da Revolução de 1930, construímos a duras penas, entre momentos democráticos e autoritários, um arcabouço que limita o poder do Estado sobre os indivíduos ao mesmo tempo que os empodera na esfera política e, portanto, confere-lhes oportunidades de ascensão econômica e social.
O legalismo liberal do Império e da República Velha deu lugar à inclusão progressiva das massas na política, não obstante os regimes autoritários de 1937 e 1964. Coroou esse processo de construção da cidadania a Constituição de 1988 – não por acaso o alvo preferencial da ultradireita brasileira, que não engole o protagonismo de civis e minorias na política e, portanto, na economia e na sociedade.
No Brasil, para o bem e para o mal, a democracia segue em transe: de um lado, desafiada por grupos que tentam extrair, do âmago de nossa cultura social e política, aquilo que temos de pior; de outro, convocada a uma reforma profunda que vise integrar, em seu pacto social, demandas por justiça, igualdade e proteção ao meio ambiente e de grupos marginalizados.
Nesse sentido, enquanto boa parte do campo progressista ignora o poder dos evangélicos e do agronegócio, a ultradireita brasileira mantém um campo fértil para semear suas sementes de destruição – tudo isso enquanto o próprio agro se vê desafiado a uma reinvenção verde, visando a competição no mercado global.
Do outro lado do globo, experiências similares também merecerão nossa atenção. Na Turquia, as eleições de maio representam uma oportunidade única para pôr um fim a 20 anos de domínio do atual presidente Recep Tayyip Erdogan contra o secularismo e a independência dos Poderes, refletida em intervenções no Judiciário.
Na Argentina, assolada por uma crise sem fim, candidatos que flertam com a ultradireita ganham espaço no pleito a ocorrer no segundo semestre. Nos Estados Unidos, o trumpismo ressurge em meio à falta de realismo da política externa de Biden e suas consequências no plano político-econômico doméstico.
Esta Democracia em transe oferece, assim, um escrutínio das ameaças enfrentadas por aqueles que defendem uma sociedade aberta, dando voz, por outro lado, às múltiplas possibilidades de futuro que emergem deste mesmo transe democrático.