Opinião e Análise

Roberta Simões Nascimento

Andre Sales Madeiro

A pergunta que intitula a coluna de hoje poderia parecer um assunto batido. Mas, por vezes, a casuística da atuação legislativa traz um episódio novo que demanda que se revisitem os conhecimentos acumulados sobre processo legislativo. É exatamente esse o caso <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/anajus-vai-ao-stf-contra-exigencia-de-curso-superior-para-tecnicos-judiciarios-19012023">noticiado pelo JOTA</a> sobre a ADI 7.338 ajuizada pela Associação Nacional dos Analistas Judiciários e do Ministério Público da União (Anajus).
A ação tem por objeto a previsão do art. 4º da Lei 14.456/2022, que alterou a Lei 11.416/2006, para exigir curso de ensino superior completo como requisito para a investidura na carreira de Técnico Judiciário do Poder Judiciário da União.
Como a questão é polêmica e agora está nas mãos do <a href="https://www.jota.info/stf">STF</a> (sob a relatoria do ministro <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/edson-fachin">Edson Fachin</a>), vale a pena explicar toda a controvérsia antes de apontar a que poderia ser a melhor solução para o caso.
Primeiro, deve-se entender o processo legislativo. A Lei 14.456/2022 é fruto da aprovação do <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2303392">PL 3662/2021</a>, de autoria do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/TJDFT">TJDFT</a>), no exercício da competência do art. 96, inciso II, alínea b, da CF, para transformar cargos vagos das carreiras de Auxiliar Judiciário e de Técnico Judiciário em cargos vagos da carreira de Analista Judiciário no próprio TJDFT. 
Na justificação da proposição consta que, em razão da automação e incorporação de recursos tecnológicos aos processos de trabalho, houve um aumento da demanda de servidores para atuação nos gabinetes e nas unidades da área fim do tribunal, o que exige sólido conhecimento jurídico. Ao mesmo tempo, a adoção do Processo Judicial Eletrônico (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/PJE">PJe</a>) revela ser imprescindível o incremento de servidores especializados na área de tecnologia da informação. Daí que a transformação dos cargos contribuiria para qualificar o quadro profissional e melhorar a prestação jurisdicional.
Foi durante a tramitação desse PL 3662/2021, de autoria do TJDFT, que a deputada Erika Kokay (PT-DF) apresentou a Emenda de Plenário 1, propondo a alteração da Lei 11.416/2006, para exigir o curso de ensino superior completo como requisito para a posse na carreira de Técnico Judiciário do Poder Judiciário da União (PJU), ou seja, em todos os tribunais custeados pela União Federal (superiores, federais, trabalhistas e eleitorais) e não apenas no TJDFT (que também é mantido com verbas federais pelo art. 21, inciso XIII, da CF). 
Em seu <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2153575&amp;filename=Tramitacao-PL%203662/2021">parecer</a>, a deputada Celina Leão (PP-DF), relatora da matéria, registrou: “A sugestão da nobre colega compartilha do mesmo propósito que o nosso, que é proporcionar melhor qualificação ao quadro profissional dedicado à prestação jurisdicional, razão pela qual a emenda foi acatada”.
Aprovado na Câmara dos Deputados, o PL 3662/2021 seguiu para o Senado Federal. Lá, o senador Jorge Kajuru (PSB-GO) apresentou a Emenda 1-PLEN, com o objetivo de suprimir art. 4º do PL 3662/2021 – precisamente o dispositivo que tinha sido acrescentado em razão da citada emenda parlamentar na Câmara.
Na <a href="https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9195240&amp;ts=1675452514029&amp;disposition=inline">justificação</a> que apresentou, o senador reivindicou que: 1) a competência para a iniciativa de leis sobre o PJU seria só do STF; 2) a emenda de autoria da deputada Erika Kokay, ao estabelecer nova escolaridade para o cargo de Técnico Judiciário, tratou de tema absolutamente estranho à proposta original; e 3) a sanção da emenda acarretaria aumento de despesa, pois os Técnicos Judiciários passariam a exigir judicialmente a equiparação de suas remunerações com as dos Analistas Judiciários, com base no enunciado nº 378 da Súmula do STJ (“Reconhecido o desvio de função, o servidor faz jus às diferenças salariais decorrentes”).
