Opinião e Análise

Roberta Simões Nascimento

Dando continuidade à coluna Defensor Legis – espaço muito generosamente aberto pelo JOTA para as discussões que envolvem o parlamento, sob perspectiva jurídica, mas sem descuidar das práticas reais, trazendo também elementos da política e algumas críticas –, o primeiro texto de 2023 propõe uma reflexão sobre o papel do Poder Legislativo, a partir de um instituto polêmico: a dissolução do parlamento. 
Diferentemente da “morte cruzada” já apresentada em <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/a-morte-cruzada-do-executivo-e-do-legislativo-03022021">coluna passada</a>, a dissolução antecipa a morte só das Casas Legislativas. Diz-se “antecipa”, porque de certa forma todos os parlamentos têm prevista uma morte certa, natural, qual seja, o fim da legislatura. Nos sistemas constitucionais que consignam essa faculdade, a dissolução implica a obrigação de adiantar a convocação de novas eleições para, ouvindo a vontade popular, reunir um novo parlamento em um prazo determinado (na maioria das vezes até 90 dias). 
De modo geral, para ser legal, a dissolução precisa emanar do órgão constitucionalmente competente para decretá-la, o que também precisa ser feito em conformidade com as condições formais e materiais exigidas. Dependendo do regime constitucional, podem existir dissoluções obrigatórias ou discricionárias, segundo devam ser praticadas necessariamente diante de certos pressupostos fáticos ou segundo a conveniência e oportunidade da autoridade competente. 
Na <a href="https://www.constituteproject.org/constitution/Denmark_1953?lang=es">Constituição da Dinamarca, artigo 88</a>, tem-se um exemplo de dissolução obrigatória, como parte do processo de reforma constitucional daquele país: se o Folketing (o parlamento dinamarquês) aprova uma proposta para incluir uma nova disposição na Constituição, serão convocadas novas eleições legislativas. Se o projeto for aprovado sem emendas pelo Folketing constituído após essas eleições, será submetido no prazo de seis meses após a votação final aos eleitores do Folketing para aprovação ou rejeição por votação direta. 
Aqui, o instituto serve para prevenir um potencial conflito de interesses (no sentido de legisladores atuando em causa própria). Na <a href="https://www.constituteproject.org/constitution/Belgium_2014.pdf?lang=en">Constituição da Bélgica, artigo 195</a>, a destituição da legislatura também faz parte do procedimento para a reforma da Constituição, e o artigo 46 ainda traz o direito do rei de dissolver a legislatura nos casos de substituição e remoção do chefe de governo. Normas semelhantes sobre a falta do voto de confiança para a formação do governo estão na <a href="https://www.constituteproject.org/constitution/Romania_2003?lang=en">Constituição da Romênia, artigo 89</a>. 
Ainda existe, embora mais rara, a faculdade de autodissolução, de que é exemplo a <a href="https://www.constituteproject.org/constitution/Poland_2009?lang=es">Constituição da Polônia, artigo 98</a>, que requer a aprovação por 2/3 dos deputados. Seguir com o inventário de outras previsões demandaria um espaço de que não se dispõe, mas a amostragem acima já ilustra bem o que se quer mostrar. 
Do ponto de vista político, a dissolução do parlamento – nos ordenamentos em que é prevista – está relacionada a uma mudança na vida política do país, isto é, surgimento ou desaparecimento de forças políticas. Longe de caracterizar uma arbitrariedade, trata-se de um meio constitucional para resolver um conflito político. 
Em sua obra monográfica clássica sobre o assunto "El derecho de disolución del parlamento", de 1935, Gaspar Bayón y Chacón elenca três condições fundamentais para a dissolução do parlamento ante a necessidade de resolver urgentemente algum problema de grande importância para a vida nacional: 1) a transcendência real do problema; 2) a urgência de sua resolução; e 3) que a legislatura não o tivesse considerado. 
Para o referido autor espanhol, a lógica que subjaz à dissolução é a de garantir a democracia contra as possíveis tiranias das Casas Legislativas. No entanto, numerosos abusos acabaram desnaturando o instituto, que por vezes acabou sendo usado como meio para que a autoridade competente se livre das instituições representativas da vontade popular. 
