Opinião e Análise

Roberta Simões Nascimento

A privatização da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/eletrobras">Eletrobras</a> foi autorizada pela Lei 14.182/2021. Fruto da MP 1.031/2021, sua tramitação no Congresso ficou marcada por um <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/cabe-controle-de-constitucionalidade-por-ma-tecnica-legislativa-23062021">“abuso” da técnica legislativa</a> logo do seu art. 1º, § 1º. O referido dispositivo estabeleceu a desestatização da Eletrobras na modalidade de aumento do capital social, por meio da subscrição pública de ações ordinárias com renúncia do direito de subscrição pela União. No entanto, via emenda parlamentar, foram estabelecidas condições adicionais que tinham tudo para dar problema. Mas o principal questionamento judicial da lei acabou sendo outro.
Na ADI 7.385, o presidente da República pede a interpretação conforme do art. 3º, inciso III, alíneas a e b, da <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/Lei/L14182.htm">Lei 14.182/2021</a>, que condiciona a desestatização da Eletrobras à alteração do estatuto social da empresa para vedar: a) que qualquer acionista (ou grupo) exerça votos em número superior a 10% da quantidade de ações em que se dividir o capital votante; e b) a realização de acordos de acionistas para o exercício de direito de voto, exceto para a formação de blocos com número de votos inferior ao limite de 10%. O ajuizamento da ação foi noticiado <a href="https://www.jota.info/executivo/agu-e-lula-ajuizam-acao-para-aumentar-poder-de-voto-da-uniao-na-eletrobras-05052023">aqui</a>. 
Narra a petição inicial que a oferta pública de ações realizada foi insuficiente para diluir o capital da União e que, mesmo com a privatização, a União permaneceu detentora direta de cerca de 33% (e indiretamente de cerca de 42% se somadas às participações da União aquelas detidas pelo BNDES, BNDESPAR, FND, Banco do Nordeste, FGHAB) das ações ordinárias da companhia. No entanto, a Lei 14.182/2021 limitou seu direito de voto a 10%. 
Tal disparidade entre a participação societária da União e seu capital votante – de acordo com a argumentação do presidente da República – afronta os princípios constitucionais da razoabilidade, da proporcionalidade, da impessoalidade, da moralidade e da eficiência da Administração Pública (arts. 1º, caput; 5º, incisos LIV; e 37, caput, da CF). Esses princípios foram os únicos parâmetros de controle mencionados.
A ação pede a declaração de inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, para que as normas impugnadas se apliquem apenas ao direito de voto decorrente da aquisição de novas ações. Com isso, o voto voltaria a ser proporcional à participação acionária. Ou seja, na prática, a União voltaria a exercer o controle acionário, dados seus direitos de acionista majoritário na Eletrobras, com peso na escolha dos representantes nos Conselhos de Administração e Fiscal. 
Um dos principais argumentos do presidente da República vai no sentido de que o modelo de privatização adotado pelo legislador não pretendeu uma alienação direta do controle acionário e que as regras da Lei 14.182/2021 acarretam ônus desproporcional à União e grave lesão ao interesse público, porque, mesmo sendo a principal acionista, a União teria perdido seu poder de decisão em questões importantes para a empresa.
O <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/pgr-se-manifesta-a-favor-da-acao-que-eleva-poder-de-voto-da-uniao-na-eletrobras-17082023">parecer da PGR</a> adicionou que a limitação do direito de voto viola o direito de propriedade. Acrescenta que não houve qualquer “compensação” financeira à União pela perda do direito de voto em número proporcional ao de ações. Nas palavras do parecer, “a União, até então controladora da empresa, presenciou, de mãos atadas, os acionistas minoritários limitarem seu (da União) poder de voto, em benefício exclusivo deles e em prejuízo exclusivo da União” (p. 16).
No entanto, é fácil perceber que o parecer da PGR confunde um direito “político” (de voto) com os direitos econômicos advindos da qualidade de acionista, os quais não são afetados pelo mecanismo de voting cap ou limitação do poder de voto dos acionistas, previsto no art. 3º, inciso III, alíneas a, da Lei 14.182/2021. Não houve “expropriação”.
Pois bem. Para esclarecer a controvérsia, o caso é de resgatar a noção da privatização. Em uma definição simples, a medida consiste simplesmente na transformação de uma empresa pública em privada, a partir da transferência da totalidade ou de parte do capital a particulares. Ocorre que essa ideia não capta de todo o objetivo da medida, voltado para a substituição do espírito burocrático pelo espírito empresarial.
A partir dessa lógica, por privatização, deve-se entender somente a transferência de propriedade e de controle efetivo da atividade da empresa pública a outros agentes do setor privado, mediante a venda de ações, de forma que a maioria do capital seja privado. A transferência parcial de ativos que não suponham a perda do controle efetivo da empresa não entraria como uma verdadeira privatização.
A privatização em sentido estrito compreende unicamente a situação em que o Estado perde, ao menos parcialmente, a propriedade e a possibilidade de determinar, desde o interior das empresas privatizadas – por sua posição de acionista majoritário ou exclusivo –, o conteúdo das decisões societárias. Sem esse efeito, não há que se falar em privatização.
