Opinião e Análise

Raphael Tsavkko Garcia

Em janeiro de 2022, o antropólogo Antonio Risério <a href="https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/01/racismo-de-negros-contra-brancos-ganha-forca-com-identitarismo.shtml">escreveu na Folha de S.Paulo</a>: “O dogma reza que, como pretos são oprimidos, não dispõem de poder econômico ou político para institucionalizar sua hostilidade antibranca. É uma tolice. Ninguém precisa ter poder para ser racista, e pretos já contam, sim, com instrumentos de poder para institucionalizar o seu racismo”.
Foi o que bastou para que uma pequena revolução tivesse sido desencadeada. De um lado estavam aqueles que exigiam a cabeça de Risério, protestando contra a audácia de ele ter dito o óbvio: todo tipo de racismo — entendido como qualquer ideologia que prega a superioridade de um grupo racial sobre outro — é detestável e que qualquer indivíduo pode ser racista. Do outro encontrava-se a maioria silenciosa que por muito tempo foi calada pelos chamados identitários através de cancelamentos, boicotes e intimidação.
Apesar da aparente vitória dos identitários que conseguiram que a Folha não mais permitisse um debate desse tipo em suas páginas, o fato é que mais e mais vozes começaram a se levantar contra o autoritarismo dos autointitulados progressistas. Quase dois anos depois, porém, a sociedade brasileira enfrentou algo impensável: uma ativista negra pregando racismo contra brancos foi publicamente criticada e perdeu seu cargo público. A ironia? Marcelle Decothé era assessora especial de <a href="https://www.jota.info/eleicoes/quem-e-anielle-franco-futura-ministra-da-igualdade-racial-22122022">Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial</a> num governo liderado pela esquerda.
Até mesmo notórios identitários viram-se forçados a aplaudir a decisão de demitir a assessora, ainda que de maneira tímida. Outros preferiram o silêncio. Obviamente a maioria não concordou que a assessora tivesse sido racista, mas “apenas” preconceituosa. Afinal, se não há racismo de negros contra brancos, então Decothé não fez nada de errado. No mínimo, apenas teria se expressado de forma inadequada contra o “opressor”.
No geral, o episódio reeditou tentativas por parte de movimentos identitários de reinterpretar como forma de reparação histórica aquilo que, no fundo, é racismo. “Torcida branca, que não canta, descendente de europeu safade... Pior de tudo, pauliste”, escreveu Decothé em referência aos torcedores do São Paulo no jogo da final da Copa do Brasil contra o Flamengo.
Como o professor <a href="https://x.com/willgomes/status/1706990044139987341?s=20">Wilson Gomes escreveu</a> na rede social X, antigo Twitter: “para haver racismo é bastante acreditar que os seres humanos se dividem em raças biológicas e que pelo menos uma raça produz humanos inferiores. É simples”. Ele <a href="https://x.com/willgomes/status/1706988714532987354?s=20">completou</a>: “há uma linha reta que vai do dogma ‘racismo contra branco não existe, galera’ e uma pessoa se sentir confortável e inimputável ao ponto de cometer racismo contra brancos, azuis e lilases. Deram-se um excludente de ilicitude e os progressistas acham lindo”.
Não existe ninguém louco o suficiente para afirmar que o racismo de negros contra brancos tenha o mesmo peso que o contrário. Ou as mesmas raízes históricas. Muito menos as mesmas consequências. Mas o que define racismo não é o resultado, e sim a intenção e o fato. Sequer entrarei no mérito da tese de racismo estrutural, que não passa de “uma falácia”, nas palavras de Risério – pessoalmente prefiro pensar em racismo sistêmico e não em estrutural, ainda mais quando a “estrutura” promove campanhas contra racismo, criminaliza o racismo e tem ministério para combater e conscientizar contra o racismo.
O fato é que a escravidão foi uma excrescência que deixa marcas até hoje, que o racismo contra negros é um fenômeno extremamente comum, infeliz, e com repercussões negativas para toda a sociedade – e para os negros em particular, obviamente. No entanto, nada disso serve como legitimador do racismo “por vingança,” do racismo “militante.” Não existe racismo que educa.