Seja para qual lado se olhe, a dissolução do parlamento conduz à necessidade de, mesmo considerada a periodicidade do parlamento, olhar para a vontade dos eleitores. Uma legislatura agonizante dá lugar à outra nova com (pretensas) condições para resolver os problemas de capital importância para o país. A dissolução abre espaço à renovação, mas em favor do parlamento. 
Embora o Brasil não tenha previsto tal “morte antecipada” do parlamento pela dissolução, experimenta-se na prática uma “morte em vida” do Legislativo: mesmo em funcionamento, já não é o Congresso Nacional quem toma as decisões de sua alçada. Daí a pergunta: Legislativo para quê? (Se existem outros caminhos “mais fáceis”?). 
Para a coluna não se estender demais, ficam-se só com dois exemplos de atropelo do Legislativo, com as razões de por que isso é preocupante.  
O primeiro deles é a <a href="https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/MI7300BolsaFamilia.pdf">decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes</a> publicada no último dia 18 de dezembro, deferindo o pedido formulado pelo partido Rede Sustentabilidade no Mandado de Injunção 7300. 
Em primeiro lugar, o referido MI era individual (ajuizado por cidadão representado pela DPU), não um MI coletivo, de modo que, a rigor, o referido partido político carecia de legitimidade para atravessar petição nos autos do referido processo individual. A previsão do artigo 12, inciso II, da Lei 13.300/2016, seria para o ajuizamento de um “novo” MI de natureza coletiva, não para “encampar” os MIs individuais já ajuizados.  
Por mais que o artigo 9º, §1º, da Lei 13.300/2016 autorize a concessão de eficácia ultra partes ou erga omnes à decisão, quando isso for inerente ou indispensável ao exercício do direito, da liberdade ou da prerrogativa objeto da impetração – o que garantiria uma “abstrativização” da causa –, tal previsão está longe de operar qualquer tipo de “transferência” da legitimidade do referido MI para o partido no caso. Mal justificada a decisão no ponto. 
Em segundo lugar, a petição da Rede Sustentabilidade implicou ampliação dos limites processuais do próprio MI. Não custa recordar que essa ação constitucional se destina aos casos em que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania (artigo 5º, inciso LXXI, da CF).  
O pedido da Rede, no entanto, foi para que os valores destinados ao Auxílio Brasil fossem excluídos do teto de gastos (artigo 107, inciso I, e §1º, inciso II, do ADCT, com redação pela EC nº 113/2021); e que não incidisse a “regra de ouro” (artigo 167, inciso III, da CF), que proíbe o endividamento da União para o pagamento de despesas correntes. Nem é preciso comentar que um pedido dessa natureza desborda (e muito) o escopo regulamentador ou integrador do MI. 
E aqui nem se vai mencionar que a jurisprudência tradicional do próprio STF é no sentido de não caber medida liminar em sede de mandado de injunção, que sequer conta com previsão na Lei 13.300/2016 (por todos, MI 7424-MC, MI 7214-MC, AC 124 AgR). 
Associado ao anterior, em terceiro lugar, a decisão em comento viola o princípio da adstrição, nos termos dos artigos 141 e 492 do CPC, pelos quais o juiz decidirá o mérito nos limites propostos pelas partes, sendo-lhe vedado conhecer de questões não suscitadas a cujo respeito a lei exige iniciativa da parte, sendo-lhe vedado proferir decisão de natureza diversa da pedida, bem como condenar a parte de forma ultra ou extra petita. Pelas regras do Código de Processo Civil (CPC), a decisão seria nula de pleno direito. 
Em quarto lugar, a petição da Rede equivale à criação de um “incidente” ou “fase de execução” inexistente no âmbito do controle de constitucionalidade. A rigor, o eventual descumprimento de decisões do STF precisaria vir suscitado na forma de reclamação, como determina o artigo 102, inciso I, alínea l, da CF. Não se trata de um formalismo inútil, pois faz toda diferença no rumo do conhecimento do pedido.  