Só com isso já é possível perceber que o pedido da ADI 7.385 tem potencial para “desfazer” a privatização da Eletrobras ou, em uma versão mais suave, promover uma “autarquização” da empresa, que acabaria “capturada”. Julgada procedente, a ação implicará uma privatização apenas formal, em que a atividade continuaria sendo desenvolvida por decisão e sob controle do acionista estatal. Desde quando isso é “privatização”?
Tanto a privatização, quanto o seu contrário (estatização, desapropriação ou expropriação) correspondem a decisões à disposição do legislador ordinário. Não cabe ao Poder Judiciário “revertê-las”. Do contrário, estaria sendo descumprido o art. 37, inciso XIX, da CF, pelo qual somente por lei específica (ou seja, não por decisão judicial) poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição (no caso, reinstituição) de empresa pública. Isso não significa que a privatização seja incontrolável judicialmente.
Como processo, a privatização se desenvolve em diversas fases que devem ser presididas necessariamente por princípios como publicidade, transparência, ampla concorrência; separação da propriedade da gestão da empresa; correção dos desequilíbrios de balanço; proteção dos interesses econômicos gerais; proteção dos interesses de acionistas e terceiros; continuidade do projeto empresarial da empresa; aumento da competitividade etc. Naturalmente, tais operações estão sujeitas ao controle judicial.
O que não faz sentido é a discussão, em sede judicial, do “desenho” da privatização. Não existe uma única forma de executá-la. Na verdade, existem vários modos de garantir o interesse público que continuará permeando a empresa privatizada. No caso da Eletrobras, por exemplo, a forma encontrada foi precisamente o mecanismo de voting cap.
A decisão de retirar a União do controle da empresa se deu por ato legislativo representando uma decisão de Estado e só por outro igual poderia ser revisada. Além disso, a regra que limita o voto foi não só para a União, mas para todos os acionistas, pois nenhum deles poderá se sobrepor à União. A opção de governança responde à lógica da menor intervenção estatal compatível com o interesse público. A maximização de ingressos para o Estado não é o único critério a ser considerado.
Nesse contexto, o controle judicial das privatizações obedece a uma “gradação”. A decisão de levar a cabo uma privatização é carregada de política, goza de grande discricionariedade, de forma que o controle é limitado no que diz respeito ao mérito. Já a execução da privatização se caracteriza por uma discricionariedade menor, na medida em que devem ser adotados os procedimentos que implementem a decisão privatizadora. Seu efetivo cumprimento pode ser suscetível de controle judicial.
Como bem pontuado nas informações da <a href="https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&amp;docID=768309566&amp;prcID=6635975">Advocacia da Câmara dos Deputados</a>, “o modelo de desestatização da Eletrobras foi escolhido pela própria Administração Pública Federal, ao longo de dois governos de matizes político-ideológicas distintas” (p. 10). Por 5 anos, o voting cap esteve sob apreciação pública. A peça que merece a leitura registra ainda que o modelo não é uma “jabuticaba” e conta com previsão em países de referência como Alemanha, Espanha, Itália e Portugal, com vistas a garantir a dispersão acionária.
Visto tudo isso, só resta recordar o que <a href="https://www.mprj.mp.br/documents/20184/2823790/Arnoldo_Wald.pdf">Arnoldo Wald</a> afirmou: “O Estado de Direito não mais permite que o Poder Público abuse de sua força, devendo, ao contrário, submeter-se à lei, mesmo quando ele a elabora e sanciona” (p. 81).
Durante o processo de privatização ocorrido na década de 90, houve diversas liminares impedindo as vendas, interrompendo leilões. No entanto, a partir do diagnóstico de <a href="https://www.scielo.br/j/dados/a/VnhKvwCmX6fBkmknzjdyYFr/?format=pdf&amp;lang=pt">Vanessa Elias de Oliveira</a>, seria equivocado afirmar que o Poder Judiciário, apesar de intensamente demandado, tenha atuado de fato como um veto player. Os processos de privatização foram retardados, mas nenhuma venda foi “anulada” por sentença judicial. Para <a href="https://sbdp.org.br/wp/wp-content/uploads/2018/01/71_Veridiana-Alimonti.pdf">Veridiana Alimonti</a>, o “tempo” cumpriu papel importante, pois a maioria das ações perdeu o objeto.
Entre as ADIs que tentavam barrar as privatizações, nenhuma delas teve o mérito julgado procedente, mas também nenhuma delas teve como autor o próprio presidente da República. Os requerentes eram partidos políticos, associações de trabalhadores, governadores, OAB e Assembleias Legislativas. Será que isso fará diferença para o Judiciário? Diferentemente da postura anterior de não impedir as privatizações, será que agora vai barrar o processo?
Na eventualidade de acolher a argumentação da ADI 7.385, o STF está caminhando para se consolidar como a instância desfazedora de decisões eminentemente políticas do Congresso Nacional. Neste caso, para reverter uma privatização. Em outras ações, poderá ressuscitar tributo revogado, ampliar tipos penais por decisão judicial... Na história moderna, está cada vez mais difícil encontrar qualquer paralelo no direito comparado de atuação semelhante por outro tribunal constitucional ante o princípio da separação de Poderes. Como comentado em coluna passada, <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/para-que-legislativo-04012023">Legislativo para quê?</a>

eletrobras fernando frazao

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JOTA

Reflexões sobre a ADI 7.385, que discute a privatização da Eletrobras

Que tipo de controle judicial cabe para as privatizações?

Se acolher a argumentação da ADI 7.385, STF caminha para reverter a privatização da Eletrobras e desfazer uma decisão política do Congresso