Opinião e Análise

Vinicius Rodrigues Vieira

“Pense no Haiti/Reze pelo Haiti/O Haiti é aqui/O Haiti não é aqui.” Há exatos 30 anos foi lançada a canção "Haiti", como parte do álbum <a href="http://tropicalia.com.br/v1/site/internas/disco_trop_2.html">Tropicália 2</a>, uma celebração de Caetano Veloso e Gilberto Gil pelos 25 anos do movimento tropicalista, iniciado em 1968. A referência ao país caribenho no título e refrão da canção é mais próxima de nós do que talvez as elites e o cidadão médio brasileiro possam imaginar.
Na dubiedade do refrão acima estão as contradições de um Brasil que figura entre as maiores economias do mundo, mas apresenta extrema desigualdade sociorracial; um Estado que não é falido, muito embora o patrimonialismo prevaleça em políticas públicas relevantes; uma democracia eleitoral em que com certa frequência surgem denúncias de tortura por parte de forças policiais, em particular contra pretos e pobres.
“...a fila de soldados, quase todos pretos/Dando porrada na nuca de malandros pretos/De ladrões mulatos/E outros quase brancos/Tratados como pretos/Só pra mostrar aos outros quase pretos/E são quase todos pretos/Como é que pretos, pobres e mulatos/E quase brancos, quase pretos de tão pobres são tratados”. Trata-se de parte do conjunto de estrofes iniciais de letra de Caetano, embora as cenas descritas caiam como uma luva para retratar ações contemporâneas de qualquer uma das polícias militares, sejam elas comandadas por governadores de direta, como Tarcísio de Freitas (Republicanos), em São Paulo — <a href="https://www.metropoles.com/sao-paulo/mortes-no-guaruja-tarcisio-adota-discurso-de-guerra-e-se-reaproxima-do-bolsonarismo">onde recentemente policiais promoveram mortes em série</a> para se vingarem do assassinato de um soldado da Rota —, ou por políticos de esquerda, notadamente Jerônimo Rodrigues (PT), <a href="https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2023/08/17/governador-repercute-monitor-da-violencia-reconhece-inteligencia-de-grupos-criminosos-mas-diz-que-a-bahia-nao-vai-ficar-refem.ghtml">cujas tropas apresentam alto grau de letalidade na Bahia</a>, o estado com maior proporção de negros em sua população.
Esquerda e direita não dão os braços apenas no quesito violência policial e racismo estrutural. Aparentemente há igualdade entre correntes políticas no apetite patrimonialista, elemento-chave para compreender a fraqueza do Estado no mundo pós-colonial. Ainda tomando o governador paulista como exemplo, sua gestão incorre em notório conflito de interesses ao contratar serviços de uma empresa ligada ao secretário estadual da Educação, <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-aula-e-uma-grande-televisao-mas-sem-televisoes-07082023">Renato Feder, o mesmo que propôs abolir o uso de materiais impressos</a> nas escolas de educação básica de São Paulo. Rui Costa, atual ministro da Casa Civil do governo Lula e antecessor de Jerônimo no Governo da Bahia,<a href="https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2023/03/08/ex-primeira-dama-da-bahia-e-esposa-do-ministro-rui-costa-aline-peixoto-e-eleita-para-o-tribunal-de-contas-dos-municipios-do-estado.ghtml"> emplacou a esposa no cargo vitalício de conselheira do Tribunal de Contas do Estado</a>.
No entanto, diferentemente do que se passa em círculos à direita, a maior parte da esquerda brasileira está comprometida de modo inequívoco com a manutenção de eleições livres e competitivas no país. Mais do que o Brasil, o Haiti tem uma história de sucessivos golpes e instabilidade política desde sua independência, conquistada em 1804. Reparações pesadas pagas à França, sua ex-metrópole, e divisões internas comprometeram qualquer projeto de desenvolvimento no país.
O Haiti será aqui? Quando ainda era militar, Tarcísio serviu na controversa missão da ONU que o Brasil liderou naquele país. Seu desligamento do Exército teria ocorrido após desenvolver um quadro depressivo, tal como o próprio governador chegou a descrever em entrevistas à época da campanha — interessantemente, buscas atuais sobre o assunto na internet não retornam resultado algum. Tarcísio deixou o Haiti, mas o Haiti não deixa o governador nem qualquer outro político brasileiro. Caetano e Gil pedem na referida canção para pensar e rezar pelo Haiti “... quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo/Diante da chacina”, uma referência ao Massacre do Carandiru, em 1992. Como os demais trechos da letra de Haiti, tornou-se, porém, uma reflexão atemporal, dado que nossas mazelas persistem.
O Haiti ainda não é aqui se pensarmos que <a href="https://www.esquerdadiario.com.br/A-Abolicao-da-escravidao-e-o-medo-da-haitianizacao-no-Brasil">o termo “haitianização” sempre foi um fantasma entre as elites escravistas</a>. Tal espectro ainda deve existir considerando que aqueles que comandam o Brasil nas esferas político-econômicas ainda são predominantemente brancos e aderiram com intenso vigor ao bolsonarismo. O processo de independência no país caribenho foi liderado por escravos de origem africana que buscavam sua liberdade, ainda distante entre os integrantes da diáspora africana mundo afora — inclusive em terras brasileiras. Portanto, no sentido de buscar mais diversidade entre os que nos lideram, uma “haitianização” do país seria, sim, desejável e necessária para que possamos ser uma República de fato, no sentido de ser um governo do povo.
"Não importa nada/Nem o traço do sobrado, nem a lente do Fantástico (...)/Ninguém/Ninguém é cidadão." Dos versos escritos por Caetano, estes são para mim os mais impactantes. Ninguém será cidadão — independentemente da cor da pele — enquanto a violência, o racismo, o patrimonialismo e, portanto, as tentações autocratizantes forem consideradas normais. Mais do que pensar e rezar pelo Haiti — ou, melhor dizendo o Brasil —, faça um esforço por ele e seus desvalidos. “E a grandeza épica de um povo em formação/ 
Nos atrai, nos deslumbra e estimula." Que os versos mais otimistas de Haiti, cantados por Gil na gravação original, abram caminhos mais alvissareiros para todos nos próximos 30 anos.

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JOTA

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