Opinião e Análise

Roberta Simões Nascimento

No último dia 23 de setembro, o ministro do STF Luís Roberto Barroso suspendeu os efeitos da cassação do vereador de Curitiba Renato Freitas (PT), nos termos da medida cautelar na <a href="https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Rcl55948DecisoMLRB.pdf">Reclamação (Rcl) nº 55.948</a>.
A cassação, no passado mês de agosto, pela Câmara Municipal de Curitiba (por 23 votos favoráveis, 7 contrários e 1 abstenção) teve por motivo a participação do vereador em protesto contra o racismo nas dependências da Igreja Nossa Senhora do Rosário. A missa ainda estava ocorrendo quando as manifestações começaram do lado de fora, interrompendo o culto. O próprio padre chegou a reclamar que “se pode protestar, mas em outro horário, sem atrapalhar a missa”. Todo o episódio está registrado <a href="https://www.youtube.com/watch?t=3113&amp;v=p3PYwJXZ4Rg&amp;feature=emb_imp_woyt">a partir da transmissão da própria Igreja</a> (do minuto 52 em diante).
Um dos principais pontos de insurgência da defesa do vereador foi a alegação de que o processo de cassação teria durado mais de 90 dias, violando o art. 5º, inciso VII, do Decreto-Lei (DL) nº 201/1967, que dispõe sobre os crimes de responsabilidade dos prefeitos e vereadores, cuja aplicação decorreria do próprio art. 7º, § 1º do mesmo DL nº 201/1967.
Com todas as vênias e admiração que esta colunista nutre pela pessoa do ministro Barroso, passa-se a tecer algumas considerações sobre os fundamentos usados na sua decisão.
A própria jurisprudência nacional – em relação aos processos administrativos disciplinares – entende que são impróprios os prazos de conclusão e julgamento, a exemplo dos previstos nos arts. 152 e 167 da Lei 8.112/1990 na esfera federal. Desse modo, sua abreviação ou extrapolação não acarreta nulidade automática, conforme o enunciado nº 592 da Súmula do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/superior-tribunal-de-justica">STJ</a>: “O excesso de prazo para a conclusão do processo administrativo disciplinar só causa nulidade se houver demonstração de prejuízo à defesa”.
Além disso, é duvidoso o acerto do argumento a simili utilizado para justificar que os arts. 1º e 4º (cujo âmbito pessoal se limita aos prefeitos) seriam aplicáveis por analogia aos vereadores, cuja norma de regência, a rigor, seria tão-somente o art. 7º, inciso III, do DL nº 201/1967 (e não o art. 4º, inciso X, citado no § 10 do decisum). Diferentemente do afirmado na decisão, não é possível, nem é pertinente, tratar a quebra de decoro parlamentar como crime de responsabilidade quando se trate de ato praticado por vereador. O ato considerado indecoroso não precisa constituir “crime”.
O próprio STF já recusou tal equiparação da quebra de decoro parlamentar ao crime de responsabilidade (e, por conseguinte, negou a existência de afronta ao enunciado da Súmula Vinculante nº 46) em caso idêntico. Vide a <a href="https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&amp;docID=754591943">Rcl nº 43.707-AgR</a> envolvendo um vereador de Uberlândia.
E mais: mesmo existindo decisões do STF no sentido da recepção do DL nº 201/1967 pela CF (por exemplo, os HCs nº 65.850 e nº 74.675), parece indiscutível que o art. 7º (que disciplina a cassação do vereador) foi derrogado pelo art. 29, inciso IX, da CF, que deixa de exigir disciplina por lei federal para a perda do mandato tanto do vereador, quanto dos deputados estaduais, distritais, federais e senadores. Trata-se da interpretação sistemática com o art. 27, § 1º, in fine, e o art. 55, inciso II, § 2º, da CF. A matéria foi “deslegalizada”, passando à disciplina dos regimentos e atos internos das Casas Legislativas, uma vez que, para a cassação de parlamentar, a CF só exige decisão do plenário por maioria absoluta, assegurada a ampla defesa (art. 55, § 2º). Assim, quanto ao rito do procedimento, vale o que estiver disciplinado pela própria Câmara Municipal, inclusive quanto aos prazos e prorrogações, não estando pré-fixados em 90 dias corridos.