Isso porque, e já em quinto lugar, caso tivesse sido ajuizada uma reclamação, esta estaria sujeita à livre distribuição (o mesmo ocorreria no caso de um MI coletivo ajuizado pelo partido). Como não foi isso o que aconteceu, a estratégia processual da Rede implica clara violação ao princípio do juiz natural (artigo 5º, inciso LIII, da CF). Na prática, o partido “escolheu” do relator. 
Recorde-se, por exemplo, da Rcl 42.576 ajuizada pelas Mesas do Senado e da Câmara suscitando o descumprimento da decisão do STF na ADI 5624. Cada uma das ações foi distribuída para relatores diferentes, porque logicamente têm causas de pedir igualmente distintas. 
Mesmo que tudo estivesse em conformidade com as regras processuais, ainda assim existe um claro problema na utilização da via judicial para a discussão sobre alocações orçamentárias. A função financeira do Poder Legislativo antecede, historicamente, até mesmo a função normativa. O Congresso Nacional é o locus desse debate.  
A decisão judicial, no entanto, tece uma série de considerações que na verdade representam discordância para com o valor fixado do benefício, cuja redução foi equiparada ao “inadimplemento integral do regime jurídico do direito à renda básica familiar” (página 16). Mas de quem é a competência para decidir isso mesmo? 
E mais: sem que a Rede tivesse sequer mencionado o artigo107-A do ADCT em seu pedido, a decisão resolveu proceder a uma “releitura” do referido dispositivo com vistas a “interpretá-lo de forma sistemática” com o seu caput para que o espaço fiscal decorrente da diferença entre o valor dos precatórios expedidos e o respectivo limite para alocação de precatórios na proposta orçamentária do vindouro exercício de 2023 seja destinado ao programa permanente de redistribuição de renda. 
Se o leitor que chegou até aqui reputa tudo isso possível juridicamente, não resta mais o que ser feito. Na prática, o Congresso Nacional já foi dissolvido. 
Passa-se ao segundo exemplo da morte do parlamento no Brasil: no último dia 13 de dezembro de 2022, <a href="https://www.jota.info/legislativo/camara-aprova-projeto-que-diminui-quarentena-para-politicos-em-estatais-14122022">a Câmara dos Deputados aprovou o PL 2896/2022, que reduz a quarentena dos indicados para ocupar o conselho de administração e para a diretoria de empresas estatais</a>. A matéria seguiu para o Senado Federal, mas logo veio o anúncio de que <a href="https://www12.senado.leg.br/tv/programas/noticias-1/2022/12/pacheco-proposta-que-muda-lei-das-estatais-deve-ser-analisada-em-2023">não seria votada imediatamente</a>. 
Com isso, no último dia 28 de dezembro, o PC do B ajuizou a <a href="https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&amp;docID=765077622&amp;prcID=6543865">ADI 7331</a> contra o artigo 17, §2º, incisos I e II, da Lei 13.303/2016, que veda a indicação para o conselho de administração e para a diretoria de pessoa que atuou, nos últimos 36 meses, como participante de estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral; e de pessoa que exerça cargo em organização sindical. Coincidentemente, os mesmos artigos que seriam alterados pelo PL citado. 
Para o PC do B, os referidos dispositivos seriam incompatíveis com o exercício dos direitos constitucionais à isonomia (artigo 5º, caput) e à ampla acessibilidade a cargos, empregos e funções públicas (artigo 37, inciso I); à liberdade de expressão a participação político-partidária (artigo 5º, IV); à autonomia partidária (artigo 17, §1º), além de violar os princípios da proporcionalidade e da proibição do excesso. 
É bem verdade que o pedido cautelar da ADI 7331 ainda não foi apreciado (no momento em que este texto está sendo escrito, no dia 1º de janeiro), mas a só utilização da jurisdição constitucional para tentar "bypassar" o parlamento por aqueles que não lograram êxito em ver determinada proposta aprovada na arena política já diz muito. Legislativo para que, não é mesmo?

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JOTA

O instituto da dissolução do parlamento na experiência comparada e no Brasil