Opinião e Análise

Roberta Simões Nascimento

Logo em seu discurso de posse no dia 10 de dezembro de 2023, o presidente da Argentina, <a href="https://elpais.com/argentina/2023-12-10/el-primer-discurso-de-javier-milei-como-presidente-de-argentina-en-12-frases.html">Javier Milei</a>, afirmou que o país estava em grave situação, que o cenário era de emergência, já dando os sinais de que tomaria medidas de choque imediatas para debelar a crise.
Dez dias depois, Milei editou o <a href="https://www.boletinoficial.gob.ar/detalleAviso/primera/301122/20231221">Decreto DNU 70/2023</a>, apelidado como “lei de bases e pontos de partida para a liberdade dos argentinos”. Com 660 artigos na versão original, logo reduzidos a 366, e um amplo alcance, o mega decreto propunha desregular uma grande variedade de setores (trabalho, esporte, comércio, imobiliário, aeronáutico, saúde etc.). Tratou-se de uma iniciativa sem precedentes na Argentina. Entre revogações e alterações, o DNU mexeu em mais de 300 leis.
O poder do presidente para editar tais decretos de necessidade e urgência consta do <a href="https://www.argentina.gob.ar/normativa/nacional/ley-24430-804/texto">art. 99 da Constituição argentina</a>, pelo qual em circunstâncias excepcionais que impossibilitem o cumprimento dos procedimentos legislativos ordinários, e desde que não se trate de normas que regulam matéria penal, fiscal, eleitoral ou do regime dos partidos políticos, podem ser expedidos decretos por motivos de necessidade e urgência, que serão decididos por acordo geral dos ministros que deverão apoiá-los, juntamente com o chefe do gabinete de ministros
Assim, criticou-se a utilização do DNU 70/2023, a uma só vez, por abarcar tantos temas, e por supostamente fazê-lo <a href="https://edicionimpresa.lanacion.com.ar/article/283132843657953">sem a devida justificativa</a> sobre as circunstâncias de necessidade e urgência. 
Essa estratégia – de agrupar inúmeras medidas sem relação entre si ao longo de um único projeto de lei extenso – é apelidada de “lei ônibus” (omnibus legislation). A expressão vem do latim omnibus, que significa “para todos”, e também faz referência ao veículo com capacidade para transportar muitas pessoas. A metáfora é óbvia: uma lei em que cabem diversos assuntos.
Outros apelidos dados a essa prática são: “leis árvores de Natal” (Christmas tree bills), leis malas (portmanteau bills), leis monstros (monster bills), leis gigantescas (mammoth bills), leis mosaico (mosaic laws), leis patchwork, leis de arranjos (arrangements laws), etc. Nos países de língua espanhola, também são conhecidas como leyes chorizo, cajón de sastre ou ley de acompañamiento.
É uma forma de legislação comum em diversos sistemas, mas, a despeito dessa disseminação, seu uso continua repleto de polêmica na <a href="https://www.amazon.com/dp/B0962ZS1DH?ref_=cm_sw_r_cp_ud_dp_A5MFA78YXSKN6W0YY1KN">literatura oriunda da teoria da legislação</a>. A coluna de hoje dedica alguns comentários a esse tipo de lei abrangente, na experiência comparada e no Brasil.
A inserção de diversos temas em uma única proposição legislativa é uma manobra voltada para facilitar e acelerar a aprovação da legislação. Diz-se que, de outra forma, isso seria impossível. A ascensão das leis ônibus é apontada como uma das principais mudanças no moderno <a href="https://www.amazon.com/dp/1506322832?ref_=cm_sw_r_cp_ud_dp_T383BZ36CBD93JJMCF2C">processo legislativo heterodoxo</a>, com diversas implicações jurídicas e políticas.
Assim como não existe uma única denominação, são várias as definições de lei ônibus. Na definição de Barbara Sinclair, por exemplo, lei ônibus é a que “aborda numerosos, e não necessariamente relacionados, assuntos, questões e programas – e, por isso, em geral, é altamente complexa e longa”.<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">[1]</a> A partir dessa definição, extraem-se os dois critérios essenciais para identificar uma lei ônibus: o agrupamento de medidas heterogêneas e a extensão. Presentes tais elementos, está-se diante de uma lei desse caráter.
A aprovação via processo legislativo acelerado não é relevante, embora por vezes também venha nesse pacote. No entanto, como dito, não existe uma conceituação única.
Do ponto de vista estritamente jurídico, a principal crítica a esse tipo de lei que trata de múltiplos assuntos está em que criam insegurança jurídica, porque seu texto longo costuma ser mais confuso e menos claro, o que dificulta a compreensão. Além disso, argumenta-se que esse tipo de legislação multisetorial abre mais margens para a arbitrariedade, por causa das delegações de poderes. 
Outra crítica vai no sentido de que se trata de uma prática antidemocrática, que acarreta prejuízos à transparência, responsabilização, deliberação e participação, pois dificulta o trabalho dos parlamentares em examinar a legislação.
Já desde uma perspectiva política, centrada na relação entre presidente e Congresso, longe de servir de ferramenta do Executivo para controlar o Legislativo, paradoxalmente, os projetos de lei ônibus acabam dando mais poder aos parlamentares, mais especificamente aos líderes, na medida em que está-se abrindo mão das táticas de obstrução e da discussão no modelo tradicional. 
A vantagem disso reside nos potenciais ganhos advindos do conteúdo da legislação para a reeleição, pois os parlamentares aproveitam a janela de oportunidade para veicular assuntos de interesses seu ou da base eleitoral, barganhando que não serão vetados. Em resumo, as leis ônibus funcionam como moeda de troca na relação com o presidente.