A falta de compreensão quanto a esses pontos já faz com que a Rcl nº 55.948 entre para a lista das decisões que simplesmente ignoram a existência de um Direito Parlamentar como ramo autônomo, com lógica, regras e princípios próprios. Todas as Casas Legislativas têm a prerrogativa de cassar parlamentares cujo procedimento for declarado por seus próprios pares como incompatível com o decoro parlamentar, conforme a autorização do art. 55, inciso II, da CF, aplicável por simetria às esferas estadual, distrital e municipal.
Ao que tudo indica, a mistura dos regimes (quebra de decoro parlamentar e crime de responsabilidade) foi só uma estratégia deliberada com o propósito de atrair a suposta violação da Súmula Vinculante nº 46 (“A definição dos crimes de responsabilidade e o estabelecimento das respectivas normas de processo e julgamento são de competência legislativa privativa da União”), permitir o cabimento da reclamação constitucional (art. 103-A, § 3º, da CF) e assim “abrir as portas” da jurisdição do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">STF</a>.
Ad argumentandum, ainda que se entenda recepcionado o art. 7º do DL nº 201/1967, seu inciso III é textual em autorizar a Câmara Municipal a cassar o mandato de vereador que “proceder de modo incompatível com a dignidade da Câmara ou faltar com o decoro na sua conduta pública”. A tipificação aberta (encontrada nos Códigos de Ética e Decoro Parlamentar de todas as Casas Legislativas) é inevitável, faz parte da política e não há inconstitucionalidade nisso.
Daí a impropriedade da afirmação no sentido de que “a questão jurídica controvertida nos autos consiste em saber se o processo de perda de mandato de vereador por quebra de decoro parlamentar é regido por norma federal ou local” (§ 8). E ainda que fosse essa a questão, mesmo assim, o art. 7º, inciso III, do DL nº 201/1967, que é norma federal, já permitiria a cassação.
A palavra “decoro” vem do latim decorum, que significa “decência” ou “algo que convém”, a sugerir uma relação de adequação entre o fato e a circunstância de quem age. A expressão “decoro parlamentar” remonta a um comportamento coerente com as responsabilidades inerentes ao mandato e à Casa Legislativa de que faz parte, aos eleitores, à sociedade e ao Estado.
Nesses termos, a quebra do decoro parlamentar supõe atitudes passíveis de desacreditar e afetar a dignidade do Poder Legislativo. Com isso já se reduz significativamente a margem de subjetivismo ao redor da noção de “procedimento incompatível com o decoro parlamentar”. Há um duplo eixo de significação: o 1º, o dos comportamentos impróprios; e o 2º, o da respectiva repercussão junto à honra e dignidade dos pares e à imagem do Parlamento.
A noção de decoro parlamentar funciona como importante limitador da imunidade parlamentar. Como já explicado <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/conselhos-de-etica-decoro-parlamentar-28102020">aqui</a>, trata-se de um julgamento eminentemente político e essa é uma das razões da existência de dois tipos de responsabilidade, sendo a política diferente da jurídico-penal. Já se afirmou em <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/e-constitucional-a-inelegibilidade-do-parlamentar-cassado-por-quebra-de-decoro-03082022">coluna passada</a> que a responsabilidade política não implica, não pressupõe e não exclui a responsabilidade jurídica, seja penal, seja cível ou administrativa.