A emenda supressiva apresentada pelo senador Kajuru não foi aprovada, e o <a href="https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9195300&amp;ts=1672770040842">Parecer 269/2022-PLEN/SF do relator</a>, o senador Izalci Lucas (PSDB-DF), entendeu que “os acréscimos feitos pela Câmara dos Deputados aprimoraram o texto original da proposição” e que “a alteração do requisito de admissão para o cargo de Técnico Judiciário, de nível médio para ensino superior completo, tem o mesmo propósito do texto inicial do projeto, de conferir maior qualificação profissional ao quadro de servidores do Judiciário”.
Com isso, o PL 3662/2021 foi aprovado no Senado. No entanto, seus arts. 1º e 4º acabaram sendo vetados pelo presidente da República. A <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/Msg/Vep/VEP-534-22.htm">razão do veto</a> foi a inconstitucionalidade da proposição que, inserida via emenda parlamentar, confrontaria a competência privativa do STF, o único que poderia deflagrar proposições dispondo sobre as carreiras do PJU.
Ocorre que <a href="https://www.congressonacional.leg.br/materias/vetos/-/veto/detalhe/15430">o veto foi rejeitado pelo Congresso Nacional</a> na sessão do dia 15 de dezembro de 2022 e a promulgação das partes cujo veto não foi mantido ocorreu em 22 de dezembro de 2022. Daí, veio a judicialização.
Na <a href="https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&amp;docID=765135408&amp;prcID=6547672">petição inicial da ADI 7.338</a>, a Anajus basicamente retoma os argumentos do senador Kajuru, sustentando a inconstitucionalidade do dispositivo inserido por emenda parlamentar, por “vício de iniciativa” e por falta de pertinência temática.
Não custa recordar que a iniciativa é o ato que desencadeia a tramitação de uma determinada proposição no âmbito do Poder Legislativo. E que a CF estabeleceu situações em que somente certos legitimados podem propor a discussão de determinados temas. Trata-se da chamada iniciativa legislativa privativa, reservada ou exclusiva, que confere o monopólio do “poder de agenda” para encaminhar a proposta por parte de seu detentor. 
Com isso, os parlamentares ficam impedidos de deflagrar o processo legislativo dessas matérias, como é o caso art. 96, inciso II, alínea b, da CF. Mas não existe proibição de que os parlamentares apresentem emendas a essas proposições de iniciativa exclusiva. Do contrário, como já explicado <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/tramitacao-conjunta-iniciativa-legislativa-por-emprestimo-e-autonomia-do-bc-12052021">aqui</a>, o Congresso Nacional funcionaria como simples carimbador das propostas alheias. 
Não se pode vislumbrar no emendamento parlamentar uma “usurpação” da competência reservada para a apresentação da proposição, a partir da lógica “quem não pode propor tampouco poderia emendar”. A possibilidade de emendamento parlamentar em projetos de iniciativa privativa é reconhecida há muito pelo STF, valendo citar a <a href="https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&amp;docID=14854925">ADI 1.834</a>, que envolvia precisamente uma lei de iniciativa do Poder Judiciário (no caso, TJSC).
Nada obstante, faz todo sentido a discussão sobre os limites das emendas parlamentares nesses casos de iniciativa privativa. A CF, art. 63, trouxe expressamente que as emendas parlamentares não podem implicar aumento da despesa nos projetos de iniciativa exclusiva. Jurisprudencialmente, o STF acrescentou a necessidade de que as emendas parlamentares guardem estreita pertinência temática com o objeto do PL encaminhado ao Legislativo.
Há diversos julgados reiterando esse entendimento, que, vale registrar, é bem anterior ao célebre julgamento da ADI 5.127 (de 2015). Por exemplo, basta conferir a ADI 546 (de 1991), a <a href="https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&amp;docID=346982">ADI 1.333</a> (de 1995) ou a <a href="https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&amp;docID=347288">ADI 1.834-MC</a> (de 1998) e diversas outras que se seguiram no mesmo sentido (ADIs nº 2.350, 1.050, 1.835, 2.681, 6.071, 6.329, etc.).