As perspectivas sobre a legislação ônibus variam conforme os diversos países em que é utilizada. Embora a literatura em geral condene as leis ônibus como uma perversão legislativa, na jurisprudência comparada não há um desconforto generalizado em todos os sistemas. Possivelmente, isso se dá porque em alguns deles a prática não é abusiva. E mesmo onde é tida por excessiva, como, por exemplo, nos Estados Unidos, as leis ônibus compreendem aproximadamente 11% da legislação aprovada pelo Congresso.<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">[2]</a> O Tribunal Constitucional da <a href="https://revista.cortesgenerales.es/rcg/article/view/1497">Espanha</a>, por exemplo, tradicionalmente rejeita a inconstitucionalidade nesses casos.
No Brasil, ao menos na percepção desta colunista, não existe uma tradição forte de utilização de leis ônibus, exceto em matéria de orçamento. Desde sempre buscou-se combater essa prática, sobretudo em matéria orçamentária. Durante a República Velha, as aqui chamadas “leis rabilongas” – com caudas cumpridas, repletas de matérias estranhas à previsão de receita e à fixação de despesas – foram criticadas, entre outros por Rui Barbosa (1849-1923), que cunhou a expressão e fez forte campanha contra os orçamentos rabilongos.
Daí que, desde a Constituição de 1946, os textos constitucionais brasileiros repetem a previsão de que a lei orçamentária não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa para os serviços anteriormente criados (art. 73, § 1º). Hoje, a previsão consta do art. 165, § 8º, da CF, também limitando-se à lei orçamentária anual, que só pode dispor sobre a previsão da receita e à fixação da despesa. Não se incluem nessa proibição a autorização para abertura de créditos suplementares e contratação de operações de crédito, ainda que por antecipação de receita.
Assim, esse pecado capital da legislação foi contornado no âmbito do orçamento, mas logo surgiu a crítica de que as demais leis teriam se tornado rabilongas, com múltiplos assuntos, perdendo o sentido de unidade, ordem, precisão e clareza. 
A regra de ouro é: cada lei tratará de uma única matéria e o mesmo assunto não será distribuído em mais do que uma lei. Com isso, as leis subsequentes precisam fazer remissão expressa à lei básica do assunto, e as alterações e complementações devem ser inseridas no texto dela. Trata-se de recomendação voltada também para facilitar o conhecimento do direito.
Seja como for, com exceção da matéria orçamentária, nada impede, à luz da Constituição de 1988, que as leis tenham conteúdo heterogêneo. Dito com outras palavras, a utilização de leis ônibus não é per se inconstitucional. 
Mas, como dito, esse instrumento é pouco frequente no Brasil. Por aqui, até existem leis longas, por exemplo, a Lei nº 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), com 299 artigos, a Lei nº 6.404/1976 (Lei das S/A), com 300 artigos, a Lei nº 9.279/1996 (Lei de Propriedade Industrial), com 244 artigos, ou, mais recentemente, a Lei n º 11.101/2005 (Lei de recuperação judicial e a falência), com 201 artigos, etc. Mas essas não são leis ônibus, porque são monotemáticas.
Algumas leis que poderiam ser qualificadas como leis ônibus brasileiras são a Lei nº 11.196/2005 (Lei do Bem, que promoveu uma ampla racionalização em matéria tributária, mas acabou dispondo sobre diversos outros assuntos), com 133 artigos; a Lei nº 12.462/2011, que instituiu o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), mas também mexeu em várias outras legislações, com 70 artigos; e a Lei nº 13.465/2017, que, só pela ementa, vê-se que é um claro exemplo de lei ônibus, com 109 artigos, preponderantemente destinados a modificar outras leis. A Lei nº 13.874/2019 (Lei de Liberdade Econômica), como só tem 20 artigos, não chegaria a caracterizar uma lei ônibus.
Pois bem. Costuma surgir uma crítica ou outra às leis heterogêneas, mas esse ponto – os problemas envolvidos em leis multisetoriais e longas – jamais chegou a ser uma questão na jurisdição constitucional brasileira. Nunca se levou ao STF uma discussão dessa ordem.
Assim, o mero fato de leis abordarem diversos assuntos não viola qualquer dispositivo constitucional. No máximo, as leis ônibus se afastam dos princípios da boa técnica legislativa consagradas na LC 95/1998, notadamente as diretrizes de que, excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto; e de que a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão (art. 7º, incisos I e II).
Entretanto, como já argumentado <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/cabe-controle-de-constitucionalidade-por-ma-tecnica-legislativa-23062021">aqui</a>, não há que se falar em vício de inconstitucionalidade por má técnica legislativa. O simples tamanho ou a heterogeneidade das leis não implicam automática inconstitucionalidade.
<hr />
<a class="sdfootnotesym-western" style="font-family: inherit; font-style: inherit; font-variant-ligatures: inherit; font-variant-caps: inherit;" href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">[1]</a> No original: “Legislation that addresses numerous and not necessarily related subjects, issues, and programs – and therefore is usually highly complex and long – is referred to as omnibus legislation.” (SINCLAIR, Barbara. Unorthodox Lawmaking: New Legislative Processes in the U.S. Congress. 5th ed. Thousand Oaks: SAGE, 2017, p. 115)
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<a class="sdfootnotesym-western" href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">[2]</a> Dados extraídos de GLUCK, Abbe R. Unorthodox Lawmaking and Legislative Complexity in American Statutory Interpretation In: BAR-SIMAN-TOV, Ittai (ed). Comparative multidisciplinary perspectives on omnibus legislation. Cham: Springer, 2021, p. 195-225, p.196.
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JOTA

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