Tradicionalmente, a noção de poder constituinte originário recebe a crítica de carregar em si uma ideia autocontraditória, que se vale da ambiguidade da palavra ‘poder’ – que no direito significa atribuição, competência, faculdade, mas no cotidiano também remete à ideia de força, potência, aptidão – para justificar a derrubada de um sistema jurídico e a fundação de uma nova ordem constitucional.
É por isso que Genaro Carrió, por exemplo, de modo sagaz vislumbra na expressão poder constituinte originário um caso do que denominou de “transgressão dos limites da linguagem normativa”, na medida em que a referência a uma competência inicial e ilimitada do titular de um poder chamado originário seria algo que carece de sentido. É dizer, a existência de um poder jurídico pressuporia uma norma prévia que o delimite, o que não existe no caso do poder constituinte originário.
A ideia de uma competência sem regras capaz de justificar reformas revolucionárias de normas constitucionais permanece como aporia, sem que as manifestações do poder constituinte originário tenham sido capazes de criar, no âmbito da teoria, diretrizes para o seu exercício (por mais que haja um amplo consenso em torno da necessidade de que seja democrático). Tampouco existe uma teoria geral completa sobre os golpes de Estado, embora alguns títulos de obras anunciem tal pretensão.
Quando já existe uma ordem constitucional vigente, de que forma se evoca o poder constituinte originário? É possível que seja instituído pelo poder constituinte derivado (como foi o caso da Emenda Constitucional – EC nº 26/85)? Seria necessário proceder, previamente, a uma consulta plebiscitária (como ocorreu no Chile no último 25 de outubro de 2020)? As experiências concretas apontam para diferentes respostas (no Brasil, por exemplo, não houve consulta popular prévia, nem posterior à redação do texto de 1988).
Disso resulta que o poder constituinte originário pode continuar sendo “outorgado” (como no caso da Constituição provisória do Iraque de 2004), exercido por intermédio de revoluções e, mesmo quando chamada uma assembleia constituinte, há uma variedade de arranjos possíveis, já que pode haver ou não uma eleição voltada especificamente para a escolha dos constituintes, os trabalhos podem ser exclusivos ou cumulados com a função legislativa ordinária e o texto final pode ou não ser submetido a um referendo.
Se o fetiche em torno do poder constituinte originário sempre existiu, hoje o interesse pelos processos de elaboração das Constituições se torna ainda maior e acompanhá-los agora também é mais fácil, como se pode ver pela experiência contemporânea do Chile. Na página oficial da Convención Constitucional, há 13 canais de transmissão simultânea dos trabalhos das comissões, audiências e votações. Há também a conta @convencioncl no Twitter com notícias e informações.
Nesse contexto mais tecnológico, é até difícil imaginar o cenário relatado pelo então deputado constituinte Nelson Jobim com relação à Assembleia de 1987-1988: “Vocês hão de perguntar: mas como é que se descobriu o nome das subcomissões? O que vou contar é literal. Surgido o problema, pegamos os três volumes que reuniam as constituições ocidentais editadas pelo Senado, e recortamos com tesoura os títulos, os nomes de títulos e capítulos de todas aquelas constituições. E, durante uma noite inteira, colocando no chão, terminamos a distribuição daquilo tudo. E aí, surgiu o seguinte: houve títulos, ou nome de títulos e capítulos que se reproduziam em todas as constituições. Chamamos, então, de matéria absolutamente constitucional. Houve nomes de títulos e de capítulos, que se repetiam na maioria das constituições. Chamamos de matéria relativamente constitucional. E houve um número de títulos de capítulos que se repetiam na minoria das constituições, menos de 50%. Chamamos de matéria relativamente não constitucional. E, por último, capítulos e nomes de títulos de capítulos que existiam em uma ou outra constituição. E aí nós chamamos de matérias idiossincrassicamente (sic) constitucionais. Neste modelo é que foram elaboradas as 25 (sic) subcomissões, que se centravam em grandes temas: as 8 comissões, que eram os 08 títulos da Constituição de hoje.”[2]
Daí já vai-se vendo a importância das regras que disciplinam os trabalhos constituintes, organizam a discussão e a votação. Inclusive, é precisamente esse o primeiro desafio após a instalação de uma assembleia constituinte: a elaboração de um regimento interno, estabelecendo quem discute o que, quando e de que forma.
Nesses quase 2 dos 9 meses da Convenção do Chile, os 155 constituintes se dedicaram a fixar tais procedimentos, que já contam com uma proposta consolidada.
Tal regimento interno apresenta alguns pontos sensíveis, como, em primeiro lugar, o quórum. No art. 71, fixou-se a necessidade de votação favorável de 2/3 para a aprovação do texto constitucional. De acordo com o art. 72, a proposta que não alcançar tal quórum, mas tenha obtido a maioria dos votos, será devolvida à comissão respectiva para elaboração de uma segunda proposta.
Em segundo lugar, outro ponto crítico é a composição da Mesa Diretora, que desempenha papel importante na condução dos trabalhos, sobretudo para definir questões de ordem, viabilizar acordos e desbloquear discussões. Pelo art. 23, a Mesa será composta por 9 integrantes, o que significa uma tentativa de reduzir a desconfiança das decisões, que ficam menos concentradas em poucos membros.
Em terceiro lugar, é no regimento que traz a estrutura da assembleia, no caso, as comissões temáticas. A temática é nefrálgica, dado que a opção por poucas comissões torna mais complexo o processo decisório interno (pela quantidade de integrantes), ao passo que um número elevado de órgãos fracionários pode acabar pulverizando os grupos minoritários, que terão menos possibilidades de influenciar em cada comissão.