Ocorre que essas duas tradicionais limitações não resolvem o problema do caso da ADI 7.338, pois a emenda apresentada pela deputada Erika Kokay de fato atende os dois requisitos: guarda pertinência temática e não aumenta despesa.
Inclusive, sobre a pertinência temática, vale registrar que em boa hora, ao julgar a ADI 5.769, o STF entendeu que “Somente devem ser consideradas impertinentes, do ponto de vista temático, e qualificadas como “contrabando legislativo”, emendas que versem sobre assuntos totalmente alheios, estranhos, sem nenhuma conexão ou afinidade com o tema da medida provisória”. De fato, a própria LC 95/1998, art. 7º, inciso II, admite que as leis contenham matérias vinculadas por afinidade, pertinência ou conexão.
A propósito, também cabe aqui o registro de que o presente caso da ADI 7.338 não se confunde com o <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/sao-extensiveis-as-emendas-parlamentares-os-limites-materiais-a-edicao-de-mps-29092021">caso da ADI 7.005 já comentado em coluna passada</a>. Na ADI 7.005, discute-se a possibilidade de, durante o processo de conversão em lei de medidas provisórias, serem apresentadas emendas parlamentares sobre as matérias listadas no art. 62, § 1º, da CF, quanto às quais os parlamentares têm ampla inciativa. 
Essas (do art. 62, § 1º, da CF) não são matérias “reservadas”, mas sim “proibidas” de serem veiculadas no texto inicial das medidas provisórias, vedação essa dirigida ao presidente da República, não aos legisladores, que têm ampla liberdade para legislar sobre tais temas.
O problema a ser resolvido pelo STF na ADI 7.338 diz respeito à possibilidade de emendas parlamentares apresentarem alterações ultra vires, ou seja, além das competências do legitimado exclusivo que apresentou o PL em concreto, no caso, o âmbito do TJDFT. 
Na prática, o julgamento terá tudo para incluir mais um limite às emendas parlamentares aos projetos de lei de iniciativa reservada. Além da pertinência temática e da impossibilidade de aumento de despesa, as emendas parlamentares aos PLs de iniciativa reservada devem respeitar as competências do autor do PL, sem possibilidade de que insiram uma emenda que acarrete um “vício de iniciativa”. Já se pode antever uma tese aprovada para fixar tal entendimento.
A rigor, não seria inédito. Por ocasião do julgamento da ADI 1.835, o STF reputou inconstitucional dispositivo oriundo de emenda parlamentar que estendeu o aumento remuneratório dado aos servidores do TJSC a fim de abarcar os serventuários extrajudiciais, por ofensa ao mesmo art. 96, inciso II, alínea b, da CF.
O desfecho do julgamento da ADI 7.338, no entanto, não necessariamente deveria redundar na declaração pura e simples de inconstitucionalidade do art. 4º da Lei 14.456/2022. A rigor, a celeuma poderia ser resolvida sem a pronúncia de nulidade, com mera a técnica da interpretação conforme à CF para fixar que a nova exigência de curso superior para Técnicos Judiciários se aplica tão somente no âmbito do próprio TJDFT.
Essa técnica de declaração de inconstitucionalidade preservaria a parte da norma que é constitucional, formal e materialmente, terminando por decotar o aspecto pessoal do art. 4º da Lei 14.456/2022, mantendo a exigência de curso superior apenas àqueles Técnicos Judiciários vinculados hierarquicamente ao TJDFT, que foi o legitimado que deflagrou o processo legislativo da matéria conforme o art. 96, inciso II, alínea b, da CF. Com isso, respeita-se a ponderação e a escolha legislativa para a emenda no tema.
Agora, verdade seja dita também: dadas as razões legislativas apresentadas, o desaparecimento da carreira de Técnico Judiciário é só uma questão de tempo, assim como ocorreu com a carreira de Auxiliar Judiciário. Independentemente do que previrem as leis ou sua interpretação, basta parar de fazer concursos respectivos (como foi pedido na cautelar da própria ADI 7.338, inclusive), que a questão se resolve.

Senado posse

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JOTA

Exigência de curso superior para Técnicos Judiciários em debate na ADI 7.338

Quais os limites das emendas parlamentares em PLs de iniciativa privativa?

Exigência de curso superior para Técnicos Judiciários em debate na ADI 7.338