Opinião e Análise

Roberta Simões Nascimento

De acordo com o art. 49, inciso V, da CF, o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/congresso-nacional">Congresso Nacional</a> pode sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa. Trata-se de novidade da CF de 1988. O mais próximo que havia em textos passados era a previsão do art. 91, inciso II, da Constituição de 1934, pelo qual o competia ao Senado examinar, em confronto com as respectivas leis, os regulamentos expedidos pelo Poder Executivo, e suspender a execução dos dispositivos ilegais.
Na atual CF, a competência em comento é exercida via aprovação de um decreto legislativo (DLL). Possui caráter de controle político e repressivo de constitucionalidade, exercido pelo Poder Legislativo, exclusivamente em relação a atos que ultrapassam os limites da competência normativa do Poder Executivo. A rigor, não caberia sustação com base no mérito (conteúdo) do ato normativo, à luz do juízo de conveniência e oportunidade do Congresso Nacional.
Na <a href="https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&amp;docID=346578">ADI 748-MC</a>, o STF reconheceu que o decreto legislativo com fundamento no art. 49, inciso V, da CF, “não se desveste dos atributos tipificadores da normatividade pelo fato de limitar-se, materialmente, suspensão de eficácia de ato oriundo do Poder Executivo”. Dessa normatividade geral e abstrata decorre a possibilidade de que tal decreto legislativo seja objeto de controle de constitucionalidade junto ao próprio STF, para cujo exame devem ser analisados os pressupostos legitimadores do exercício dessa competência.
A questão que se coloca na coluna de hoje é a possibilidade de o Congresso Nacional sustar resoluções do Conselho Nacional de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cnj">CNJ</a>). Como se acaba de ver, o art. 49, inciso V, da CF, faz menção expressa a atos normativos do Poder Executivo, pelo que pareceria não existir margem para abarcar atos do Poder Judiciário em geral, no que estariam incluídas as resoluções do CNJ.
Inclusive, esse é o entendimento do próprio STF, por exemplo, ao julgar a <a href="https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&amp;docID=7081119">ADC 33</a>, em que textualmente se afirmou a “ausência previsão constitucional para a edição de decretos legislativos que visem a sustar atos emanados do Poder Judiciário” e que isso implicaria violação à separação de poderes.
Nesse caso concreto, o objeto da ação era o <a href="https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decleg/2013/decretolegislativo-424-4-dezembro-2013-777558-publicacaooriginal-142140-pl.html">Decreto Legislativo 424, de 04/12/2013</a>, que sustou os efeitos da Resolução nº 23.389, de 9 de abril de 2013, expedida pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que dispõe sobre o número de membros da Câmara dos Deputados, e das Assembleias e Câmaras Legislativas para as eleições de 2014.
A ação tinha sido ajuizada pela <a href="https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&amp;docID=5992987&amp;prcID=4582280">Mesa do Senado Federal</a>, que sustentou que o TSE usurpou a competência do Congresso para legislar sobre matéria nos termos do art. 45, § 1º, da CF (“O número total de Deputados, bem como a representação por Estado e pelo Distrito Federal, será estabelecido por lei complementar, proporcionalmente à população, procedendo-se aos ajustes necessários, no ano anterior às eleições, para que nenhuma daquelas unidades da Federação tenha menos de oito ou mais de setenta Deputados”). A Resolução do TSE não poderia revogar a <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LCP/Lcp78.htm">LC 78/1993</a>, que disciplina o assunto.
Entretanto, o entendimento do STF foi o de que o DLL 424/2013 era inconstitucional formal e materialmente, também por violação do princípio da anterioridade eleitoral (art. 16 da CF), já que foi editado há menos de 1 ano das eleições de 2014. Embora a ADC 33 tenha sido julgada improcedente, a mencionada Resolução 23.389/2013 já sido declarada inconstitucional no âmbito das ADIs <a href="https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&amp;docID=7081173">5028</a>, 4947 e 5020, por violação à reserva de lei complementar.
Na referida ADC 33, chegou-se a registrar que: “O art. 49 da Constituição de 1988, que traz as matérias de competência exclusiva do Congresso Nacional, as quais, em sua maior parte, devem ser levadas a cabo por meio da edição de decretos legislativos, não traz a atribuição de sustar atos normativos emanados pelo Poder Judiciário, o que de resto seria absurdo” (p. 34).