Pelo art. 32, são 7 as comissões: 1) Comissão sobre Sistema Político, Governo, Poder Legislativo e Sistema Eleitoral (com 21 membros); 2) Comissão de Princípios Constitucionais, Democracia, Nacionalidade e Cidadania (com 19 membros); 3) Comissão sobre a Forma Jurídica do Estado, Equidade Territorial e Organização Fiscal, Política e Administrativa (com 25 membros); 4) Comissão de Direitos Fundamentais: Direitos Políticos e Civis (com 21 membros); 5) Comissão de Direitos Fundamentais: Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; e Comissão de Direitos Coletivos e Direitos Culturais; e sobre os Direitos Coletivos dos Povos Indígenas e Nações Pré-existentes ao Estado (com 25 membros); 6) Comissão sobre Meio Ambiente, Direitos da Natureza, Bens Comuns e Modelo Econômico (com 25 membros); 7) Comissão sobre Sistemas de Justiça, Órgãos Autônomos de Controle e Reforma Constitucional (com 19 membros).
Sem prejuízo, o art. 46 garantiu a possibilidade de criação de outras comissões especiais e o art. 47 estabeleceu, como não poderia deixar de ser, uma comissão de sistematização.
Em quarto lugar, o nó górdio a cargo do regimento interno é a definição dos procedimentos propriamente ditos, isto é, os ritos, as regras de iniciativa, emenda, discussão, votação, prazos, etc., tudo de modo a assegurar normas regimentais capazes de garantir o funcionamento da constituinte em consonância com os objetivos para os quais foi criada.
Naturalmente, tais desenhos institucionais são apenas a moldura em que os constituintes atuarão, sendo necessário que cada um deles e todos, pessoalmente, estejam imbuídos do espírito de cooperação e empenho para superar as divergências políticas em prol da construção do futuro do país e da realização das aspirações do povo (por mais problemática que seja essa ideia).
Do ponto de vista da técnica constitucional, parece desnecessário comentar que a redação de uma constituição exige muito mais do que a elaboração da legislação ordinária. Por isso, convém, recordar um conselho básico da nomografia constitucional, o que se passa a fazer na sequência.
Embora não exista uma definição exata sobre o tamanho do texto constitucional, o conteúdo mínimo de uma constituição equivale à definição da estrutura do Estado e declaração de direitos. Não devem ser inseridas no texto constitucional matérias que podem ser ajustadas em leis ou normas inferiores, pois, quanto mais longo for o texto constitucional, maior a projeção desses mandamentos no plano infraconstitucional e a multiplicação de normas. O excesso de normas enfraquece a Constituição.
Como insistia Jeremy Bentham, as palavras das leis (e acrescenta-se aqui, com ainda mais razão, as palavras de uma constituição) devem ser pesadas como diamantes, pois a vida, a liberdade, a propriedade, etc., dependem das palavras escolhidas pelos legisladores.
Essa, talvez, seja a principal peculiaridade da técnica de elaboração de textos constitucionais: uma boa constituição deve ter generalidade, mas, ao mesmo tempo, deve trazer ambiguidades para tornar suas normas flexíveis e duradouras. Por exemplo, garante-se a “a inviolabilidade do direito à vida”, mas sem dizer quando a vida humana começa (se no parto, na nidação ou na concepção).
Sobretudo diante da falta de consenso entre os constituintes, a utilização de normas vagas ou de conteúdo mais principiológico, cuja regulamentação e/ou concretização se deixa a cargo do legislador infraconstitucional, é a maneira de resolver os impasses. Basta um pequeno ajuste na redação (acrescentar um “na forma da lei”, por exemplo, ou os correlatos “lei regulará”, “lei definirá”, “lei disporá”, “lei estabelecerá”, “nos termos da lei”, etc.) e a discussão fica para depois.
Esse tipo de polêmica também pode ser evitado com a adoção do conselho de Josaphat Marinho (que foi senador da República e professor de Direito Constitucional na Universidade de Brasília): “Importante, também, é que não se transforme a Constituição em repositório de todas as ideias ou teses em debate, quer as propugnadas por minorias exaltadas, ou as defendidas por maioria teimosa. Por desenrolar-se, sempre, em número maior de provisões, a Constituição não deve converter-se em compêndio de polêmica. Inovar não é pleitear e regular aleatoriamente, mas disciplinar o socialmente útil”.[3]
Como se vê, a utopia pode surgir como empecilho à boa redação da Constituição. Convém evitá-la em processos constituintes.
A convocação do poder constituinte originário nos tempos atuais é criticada, por vezes, por ter-se transformado em estratégia política populista que permite o entusiasmo de multidões (com a promessa ilusória de mudanças profundas no sistema político) e mantém a todos, especialmente os partidos de oposição, ocupados com as complicações do processo em uma assembleia constituinte.
Contra essa falsa ideia de um poder constituinte originário chamado demagogicamente para remediar crises institucionais (como se fosse capaz de fazê-lo em um passe de mágica), a teoria do direito constitucional de hoje oferece um antídoto ainda fraco. Definitivamente, é preciso revisitar o capítulo das técnicas e da nomografia constitucional para a contemporaneidade.
Fica a torcida para que o Chile não tenha caído em uma armadilha e que também o Brasil fique à salvo dessa eventual maldição que pode ser a redação de uma nova constituição.
[2] JOBIM, Nelson de Azevedo. A Constituinte vista por dentro – vicissitudes, superação e efetividade de uma história real. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Quinze anos de Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, pp. 09-17, p. 11-12.
[3] MARINHO, Josaphat. Técnica constitucional e nova Constituição. Revista de Informação Legislativa, v. 21, n. 81, pp. 141-152, 1984, p. 149.