Opinião e Análise

Roberta Simões Nascimento

Natasha Salinas

O advento da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/L14454.htm">Lei 14.454/2022</a>, que alterou a Lei 9.656/1998, que dispõe sobre os planos privados de assistência à saúde, para estabelecer critérios que permitam a cobertura de exames ou tratamentos de saúde que não estão incluídos no rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar, poderá ter colocado um fim na novela sobre a taxatividade do rol da ANS.
Ou não. Na verdade, isso dependerá do destino das ADIs 7088, 7183 e 7193 e ADPFs 986 e 990, cujas audiências públicas já tinham até data para discutir a questão, mas acabaram sendo desmarcadas com a aprovação do PL 2033/2022. Após a sanção da Lei 14.454/2022, <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/saude/barroso-deve-arquivar-processos-sobre-rol-da-ans-no-stf-27092022">foi veiculado aqui que o ministro relator Luís Roberto Barroso deverá arquivar as ações</a>. A ver. O julgamento virtual está agendado para ocorrer entre a próxima sexta-feira (28) e o dia 9 de novembro.
O assunto já tinha sido tratado em <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/rol-da-ans-taxatividade-poder-normativo-agencias-reguladoras-30032022">coluna passada</a>, antes do julgamento do STJ (EREsp nº 1.886.929 e EREsp nº 1.889.704). Naquela ocasião, o arranjo normativo anterior à Lei 14.454/2022 (isto é, à luz da Lei 14.307/2022, impugnada nas ações que estão no STF) apontava para um caso claro de aplicação da chamada doutrina Chevron, oriunda da construção da Suprema Corte dos Estados Unidos, com deferência para a interpretação veiculada pela agência reguladora, nos moldes da ADI nº 4.874.
Embora os objetos das ações não fossem atos normativos da agência, o emprego da doutrina Chevron seria acertado, porque <a href="https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&amp;docID=760064634&amp;prcID=6358147">a taxatividade não advinha de uma clara disposição legislativa nesse sentido por parte da Lei 14.307/2022, que simplesmente disciplinava o procedimento administrativo a ser adotado pela ANS para a atualização do rol cobertura básica</a>, sem especificar seu caráter taxativo ou exemplificativo.
A controvérsia advinha, então, de uma interpretação da ANS (no sentido da necessidade de atualização do rol para a incorporação de procedimentos), dentro do espaço de sua competência normativa, por mais que o Poder Judiciário insistisse em relativizá-la em inúmeros casos, determinando a cobertura de procedimentos e eventos não listados.
Agora, no entanto, com a inclusão do art. 10, § 13, da Lei 9.656/1998, incluído pela Lei 14.454/2022, o Congresso Nacional fez uma clara opção legislativa no sentido de mitigar a taxatividade do rol da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ans">ANS</a>.
Atualmente, no caso de tratamento ou procedimento prescrito por médico ou odontólogo assistente que não estejam previstos no rol de referência básica, a cobertura deverá ser autorizada pela operadora de planos de assistência à saúde, desde que: 1) exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou 2) existam <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/saude/o-que-e-a-conitec-e-como-ela-define-as-novas-tecnologias-no-sus-05062023">recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec)</a>, ou exista recomendação de, no mínimo, um órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.
O novo dispositivo legal não está livre de críticas. <a href="https://www.conjur.com.br/2022-out-04/fabrica-leis-armadilhas-regulacao-fronteiras-regulacao-nacional">Algumas delas foram lançadas aqui</a>. Mas, no que interessa à coluna de hoje, importa destacar que a atuação do Congresso Nacional promoveu uma reviravolta na discussão, que então passou a ser sobre se existiria uma “última palavra” em matéria de regulação ou uma “supremacia legislativa” em face das agências reguladoras. A questão é debatida há muitos anos nos Estados Unidos, com diversos posicionamentos por parte da literatura e dos tribunais para lidar com os embates que podem surgir dos poderes normativos das agências reguladoras.
Por lá, as perguntas feitas são: teria o Congresso poderes legislativos exclusivos para determinar a alocação dos poderes das agências? Precisariam as agências de uma delegação legislativa clara para instituir determinadas opções de políticas?
São essas as preocupações que subjazem à chamada Major Questions Doctrine (MQD), produto das discussões da Suprema Corte dos EUA, para retirar das agências reguladoras o poder normativo sobre “questões de grande importância econômica ou política”. Talvez esse fosse o caso do rol da ANS.
De acordo com tal doutrina, diante de “grandes questões”, as cortes devem presumir que o Congresso não delega implicitamente às agências a autoridade para resolver assuntos particularmente importantes. Na prática, parte-se de uma presunção geral de que questões importantes são simplesmente inadequadas para a resolução por parte das agências reguladoras.
A primeira vez que a MQD surgiu foi no julgamento do caso MCI Telecommunications Corp. v. American Telephone &amp; Telegraph Co., 512 U.S. 218 (1994). Na discussão, entendeu-se que a autoridade da agência para “modificar” os requisitos não incluía a autoridade para fazer uma “mudança radical ou fundamental” (a ponto de permitir a renúncia total para certo grupo). Alterações significativas na política seriam atribuição exclusiva do Congresso.
Como afirmou o justice Scalia mais adiante, no caso Whitman v. American Trucking Associations, Inc., 531 U.S. 457 (2001), o “Congresso não esconde elefantes em buracos de rato” (“Congress does not hide elephants in mouseholes”). A imagem remete à ideia de que as agências reguladoras não podem usar “termos vagos” (os buracos do rato) da delegação do Congresso às agências para disso extrair poderes implícitos para alterar “aspectos substanciais de um esquema regulamentar” (os elefantes).
