Opinião e Análise

Roberta Simões Nascimento

No último dia 29 de novembro, foi protocolizada no Senado Federal a <a href="https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9216186&amp;ts=1669930172528&amp;disposition=inline">PEC nº 32/2022</a>, a chamada PEC da Transição. Como a sessão legislativa se encerra no dia 22 de dezembro (art. 57, caput, da CF), notícias da imprensa davam conta de que uma das maiores preocupações vinha sendo a falta de tempo hábil para a tramitação. Mas só quem não conhece os meandros do Congresso Nacional pode achar que isso seja um problema.
Há diversas <a href="https://www.academia.edu/49088957/13_T%C3%81TICAS_PARLAMENTARES_PARA_APROVA%C3%87%C3%83O_DAS_LEIS">táticas parlamentares</a> que podem ser usadas para “acelerar” ou “saltar” a tramitação de proposições, algumas delas inclusive com a chancela do STF, como é o caso da subtração dos interstícios entre turnos de votação e a aprovação de “calendários especiais” de tramitação, cujas constitucionalidades foram reconhecidas por ocasião do julgamento da <a href="https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&amp;docID=5067184">ADI nº 4.425</a>. Em <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/controle-de-constitucionalidade-qualidade-deliberacao-legislativa-14102020">coluna passada</a> já se comentou que o assunto é polêmico. 
Existem vozes de peso contrárias a esse tipo de prática constitucional. Para quem quiser se aprofundar na discussão, recomenda-se a leitura da dissertação de mestrado de <a href="https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/8379/1/2010_HeraldoPereiradeCarvalho.pdf">Heraldo Pereira de Carvalho</a>, que, embora escrita antes do julgamento do STF, trata bastante bem da questão. 
No caso da PEC da Transição, essa interpretação legislativa quanto ao significado da expressão “em dois turnos” que consta do art. 60, § 2º, da CF, para discussão e votação das PECs preocupa menos do que <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/tramitacao-conjunta-iniciativa-legislativa-por-emprestimo-e-autonomia-do-bc-12052021">outra tática parlamentar já tratada aqui na Defensor Legis: a apensação</a>.
Por ocasião da <a href="https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&amp;docID=758666361">ADI nº 6.696</a>, o STF também entendeu pela constitucionalidade da técnica da tramitação conjunta ou apensação, acolhendo o posicionamento aqui esposado, inclusive com a citação nominal desta colunista no voto do ministro <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/luiz-fux">Luiz Fux</a> (páginas 232-233 do acórdão).
Vale registrar que o julgamento não abordou a constitucionalidade da apensação especificamente para PECs, o que também tem acontecido prática legislativa. Como também já comentado em <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/comentarios-a-tramitacao-da-pec-do-estado-de-emergencia-20072022">coluna passada</a>, foi o que ocorreu com a PEC nº 1/2022 (PEC do Estado de Emergência), com tramitação iniciada no Senado Federal, e logo apensada na Câmara dos Deputados à PEC nº 15/2022 (PEC dos Biocombustíveis), resultando ao fim na EC nº 123/2022.
Naquele então, o episódio foi criticado porque, na prática, tal apensação “impediu” (na verdade, apenas “dificultou”) que a PEC nº 1/2022 fosse emendada na Câmara dos Deputados, pois passou a tramitar conjuntamente a uma PEC cujo prazo para emendas na comissão já tinha sido exaurido. Nos termos do art. 202, § 3º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/regimento-interno-da-camara-dos-deputados">RICD</a>), são as 10 primeiras sessões, a partir da instalação da Comissão Especial designada para o exame do mérito da proposição, o prazo legal para o emendamento da PEC. 
Embora o referido dispositivo do RICD registre que “somente perante a Comissão Especial” poderão ser apresentadas emendas à PEC, as práticas legislativas acabaram admitindo a possibilidade de emendas aglutinativas a PECs em plenário, na forma do art. 122 do RICD.
Como também já explicado em <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/pec-dos-precatorios-para-que-servem-emendas-aglutinativas-10112021">coluna passada</a>, desde a Resolução nº 21/2021, restou “dificultada” a apresentação dessas emendas aglutinativas, que exigem o apoiamento de líderes que representem a maioria absoluta dos membros da Câmara (ou seja, pelo menos 257 deputados), mais até do que o 1/3 exigido para apresentação de PECs (171 deputados).
É em razão dessas questões regimentais que, para os críticos desse expediente, a apensação deveria ocorrer somente em relação a proposições em fases compatíveis, ou seja, não deveria ser possível apensar uma PEC recém apresentada a outra em estágio avançado de discussões. No entanto, não há qualquer vedação regimental nesse sentido.
Pelo art. 142, parágrafo único, do RICD, o momento limite para determinar a tramitação conjunta é antes de a matéria entrar na ordem do dia (no plenário) ou antes de ser apreciada em caráter terminativo nas comissões. Já no Regimento Interno do Senado Federal (RISF), tais limites temporais estão sujeitos a alguma flexibilização por deliberação de plenário, nos termos do art. 258, parágrafo único, do RISF.
Esse assunto da apensação interessa à PEC da Transição porque já foi anunciado na imprensa que a tática será empregada mais uma vez. <a href="https://www.cnnbrasil.com.br/politica/entenda-plano-cogitado-pelo-pt-para-acelerar-pec-da-transicao-na-camara/">Em sendo aprovada pelo Senado Federal, a PEC nº 32/2022 será apensada à PEC nº 24/2019</a>, de autoria da deputada federal Luisa Canziani (PTB-PR), que propõe excluir despesas de instituições federais de ensino do teto de gastos.