Ao atacar a torcida do São Paulo por serem supostamente brancos como fez Decothé com intenção de ofender, ela desfilou racismo. Aliás, a moda entre identitários é de usar termos como “homem”, “branco”, “hétero” e afins como forma de ofender. Não faz diferença se o alvo se sente ofendido – pessoalmente acho apenas patético – e sim se a intenção é a ofensa, é diminuir, desumanizar, silenciar. O mesmo vale para o termo bastante popular “branquitude”, usado como forma de desumanizar o branco.
Quando vemos indivíduos do movimento negro defendendo que “miscigenação é genocídio” e pregando a inferioridade do branco, isso é racismo. Não importa se não haverá repercussão efetiva, se não forem criadas políticas antibrancos. Racismo é ato, ação, ódio, preconceito expresso e não (apenas) suas consequências visíveis. E nada disso muda o fato de que negros são as maiores vítimas de racismo ou que suas consequências são indescritíveis.
Como <a href="https://twitter.com/paulocruzphi/status/1707051347479019558">explicou o filósofo Paulo Cruz</a>, “o que muita gente não entende — por pura ignorância conceitual — é que pensar o racismo a partir das estruturas e relações de poder é UMA maneira de compreender o racismo, que, aliás, é moderna e minoritária na tradição de pensamento e no senso comum”.
Mas mesmo que fôssemos considerar que o poder de impor a crença racista dentro de uma estrutura social é necessário para falar em racismo, podemos usar o mesmo raciocínio dos identitários e entender que o poder se manifesta de formas diferentes em diferentes esferas, momentos e situações. Se é impossível afirmar a existência de racismo contra brancos quando pensamos nas relações de poder no nível macro, podemos questionar se não seria plausível pensar em racismo contra brancos, por exemplo, na esfera intelectual, nas universidades, onde os identitários são os que efetivamente exercem poder através de uma crescente coerção ideológica – com intimidações, silenciamento, exigências de demissões etc.
Quando falamos de uma assessora especial de um ministério sendo racista, estamos falando de uma relação de poder entre alguém que faz parte do aparato estatal e meros torcedores de um time de futebol. Quem será que tem mais poder nessa relação?
Enfim, não importa por qual ângulo observemos: o fato é que racismo é uma chaga. Ainda que atinja desproporcionalmente mais os negros, não pode servir de justificativa para que racistas ajam impunemente – seja contra quem for. A punição à Decothé — a perda do cargo e de um salário raramente visto pela maioria absoluta dos brasileiros — é mais do que justa.
Sobra, todavia, a guerra de narrativas. E, claro, sobram identitários no governo que demonstram claramente não ter a capacidade para estarem onde estão. Acreditam estar no movimento estudantil, na universidade, onde podem gritar alto e os demais irão se calar. A dinâmica das instituições democráticas, respaldadas pelo Estado de Direito, é diferente.
Retorno ao professor Wilson Gomes, que <a href="https://twitter.com/willgomes/status/1706643276734853452">explicou de forma bastante didática</a> que “esse pessoal precisa entender que governo não é ONG, não é departamento universitário, não é movimento social, não é festival literário ou redação de jornais onde cartadas identitárias são ‘potentes’. No governo, serão tratados com a mesma severidade com que se tratava o bolsonarismo”.
Enfim, o problema de chamar para trabalhar no governo pessoas que pensam e agem como integrantes de diretório central de estudantes de universidades é que, uma vez investidos de poder, vão se comportar como se estivessem no DCE. O Brasil, porém, é mais complexo que bravatas, sejam elas proferidas pela esquerda ou a direita ou ainda por racistas “safades” dos mais diversos matizes.

racismo

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JOTA

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