Ainda sobre o que é decoro parlamentar, é impossível deixar de citar a lição de Miguel Reale, cujas brilhantes palavras, embora escritas em 1969, permanecem atuais: “No fundo, falta de decoro parlamentar é falta de decência no comportamento pessoal, capaz de desmerecer a Casa dos representantes (incontinência de conduta, embriaguez etc.) e falta de respeito à dignidade do Poder Legislativo, de modo a expô-lo a críticas infundadas, injustas e irremediáveis, de forma inconveniente"<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Os contornos acima só reforçam o erro de equiparar a quebra de decoro parlamentar ao regime dos crimes de responsabilidade, como foi feito na Rcl nº 55.948. Seus regimes não se confundem, nem existe a “atecnia” do DL nº 201/1967 referida no § 17 da decisão. Não há paralelo possível entre ambos. Daí a irrelevância – repita-se, ao contrário do afirmado no § 19 da decisão – de suposta diferença entre normas federais ou locais para fins de regência do processo por quebra de decoro parlamentar.
No § 20, o princípio democrático é usado para justificar a decisão. Ocorre que o que respeita tal princípio é precisamente que as Casas Legislativas tenham os poderes de cassação, os quais derivam diretamente do art. 55 da CF, e devem poder ser nos termos de suas normas soberanamente elaboradas. Esse é um juízo interna corporis dos Parlamentos. A decisão judicial que entra no mérito, desfaz e substitui essa decisão legislativa é que viola o princípio democrático.
Já no <a href="https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&amp;docID=203863">RE nº 113.314</a>, julgado em 1988, o ministro Aldir Passarinho afirmou que o Poder Judiciário não pode examinar a cassação de vereador “se para isso se torna necessário fixar critério de valoração subjetiva sobre o procedimento do vereador, em substituição ao critério sobre a apreciação dos fatos adotado pela Câmara Municipal”. A Rcl nº 55.948 viola essa ratio.
Além de seu fundamento equivocado, como já visto, a decisão da Rcl nº 55.948 cria um precedente perigoso, capaz de anular todas as cassações de parlamentares municipais em situação semelhante. Pior que o efeito multiplicador, é a falácia da equiparação já criticada entre quebra de decoro parlamentar e crime de responsabilidade, feita só para atrair a falsa controvérsia da SV nº 46 sobre o pedigree da norma, se federal ou local.
Como se não bastasse isso, a decisão ainda entrou no mérito quanto ao teor da manifestação do vereador, afirmando ser impossível dissociar o ato da Câmara Municipal do pano de fundo do “racismo estrutural” (§ 21), em clara alusão às condutas que ensejaram a cassação (protesto antirracista).
A despeito da nobreza da causa do movimento – e aqui não se trata de desmerecê-la –, não parece acertado que o ministro possa presumir que a cassação de um parlamentar tenha tido motivação racista, sobretudo sem ter usado trechos dos debates parlamentares que assim o corroborasse.
A quebra do decoro parlamentar do vereador se deu não pela motivação do parlamentar, mas por suas ações concretas: a perturbação de cerimônia ou prática de culto religioso, valor caro à sociedade e protegido pelo Direito, como exemplificam o art. 208 do Código Penal (“Ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo. Art. 208 - Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso: Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa. Parágrafo único - Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência.”) e o art. 244, inciso I, do CPC (“Não se fará a citação, salvo para evitar o perecimento do direito: de quem estiver participando de ato de culto religioso”).
Os fins não justificam quaisquer meios. Por mais nobre e importante que seja a causa, em nome dela não se pode tudo.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> REALE, Miguel. Decoro parlamentar e cassação de mandato. Liberdade do deputado no exercício de seu múnus político. In: CLÈVE, Clèmerson Merlin; BARROSO, Luís Roberto (Orgs.). Doutrinas essenciais: Direito Constitucional. vol. 4. São Paulo: Editora RT, 2011, pp. 307-316, p. 310-311.

Renato Freitas (PT)

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JOTA

A equiparação aos crimes de responsabilidade que devolveu o mandato de vereador cassado em Curitiba

O que é quebra de decoro parlamentar?

A equiparação aos crimes de responsabilidade que devolveu o mandato do vereador Renato Freitas, cassado em Curitiba