Assim como no exemplo da PEC antes citada, o resultado prático será a diminuição das margens de emendamento, pois já não haverá as 10 primeiras sessões na comissão, e a apresentação de emendas aglutinativas em plenário exige maior articulação. 
Agora existe, no entanto, uma diferença no cenário normativo da apensação, pois a Resolução nº 33/2022 deu nova redação ao art. 143, inciso II, do RICD, que traz as regras sobre a tramitação conjunta. Antes da mudança regimental, o referido dispositivo previa expressamente a “precedência” da proposição do Senado sobre a da Câmara, o que garantia uma certa racionalidade ou previsibilidade sobre os contornos da proposição a ser aprovada pelas duas Casas Legislativas.
Pelo texto atual do RICD, entretanto, a proposição que “encabeça” a tramitação conjunta é a mais antiga sobre a mais recente das proposições em tramitação na Câmara dos Deputados. Ou seja, já não mais se garante que o texto oriundo do Senado Federal teria a primazia desejável, em consideração, sobretudo, ao bicameralismo. Por outro lado, para as apensações no Senado Federal, a regra de precedência dos projetos oriundos da Câmara sobre os do Senado continua existindo no RISF, art. 260, inciso II, a. Ou seja, o problema aqui em referência ocorreria só na Casa do carpete verde.
Recorde-se que na apensação não ocorre uma “incorporação” dos textos, estes não ficam “fundidos”, mas só “apensos”. Disso resulta a possibilidade de combinações de PLs eventualmente aprovados que fugiriam à lógica estrita de que as duas Casas legislativas precisam estar de acordo sobre uma “mesma proposta”. A atual técnica do apensamento na Câmara abriu a possibilidade de as propostas serem “diferentes”.
O tema é bastante sensível e muito do futuro do bicameralismo brasileiro dependerá das práticas legislativas a serem adotadas a partir da Resolução nº 33/2022. Dependendo do que se faça, pode ser que já não mais se aplique o raciocínio de que <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/tramitacao-conjunta-iniciativa-legislativa-por-emprestimo-e-autonomia-do-bc-12052021">“a ordem dos fatores não altera o produto” então válido para toda a discussão do PLP nº 19/2019</a> – que resultou na LC nº 179/2021, que dispõe sobre a autonomia do Banco Central. Explica-se.
Como não necessariamente a tramitação conjunta dos PLs apensados na Câmara dos Deputados será encabeçada por uma proposição aprovada pelo Senado Federal – podendo, pela literalidade da nova redação do art. 143, inciso II, do RICD, a precedência ser de uma proposição da própria Câmara dos Deputados –, corre-se o risco de que a Casa Alta perca seu papel de Casa iniciadora ou revisora, nos termos do art. 65 da CF, pois as discussões legislativas na Câmara poderão resultar em textos que não reflitam necessariamente as proposições normativas antes aprovadas pelo Senado.
Isso implicaria um problema grave de desenho do processo legislativo bicameral. Casos semelhantes a esse exercício hipotético (apensação de PLs na Câmara sem que o PL “cabeça” seja do Senado) possivelmente ocorrerão, e será só uma questão de tempo para essa discussão (agora sob nova feição) voltar a bater às portas do STF.
É bem verdade que, diferentemente do processo legislativo ordinário, no processo de reforma constitucional a alteração do RICD pela Resolução nº 33/2022 tende a ter um impacto menor, dada a sistemática “ping-pong” do art. 60, § 2º, da CF. Como já explicado em <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/para-onde-foi-o-bicameralismo-no-congresso-nacional-02092020">coluna passada</a>, para a aprovação de emendas à CF ambas as Casas estão em absoluta igualdade, não existe a preponderância da Casa iniciadora sobre a Casa revisora, o que só ocorre no processo legislativo das demais espécies do art. 59 da CF.
Assim, em caso de um eventual impasse quanto ao texto final de uma PEC aprovada pelas duas Casas, bastaria que uma delas (no caso da PEC de Transição, o Senado Federal) se recusasse à promulgação. Como essa é uma solenidade que deve ocorrer em sessão conjunta do Congresso Nacional, ou seja, com as duas Casas juntas, isso seria o suficiente para impedir o surgimento de uma EC propriamente, com número de ordem, etc., de forma parecida ao que vem ocorrendo com a PEC nº 91/2019, citada <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/qual-alcance-principio-irrepetibilidade-pecs-22122021">aqui</a> como exemplo de impasse entre as Casas Legislativas.
É pouco provável que o STF declare inconstitucional a apensação de PECs em estágios de discussão diferentes, sob o fundamento de que o expediente diminuiria o espaço de deliberação legislativa, mas, ainda assim, a PEC da Transição continuará sendo um “caso difícil” em termos de processo legislativo.
Isso não só pela questão formal aqui trazida – que se, por um lado, seria interna corporis, matéria exclusivamente regimental; por outro, desafia noções constitucionais importantes, como a de um processo agravado para a emenda à CF e a lógica do bicameralismo –, mas também em razão do seu mérito, bastante controverso para alguns, objeto de <a href="https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/estudos/2022/nota-tecnica-29-subsidios-a-apreciacao-da-pec-da-transicao-versao-30_11">Nota Técnica elaborada pela Consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados</a>.

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JOTA

Mudança regimental na Câmara muda lógica da apensação e da tramitação


PEC da Transição, apensação e o futuro do bicameralismo

Mudança regimental na Câmara, fomentada pela PEC da Transição, muda lógica da apensação e da tramitação e especula formação Bicameralista.