O texto avança para, usando alguns exemplos de PDL, como o <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=503973">PDL 224/2011</a>, que pretendia sustar a decisão do STF na ADI 4277 e na ADPF 132, fazer a seguinte crítica: “Esses exemplos estão a revelar que não se pode dar brecha para esse tipo de atuação por parte de alguns parlamentares. Propostas de decretos legislativos dessa natureza, bem como a malsinada PEC 33/2011, subvertem a organização e a independência dos poderes disposta no texto constitucional e violam a própria democracia brasileira, tal como desenhada pela Constituição Federal de 1988” (p. 35). Com isso, assentou que o Congresso poderia sustar só atos normativos do Poder Executivo.
Ocorre que a competência para sustar atos normativos do Poder Judiciário decorre, não do inciso V do art. 49 da CF (que de fato está limitado ao Poder Executivo), mas, sim, do seu inciso XI, pelo qual é da competência exclusiva do Congresso Nacional “zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes”.
Trata-se de uma competência mais ampla (do que a do art. 49, inciso V), para a qual o constituinte não prefixou quais medidas serão cabíveis (sustação, aprovação legislação em sentido contrário, ajuizamento de ação judicial, etc.). Além disso, o art. 49, inciso XI, da CF, também pode ser suscitado, não só em face do Poder Judiciário, mas também em face de outros órgãos constitucionais com poder normativo, como o Ministério Público, o Tribunal de Contas, etc.
Como explica <a href="https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/580895/TD289.pdf?sequence=1&amp;isAllowed=y">Luciano Oliveira</a>, “zelar é ter cuidado, tratar com a máxima dedicação possível. Para bem exercer essa missão, é preciso que o Parlamento possua os meios necessários para tanto, sob pena de o dispositivo tornar-se letra morta na Carta Magna” (p. 12-13).
<a href="https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/307808/noticia.htm?sequence=1&amp;isAllowed=y">Ives Gandra da Silva Martins</a> interpreta essa norma como “uma determinação imposta pelo constituinte (poder-dever) ao Legislativo de não permitir que outros Poderes (Executivo e Judiciário) legislem em seu lugar”. Na sua opinião (que é minoritária na literatura), o art. 49, inciso XI, da CF, poderia ser invocado, inclusive, em face de decisões judiciais que representem invasão da competência legislativa do Congresso Nacional.
Existem PECs em tramitação para modificar a redação do art. 49 da CF nesse sentido. Por exemplo, a <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1762646&amp;filename=PEC%2093/2019">PEC 93/2019</a>, de autoria da deputada Chris Tonietto (PSL-RJ), propõe alterar a redação do inciso V para a seguinte: “sustar os atos do Poder Executivo ou do Poder Judiciário que exorbitem seu poder regulamentar, os limites de delegação legislativa, ou violem a competência exclusiva do Poder Legislativo”.
A <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2391567">PEC 50/2023</a>, de autoria do deputado Domingos Sávio (PL-MG), pretende inserir um inciso XIX no art. 49 prevendo a competência do Congresso Nacional para: “deliberar, por três quintos dos membros de cada Casa legislativa, em dois turnos, sobre projeto de Decreto Legislativo do Congresso Nacional, apresentado por 1/3 dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, que proponha sustar decisão do Supremo Tribunal Federal que tenha transitado em julgado, e que extrapole os limites constitucionais”.
Se, por um lado, ainda existem dúvidas em relação à aplicabilidade do art. 49, inciso XI, da CF, para sustar decisões judiciais; por outro lado, ao menos dentro do Poder Legislativo, é certo que os próprios parlamentares entendem pela possibilidade constitucional de o Congresso sustar resoluções do CNJ. Há diversos projetos de decreto legislativo (PDLs) tramitando nas duas Casas Legislativas encampando essa interpretação.
É o caso, por exemplo, do <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/157408">PDL 152/2023</a>, de iniciativa do senador Styvenson Valentim (Podemos-RN), para sustar a <a href="https://atos.cnj.jus.br/files/original2015232023022863fe60db44835.pdf">Resolução 487/2023</a> do CNJ que institui a Política Antimanicomial do Poder Judiciário e estabelece procedimentos e diretrizes para implementar a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei 10.216/2001 (Lei Antimanicomial), no âmbito do processo penal e da execução das medidas de segurança. Entre os artigos mais polêmicos da resolução, está o que prevê a interdição total e o fechamento dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (art. 18).
Na justificativa apresentada pelo senador, lê-se que, ao pretender regulamentar a Lei Antimanicomial, o CNJ teria exorbitado do seu poder, criando um procedimento não previsto na legislação de referência, inovando em matéria de política pública de segurança à revelia do Congresso. Lê-se, ainda, que o sistema público de saúde e o sistema prisional não estariam preparados para receber as pessoas que estavam internadas nos “manicômios judiciários”.