Essas palavras do justice Scalia se tornaram célebres na referência a que, sem uma delegação congressual clara, as agências não podem tomar decisões com consequências econômicas e políticas excepcionais. Com isso, quer-se evitar uma expansão significativa da autoridade reguladora diante de um texto legislativo ambíguo.
Sem dúvidas, a MQD tem seus méritos. Funcionaria como um filtro negativo para decisões regulatórias das agências que alterem abruptamente as relações econômicas (no caso do rol da ANS, envolvendo a distribuição dos custos entre empresas operadoras, consumidores e órgão regulador). Dado o “grande impacto”, haveria uma escolha mais “política” do que “burocrática”.
Só com isso já é possível indicar um dos problemas da MQD: a dificuldade em fixar critérios para o que seriam tais questões grandes (a cargo do Congresso) e as pequenas e intermediárias (a cargo das agências).
O principal argumento em favor da MQD consiste na indução à deliberação, considerando o Congresso como sinônimo de uma instituição democraticamente responsável e locus adequado para escolhas de grande valor, que devem ser feitas de forma transparente, responsável, inclusiva e deliberativa entre os membros do público afetado.
A <a href="https://repository.law.umich.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1052&amp;context=mjeal">MQD, no entanto, é alvo de diversas críticas pela literatura norte-americana, como se pode conferir aqui</a>, por exemplo.
Se a linha de raciocínio já é polêmica nos próprios Estados Unidos, imagine-se aqui no Brasil, onde tudo indica que conflitos institucionais entre Congresso Nacional e agências reguladoras (e até mesmo outros atores) parecem inevitáveis, na linha do que se argumentou <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/o-que-a-bagagem-gratuita-em-voos-revela-sobre-a-dinamica-da-regulacao-06072022">aqui sobre o caso da bagagem gratuita em voos</a>.
A pretensão de que a dinâmica da regulação siga divisões estanques de competências normativas, com cada instituição responsável por determinado tipo de questão (“políticas” com o Congresso, e “técnicas” com as agências), não faz sentido no Estado Administrativo brasileiro.
Tanto o Poder Legislativo quanto as agências reguladoras podem, igualmente, tomar decisões “técnicas” e “políticas”. Ao menos, é assim na prática. Por isso, a MQD é, definitivamente, uma forma ruim de institucionalizar esta preocupação crucial de preservar o constitucionalismo democrático no Estado Administrativo tanto nos EUA como aqui.
Não parece uma solução inteligente a de fechar as portas para as sucessivas interações entre instituições. Quando a matéria é regulação, as “disputas” institucionais entre Congresso e agências podem ser saudáveis. São indesejáveis “monopólios” na regulação, porquanto tradicionalmente associados à criação de oportunidades para a captura e corrupção. Não aplicar a MQD é deixar a porta entreaberta para o aperfeiçoamento regulatório.
Daí que, em vez de critérios de deferência exclusivamente institucionais — como o fixado pela MQD —, o caminho mais promissor parece o do estabelecimento outros padrões para a deferência, como as qualidades político-democráticas do procedimento adotado para a decisão, bem como sua base epistêmica.
Recentemente, a MQD voltou a ser aplicada pela SCOTUS (<a href="https://www.conjur.com.br/2022-ago-18/opiniao-major-questions-doctrine-deferencia-pauta">há um comentário sobre o assunto aqui</a>). E não será surpreendente que em breve alguma decisão judicial aplique a doutrina no Brasil.
Considerando o crescimento do Estado Administrativo, tanto nos Estados Unidos, quanto no Brasil, parece ilusório exigir que o Congresso se debruce sobre muitos assuntos ao mesmo tempo. Inclusive, supostamente essa seria a razão para a existência das agências reguladoras, e é o que explica a dificuldade em torno do controle político ou monitoramento das opções das agências.
Caso o ministro Barroso acabe optando por julgar o mérito das ADIs 7088, 7183 e 7193 e ADPFs 986 e 990, a eventual procedência do pedido poderá significar a adoção, ainda que implicitamente, da MQD (isto é, exigindo uma delegação legislativa clara para que a ANS pudesse instituir a taxatividade).
Isso porque, dependendo de como o voto for construído, permaneceria a dúvida sobre se a suposta inconstitucionalidade da taxatividade decorreria do simples fato de ser oriunda da interpretação da ANS (já que não decorria claramente dos dispositivos impugnados da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9656.htm">Lei 9.656/1998</a> na redação da Lei 14.307/2022 anterior à Lei 14.454/2022). Ou, no caso hipotético de a taxatividade ter sido instituída pelo Congresso Nacional, a opção seria igualmente contra a Constituição?
Embora pouco provável, um julgamento no sentido da improcedência do pedido significaria que tanto as agências quanto o Congresso Nacional podem disciplinar tais questões. Talvez esse seja o futuro do Estado Administrativo.
Seja como for, por tudo o que foi comentado, o melhor caminho parece ser mesmo da extinção das ações sem resolução de mérito, por perda superveniente de objeto, pois assim o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">STF</a> evitaria se comprometer com uma teoria sobre como devem ser resolvidos os embates entre Congresso Nacional e agências reguladoras, a partir de um cânon institucional fixo e possivelmente inadequado para lidar com a realidade da regulação.

stj rol da ans

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JOTA

O destino das ações no STF, a Major Questions Doctrine e o futuro do Estado Administrativo no Brasil

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