Opinião e Análise

Warley Brant Pimentel

A análise de períodos históricos nos permite traçar temporalidades que podem ser curtas ou longas, a depender do que se quer ressaltar. Após quatro anos sendo surrada e ameaçada pelo bolsonarismo, a democracia brasileira vê-se diante da possibilidade de reparação. Os escândalos que vêm sendo revelados na CPMI do 8 de janeiro, tendo como elemento central o tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens no mandato de <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/jair-bolsonaro">Jair Bolsonaro</a> (2019-2022), e Walter Delgatti, vulgo “hacker de Araraquara”, aumentaram as expectativas em torno da prisão do ex-presidente, além de terminar por jogar por água abaixo a já bastante prejudicada imagem dos militares na República brasileira.
A promiscuidade entre Forças Armadas e política já vinha sendo observada desde a articulação da campanha de Bolsonaro à Presidência. Buscava-se então aglutinar os eleitores antipetistas, os descrentes quanto ao establishment, e eleitores saudosistas da ditadura militar, que sempre pensaram que problemas complexos e sistêmicos podem ser resolvidos com um simples passe de mágica, recorrendo à fórmula de colocar no poder um “homem forte”. Trata-se de um mal endêmico no Brasil, pois desde a Proclamação da República nosso sebastianismo vestiu verde-oliva.
O saldo, no entanto, nunca foi diferente: após anos no poder, o país entra em crise e os militares voltam à caserna e lá aguardam uma nova crise. No intervalo entre uma crise e outra, boas doses de esquecimento fazem com que civis desesperados ou golpistas-raiz convoquem os boinas-verdes de volta à política.
A reação pública ao que vem sendo revelado sobre a relação entre Bolsonaro e seus militares, no entanto, tem nos colocado diante da melhor oportunidade de fazer algo inédito na história do Brasil republicano: julgar os militares e dar um basta ao golpismo dentro das Forças Armadas. Para isso, é preciso não só avançar nas investigações, mas entrelaçá-las à destruição de mitos políticos que se instalaram desde o início da história de nossa República.
Nesse contexto, a questão das temporalidades históricas — mencionada no início deste texto — torna-se crucial. A CPMI do 8 de janeiro pode ser compreendida como uma continuidade da CPI da Covid-19. Embora sem muitos resultados práticos desde que foi encerrada, foi nela que a imagem de Bolsonaro e seus asseclas fardados começou a ser seriamente abalada. Quando Eduardo Pazuello, militar supostamente especializado em logística e ministro da Saúde durante a fase mais sombria da pandemia, foi interrogado por civis, ficou evidente que aquilo que deveria ter sido um combate racional à pandemia tinha sido convertido em uma verdadeira política da morte. Assim, ficou explícita a magnitude da incompetência e má-fé presente nesse amálgama nocivo, composto por Bolsonaro e militares.
Sorte nossa que, como quadrilha, eles eram pouco organizados: os atos golpistas de 8 de janeiro falharam, a resposta da sociedade civil e do campo democrático foi rápida, e as investigações vêm avançando, culminando na atual CPMI do 8 de janeiro. Confirmando-se as articulações golpistas, Bolsonaro e todos os militares envolvidos precisam ir presos. No caso dos militares, é preciso defender a exoneração dos criminosos, sem direito a qualquer indenização ou benefício. Esse é o primeiro passo para limpar a imagem das Forças Armadas, que precisam não apenas serem restauradas, mas reformadas desde suas bases mais fundamentais, aniquilando de suas entranhas a seiva venenosa do golpismo que as corrompe desde suas origens.
Nesse sentido, podemos pensar que estamos em um momento decisivo cuja temporalidade histórica remete à nossa fundação republicana. Como república significa “coisa pública”, identificada com o “bem comum” e com o “domínio das leis”, é tempo de mostrar que elas também servem para os militares e que “bem comum” não pode se relacionar à tutela militar.
Essa complexa e importante missão política e histórica deve ser um compromisso de Estado e não de governo. Quanto menos atrelada ao governo federal e mais às instituições, com o Judiciário e o Legislativo — contando com a adesão e apoio da imprensa e dos demais setores civis —, maiores serão as chances dessa tarefa ser bem sucedida. É necessário ir além da punição: precisamos analisar e reformular os currículos militares, transformar sua concepção a respeito da história do Brasil e sua função enquanto instituição militar.
Ao longo do século 20, construiu-se o mito das Forças Armadas como uma instituição honrada, idônea, defensora de fortes valores morais e guardiã do Brasil. A CPI da Covid-19 e a CPMI do 8 de janeiro deixaram claro, para quem quiser ver, que os militares são tão suscetíveis à corrupção e a falhas morais como quaisquer outras pessoas. A queda do mito Bolsonaro é indissociável do colapso de outra divindade: os militares incorruptíveis, supostamente preocupados com a nação. É hora de eles ouvirem algumas verdades, assim como de sofrer as consequências delas.

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JOTA

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