O <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2352341&amp;fichaAmigavel=nao">PDL 81/2023</a>, de autoria do deputado Kim Kataguiri (União-SP), tem por objeto a mesma resolução, já contando com <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2283396&amp;filename=SBT+1+CCJC+%3D%3E+PDL+81/2023">parecer favorável aprovado no âmbito da CCJC</a>, com 36 votos favoráveis e 16 contrários. Desse documento, merece destaque o seguinte trecho à p. 4: “Nota-se que a Resolução atacada pelo PDL em análise exorbitou do seu poder regulamentar violando frontalmente a competência reservada ao Poder Legislativo pela Constituição Federal. É papel da Lei inovar na ordem jurídica e não de ato administrativo normativo infralegal, cuja função é explicar a Lei. As mudanças que a Resolução do CNJ pretende viabilizar DEVE ser discutida no âmbito do Congresso Nacional no intuito de ampliar o debate com a sociedade considerando tratar se de alterações substanciais que afetam toda a disciplina das medidas de segurança previstas no Código Penal” (sic).
Ao mencionado PDL 81/2023, ainda estão <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/pec-da-transicao-apensacao-e-o-futuro-do-bicameralismo-07122022">apensados</a> os PDLs 131/2023, 153/2023, 154/2023, 378/2023, 416/2023, todos tendo como objeto a Resolução 487/2023 do CNJ. Na Câmara, os PDLs são matéria sujeita à apreciação do plenário. Já no Senado, os PDLs são matéria suscetível à aprovação terminativa comissões. Essa diferença pode explicar por que esses instrumentos, a despeito de virem sendo apresentados cada vez mais, são pouco aprovados, sobretudo na Câmara.
Outro PDL que pretende sustar resolução do CNJ é o <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/160129">PDL 327/2023</a>, de iniciativa do senador Zequinha Marinho (Podemos-PA), para sustar a <a href="https://atos.cnj.jus.br/files/original13433320230628649c3905c2768.pdf">Resolução 510/2023</a> do CNJ, que regulamenta a criação de Comissões de Soluções Fundiárias (nacional e regionais), institui diretrizes para a realização de visitas técnicas nas áreas objeto de litígio possessório e estabelece protocolos para o tratamento das ações que envolvam despejos ou reintegrações de posse em imóveis de moradia coletiva ou de área produtiva de populações vulneráveis, conforme a determinação do STF na <a href="https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6155697">ADPF 828</a>.
De acordo com a justificação legislativa apresentada, a Resolução 510/2023 do CNJ violaria o direito de propriedade (art. 5º, inciso XXII, da CF), ao criar procedimentos que acarretarão mais tempo para que o proprietário possa reaver seu imóvel invadido. Essa mesma resolução é objeto do PDL 200/2023 na Câmara.
Mesmo antes desses PDLs de 2023 mencionados, já havia outros, como o <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141283">PDL 116/2020</a> (para sustar a Resolução 303/2019 do CNJ, sobre precatórios) ou o <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141758">PDL 185/2020</a> (para sustar parcialmente os efeitos da Recomendação 62/2020 do CNJ, que continha medidas preventivas à expansão do Covid-19 no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo), que já estão arquivados.
Na Câmara dos Deputados, citam-se: o <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=578114">PDC 871/2013</a>, que pretendia sustar a Resolução 175/2013 do CNJ, que dispunha sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo; o <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2287373">PDL 252/2021</a>, que propunha sustar a Resolução 376/2021 do CNJ, que dispõe sobre o emprego obrigatório da flexão de gênero para nomear profissão ou demais designações na comunicação social e institucional do Poder Judiciário nacional.
Como se vê, casos de PDLs para sustar atos normativos do CNJ não faltam; e envolvem até mesmo Resolução do TSE. O STF até pode discordar, mas a interpretação legislativa que vigora entre os parlamentares do Congresso Nacional é a de que o art. 49, inciso XI, da CF, se presta, sim, para sustar resoluções do CNJ. Embora nenhum dos PDLs em tramitação tenha sido aprovado, o simples fato de se entender por essa possibilidade nas práticas legislativas, é suficiente para conferir legitimidade a essa interpretação legislativa da Constituição.

Senado Federal

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JOTA

Para o STF, não, mas existem vários PDLs tramitando

O Congresso Nacional pode sustar resoluções do CNJ?

Para o STF, não, mas existem vários PDLs tramitando no Congresso Nacional