Opinião e Análise

Roberta Simões Nascimento

Desde outubro de 2021, com a aprovação da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14230.htm">Lei 14.230</a>, que alterou a Lei 8.429/1992, que dispõe sobre a improbidade administrativa (LIA), as diversas mudanças legislativas vêm despertando acalorados debates no meio jurídico, como se pode ver <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lei-de-improbidade-administrativa">aqui</a>.
Em <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/lei-de-improbidade-administrativa-monopolio-vs-concorrencia-02022022">coluna passada</a>, já se havia discorrido sobre uma das principais novidades: a competência exclusiva do Ministério Público para propor tais ações, que acabou sendo declarada inconstitucional no âmbito do julgamento das ADIs nº 7.042 e 7.043, como foi noticiado <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/stf-mantem-legitimidade-da-advocacia-publica-para-propor-acoes-de-improbidade-31082022">aqui</a>.
O STF também já aprovou <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/stf-lei-de-improbidade-nao-deve-retroagir-salvo-para-processos-em-curso-18082022">outras teses</a> quanto à nova lei, notadamente no que diz respeito à disciplina da retroatividade, ao julgar o ARE nº 843.989 (tema nº 1.199 da repercussão geral).
No entanto, a tirar pelas ações ainda pendentes de julgamento – ADIs nº 7.156, nº 7.236 nº 7.237 ajuizadas respectivamente pela Confederação Nacional dos Servidores e Funcionários Públicos das Fundações, Autarquias e Prefeituras Municipais (CSPM), pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) e pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) – ainda virão novos capítulos sobre a “nova” LIA.
Somadas, as ações impugnam a Lei 14.230/2021, artigo 2º, nos pontos em que alterou ou inseriu disposições na Lei 8.429/1992 – em especial o artigo 1º, §§ 1º, 2º, 3º, 8º; artigo 3º, § 1º; artigo 10; artigo 11, caput, incisos I e II e sua combinação com os §§ 3º e 4º; artigo 12, inciso III, e seus §§ 1º, 4º 9º e 10; artigo 16, §§ 3, 4º e 10; artigo 17, § 10-F, inciso I; artigo 17, § 19, inciso II; artigo 17-B; artigo 17-C, § 2º; artigo 17-D; artigo 21, §§ 4º e 5º; artigo 23, caput e seus §§ 2º, 3º, 4º e 5º; 23-C.
O desfecho dessas ações será curioso porque parte dos dispositivos impugnados reflete precisamente o entendimento jurisprudencial sobre a matéria pacificado pelo STJ. Desfazer algumas dessas novidades legislativas, então, equivalerá ao STF declarar inconstitucional e reverter a própria jurisprudência do STJ.
Vez por outra isso até costuma acontecer em processos judiciais. A diferença é que, nesse caso da nova Lei de Improbidade, houve a chancela do Congresso Nacional, que converteu em lei o que antes era só jurisprudência.
Esse é o caso de uma das novidades mais chocantes da nova lei: a exigência de dolo específico (assim entendido como a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado) para caracterização das condutas tipificadas nos arts. 9º, 10 e 11.
Basta conferir o entendimento nº 1, da <a href="https://www.stj.jus.br/internet_docs/jurisprudencia/jurisprudenciaemteses/Jurisprudência%20em%20teses%2038%20-%20Improb%20Administrativa%20I.pdf">edição nº 38 da publicação Jurisprudência em Teses</a>, pelo qual “É inadmissível a responsabilidade objetiva na aplicação da Lei 8.429/1992, exigindo-se a presença de dolo nos casos dos arts. 9º e 11 (que coíbem o enriquecimento ilícito e o atentado aos princípios administrativos, respectivamente) e ao menos de culpa nos termos do art. 10, que censura os atos de improbidade por dano ao Erário”.
