Opinião e Análise

Igor Rocha

O caso que envolve a deputada <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/carla-zambelli">Carla Zambelli</a> (PL-SP), o “hacker de Araraquara” Walter Delgatti Neto e a reunião de ambos com o então presidente <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/jair-bolsonaro">Jair Bolsonaro</a> (PL) em 2022 já é bem noticiado. O objetivo aqui não é descrevê-lo, tampouco dar um veredito sobre ele antes que as autoridades competentes o façam.
O ponto aqui é refletir sobre as implicações das teorias conspiratórias a respeito das urnas eletrônicas — elemento-chave deste caso — na nossa democracia e no debate político. Para isso, considero a seguinte hipótese: e se Zambelli, Bolsonaro e seus apoiadores em cargos públicos, eletivos ou não, acreditarem de fato que urnas podem ser hackeadas, que o sistema eleitoral conspira contra eles? Se a resposta for sim, temos um quadro bem preocupante, para dizer o mínimo.
Iniciando a reflexão, remeto ao artigo intitulado <a href="https://piaui.folha.uol.com.br/pseudo-fake-news/">Pseudo-fake News</a>, de Rafael Cariello, publicado na revista Piauí às vésperas da eleição de 2018. O autor alertava para um problema sistêmico que têm sua origem na própria evolução das plataformas de comunicação, muito embora não tenha sido percebido a tempo nem pela sociedade civil — incluindo organizações como as agências de checagem ou imprensa — nem pelas autoridades. Por exemplo, devido às redes sociais digitais e grupos de aplicativos de mensagens, tornou-se possível uma comunicação mais imediata — no sentido de não terem mediação por parte de terceiros, como veículos de imprensa — entre lideranças políticas com suas bases.
Nesses ambientes, fragmentados e estruturados de maneira mais ou menos horizontalizada, a informação chega em busca somente de validação, sem escrutínio ou crítica, confirmando pressupostos e apelando para sentimentos e crenças. Assim, formam-se espaços nos quais a realidade factual tem sua importância medida segundo sua capacidade de confirmar vieses. Comunidades que se organizam digitalmente, mas com efeitos no mundo “real”, emergem e expandem-se cada vez mais aferradas às suas verdades, sempre bastante reativas a quaisquer informações que contradigam suas crenças prévias. Tais comunidades, portanto, tornam-se um lugar de mobilização permanente.
Assim, concluiu Cariello, foi formado um ambiente fértil para que lideranças políticas, cínicas conhecedoras do potencial mobilizador desses espaços de circulação de informação, recorram ao artifício das fake news e teorias conspiratórias, bem como seus esquemas retóricos e estruturas discursivas, para atiçar suas bases e eleitorados.
O autor descreve o ambiente que produziu, por exemplo, figuras como o ex-presidente americano Donald Trump ou Bolsonaro, no qual predomina uma forma de ver e representar a realidade que lembra aquilo que o teórico Jovan Byford, em <a href="https://link.springer.com/book/10.1057/9780230349216">Conspiracy Theories: A Critical Introduction</a> (2011), chamou de “pensamento conspiratório”.
De modo conciso, pode-se dizer que Byford argumenta que “pensamento conspiratório” define uma forma de ver o mundo segundo a qual as conspirações são uma espécie de “motor da história”. Isso significa conceber uma realidade em que, a todo momento, todas as coisas estão sendo movidas por alguém, identificado de maneira tão precisa quanto difusa. Na visão da extrema direita, esse é o caso de grupos como chineses, comunistas, judeus, entre outros — minorias supostamente inimigas da nação que agiriam de maneira ordenada e imparável visando manipular o todo de forma oculta.
Interessantemente, os únicos “iluminados” a perceber suposta manipulação seriam os integrantes da comunidade que compartilha a crença conspiratória. Os agentes da conspiração sempre têm um plano tão maligno quanto grandioso, tais como a destruição da religião e da família, implementação do comunismo, manipular eleições. Embora jamais se convertam em realidade, essas ameaças sempre pairam sobre aqueles que se autodenominam “pessoas de bem”. Conforme eles alertam, o inimigo está sempre agindo e pode vir a ter sucesso num futuro próximo. Esse alerta, porém, serve apenas para manter a base político-social desses extremistas permanentemente mobilizados.
Portanto, pode-se dizer que teorias conspiratórias envolvendo urnas eletrônicas e sistemas eleitorais também se encaixam em um pensamento conspiratório, envolvendo todos os elementos citados acima: trata-se de um grande plano — forjar resultados de eleições —, feito por agentes difusos — Tribunal Superior Eleitoral (TSE), PT, “comunismo”, “imprensa” — que manipulam o todo (a população) exceto quem conhece a “verdade” sobre tudo isso. A narrativa chama para a ação que, no limite, implica em resistir ao resultado das eleições. Assim, a conspiração sobre as urnas mobiliza consciências e sensibilidades políticas antidemocráticas diversas, chamando-as a agir.
<a href="https://www.tre-ba.jus.br/comunicacao/noticias/2021/Janeiro/201cteses-sobre-fraude-nas-urnas-e-manipulacao-eleitoral-tem-raizes-em-ideais-autoritarios201d-afirma-pesquisadora">Em entrevista ao site do Tribunal Regional Eleitoral da Bahia</a>, a especialista em comunicação digital Tatiana Dourado explica como a teoria de que as eleições são manipuladas e as urnas eletrônicas fraudadas são parte de uma narrativa essencialmente autoritária, circulante em várias subculturas digitais e que funcionam como amálgama de ideias extremistas diversas. No limite, essa e outras ideias conspiratórias servem como mobilizadoras de sensibilidades políticas de extrema direita, fortemente refratárias à democracia.
Em resposta à pergunta que abre este texto — acreditariam as lideranças bolsonaristas nas teorias que difundem —, pode-se dizer que, caso tenhamos autoridades públicas que efetivamente creem que urnas possam ser hackeadas e agem fundamentadas nessas crenças, talvez estejamos num contexto em que devamos pensar em camadas mais complexas do que a ideia do político cínico que usa de conspiracionismos para obter votos.
Do mesmo modo, as massas supostamente sectárias que seguem esses mesmos sujeitos devem ser compreendidas de outra forma para que levemos a sério seu impacto na vida política. Hoje, a força desses segmentos sociais que integram subculturas conspiratórias que acreditam que as urnas são hackeáveis logram eleger deputados e deputadas, de forma autônoma e organizada, pautando o debate político ao seu modo. Quisera eu estar equivocado sobre esse diagnóstico.

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JOTA

E se lideranças bolsonaristas realmente acreditam na realidade paralela que difundem nas redes?

Crença em teorias da conspiração põe na berlinda respeito ao jogo democrático

E se lideranças bolsonaristas realmente acreditam na realidade paralela que difundem nas redes, como a que urnas podem ser hackeadas?