Opinião e Análise

Vinicius Rodrigues Vieira

Bolsonaro fez do comício do último domingo (25) uma espécie de velório político. Isso porque, ao falar em passar uma <a href="https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd173qq9x74o">borracha no passado</a> e pedir anistia para si e demais golpistas — inclusive aqueles presos no 8 de janeiro —, o ex-presidente claramente pediu clemência pelos crimes pelos quais em breve deve ser indiciado — entre eles, muito provavelmente estará a tentativa de abolição violenta do Estado democrático de Direito. Mas, como em qualquer despedida fúnebre, os correligionários tal como familiares gananciosos já começaram a discutir a sucessão do espólio sem maiores cerimônias.
Mais do que defender Jair Messias, os que discursaram no ato realizado na avenida Paulista buscaram sinalizar ao camisas-amarelas que estão dispostos a seguir com seu legado de ódio à democracia e messianismo político. A ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro — candidatíssima em 2026 graças à sua capilaridade junto aos evangélicos, sobretudo as mulheres — explicitou um dos pilares do bolsonarismo sem Bolsonaro. “Por um bom tempo fomos negligentes, a ponto de falarmos que não mistura política com religião, e o mal ocupou. Chegou o momento da libertação”, <a href="https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/michelle-na-paulista-fomos-negligentes-ao-nao-misturar-religiao-e-politica-e-o-mal-tomou-o-espaco,0b25d289dce707b6b626f92e55948956m56w802g.html">afirmou</a> aos 185 mil presentes.
Nenhuma outra fala talvez pudesse ter resumido melhor a essência da extrema direita atual não apenas no Brasil, mas ao redor do mundo: advoga-se o retorno a um modelo pré-iluminista, em que a autoridade emana de uma (suposta) vontade divina. Se sob os primeiros mandatos petistas alguns críticos ao partido de Lula falavam em república sindicalista, o projeto de Michelle para o bolsonarismo pós-Bolsonaro consiste numa república de pastores — ou seja, uma teocracia na prática. Não foi à toa que Silas Malafaia, um dos maiores líderes evangélicos do país, bancou o comício.
Falou ainda o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), que fez do Palácio dos Bandeirantes um hotel para o casal 20 da extrema-direita. Causa espécie que ele tenha falado que Bolsonaro <a href="https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/02/25/ato-bolsonaro-paulista.htm">deixou um legado</a>. Talvez tenha sido uma referência aos 700 mil mortos na pandemia, sem falar nos órfãos da Covid. Ou quiçá o desarranjo nas contas públicas. Para quem enxerga no governador o alvorecer de uma direita civilizada no país, a participação dele no ato de apoio ao ex-presidente deve ter enterrado tal esperança.
A isso soma-se a <a href="https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/02/23/perfil-pm-troca-coroneis-tarcisio.htm">estranha movimentação ocorrida na última semana na Polícia Militar paulista</a> sob as ordens de Tarcísio e orientação do secretário de Segurança, Guilherme Derrite, que substituiu 34 coronéis da corporação por oficiais com passagem pela Rota e simpatia ao bolsonarismo. À luz do fato de que bolsonaristas vão segurar neste ano os pedidos de impeachment de Lula, essa troca de guarda sugere que a extrema direita brasileira aposta na vitória de Donald Trump nas eleições americanas de novembro próximo para tumultuar a política nacional.
Um Bolsonaro preso ganharia aura de mártir nesse cenário — um exercício contrafactual sugere que o golpe bolsonarista teria sido bem-sucedido caso Trump fosse o presidente dos EUA. A diplomacia americana foi contundente nos bastidores ao deixar claro a militares que a Casa Branca não apoiaria nenhuma ruptura institucional em 2022.
Ainda que tenha reconhecido a minuta do golpe e, assim, produzido provas contra si, Bolsonaro e, portanto, o bolsonarismo estão longe de perder apoio. Na política, importa menos a legalidade que a legitimidade. Goste-se ou não do ex-presidente, o fato é que aos olhos de parcela significativa da população ele e seu movimento de extrema direita são legítimos, e o golpe pretendido em 2022 teria sido amparado pela Constituição. Foi o que ele argumentou no domingo em alto e bom som, tanto que <a href="https://www.cnnbrasil.com.br/politica/fala-de-bolsonaro-sobre-minuta-golpista-vai-constar-em-investigacao-dizem-fontes-da-pf/">a Polícia Federal vai incluir o discurso dele no inquérito</a> que apura a tentativa de golpe.
Rei morto, rainha ou rei posto. Não importa quem herdar os votos de Bolsonaro em 2026 e nas eleições seguintes — se é que continuará a haver eleições de fato num cenário em que o bolsonarismo volte ao poder e/ou Trump esteja na Casa Branca. A direita brasileira empurra o país para o abismo do arbítrio teocrático e militarizado. Subestimar Michelle e Tarcísio é o pior erro que os democratas de todas as colorações políticas podem cometer.

paulo_pinto-4

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Ex-presidente busca se livrar da cadeia enquanto Tarcísio e Michelle ensaiam luta pelo seu legado

Bolsonaro faz velório político, mas extrema direita segue forte no Brasil

Ex-presidente Jair Bolsonaro busca se livrar da cadeia enquanto Tarcísio e Michelle ensaiam luta pelo seu legado