Como se vê, os legisladores foram um pouquinho além, eliminando de uma vez a figura da culpa, até mesmo por recomendação do próprio Ministro Mauro Campbell, que presidiu a comissão de juristas que preparou o anteprojeto de atualização da LIA, e vislumbrava uma atecnia nessa qualificação, como explicado <a href="https://www.conjur.com.br/2019-jan-20/entrevista-mauro-campbell-ministro-superior-tribunal-justica">nesta entrevista</a>.
O mesmo fenômeno da incorporação legislativa de jurisprudência também se observa no novo art. 21, § 4º, que determinou a comunicabilidade dos efeitos de decisão absolutória proferida em juízo criminal para o âmbito da improbidade administrativa.
Para esse dispositivo, as próprias razões legislativas apontam para a incorporação da jurisprudência do próprio STF, como se depreende do seguinte fragmento do <a href="https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9022430&amp;ts=1641233524232&amp;disposition=inline">parecer da CCJ do Senado Federal, da lavra do senador Weverton Rocha (PDT-MA)</a>:
<blockquote class="jota-article__citation">(...) observo que o princípio da independência das instâncias, salvo o disposto no § 4º do artigo do artigo 37 da Constituição, é construção doutrinária e jurisprudencial com base na legislação em vigor, de modo que seus contornos estão plenamente à disposição da opção política própria da liberdade de conformação do legislador ordinário.</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">Noutras palavras, desde que a lei não prejudique a ação penal cabível por causa de ação de improbidade administrativa – como é defeso por força do § 4º do artigo 37 da Constituição – pode o legislador, como no caso, estabelecer hipóteses de interdependência entre as instâncias cível, criminal e administrativa.</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">Cumpre ressaltar, porém, que, na situação específica dos efeitos das sentenças civis e penais produzirem efeitos em relação à ação de improbidade quando concluírem pela inexistência da conduta ou pela negativa de autoria, o próprio Supremo Tribunal Federal já o vem reconhecendo (vide RCL nº 41.577, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 10/03/2021).</blockquote>
Provavelmente quis-se referir à <a href="https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&amp;docID=755279509">Rcl nº 41.557</a>, em que se determinou o trancamento da ação civil pública de improbidade em relação ao reclamante, com sua exclusão do polo passivo, e a desconstituição definitiva da ordem de indisponibilidade de bens, em razão da identidade entre os acervos fático-probatórios da ação de improbidade e da ação penal trancada pelo STF.
O curioso aqui, no entanto, é que a redação do art. 21, § 4º, foi além do que previa a jurisprudência, determinando a comunicabilidade de todos os fundamentos de absolvição previstos no art. 386 do CPP, incluindo a absolvição por não existir prova suficiente para a condenação.
Seja como for, vai ser curioso ver um julgamento que, na prática, em grande medida, terá como objeto a jurisprudência do STJ.
Isso se repete com a nova redação trazida para o artigo 23 impugnado, que unificou em 8 anos o prazo prescricional para aplicação das sanções da Lei de Improbidade e fixou sua contagem a partir da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência.
Na redação anterior, o inciso I (hoje revogado) previa o termo a quo do prazo prescricional a partir do término do exercício de mandato, de cargo em comissão ou de função de confiança.
Com a nova opção legislativa, de certa forma restou incorporado o entendimento nº 6, conforme a <a href="https://www.stj.jus.br/internet_docs/jurisprudencia/jurisprudenciaemteses/Jurisprudência%20em%20teses%2038%20-%20Improb%20Administrativa%20I.pdf">edição nº 38 da publicação Jurisprudência em Teses</a>, o que também consta do enunciado nº 634 da Súmula do STJ (“Ao particular aplica-se o mesmo regime prescricional previsto na Lei de Improbidade Administrativa para o agente público”) e depois reiterado no item nº 4, da <a href="https://www.stj.jus.br/publicacaoinstitucional/index.php/JuriTeses/article/view/12382/12486">edição nº 186 da Jurisprudência em Teses</a>.
Nada obstante, para os requerentes das ADIs, o novo art. 23, ao disciplinar a contagem do prazo da prescrição na data do fato – portanto, dissociado do término do mandato, saída do cargo em comissão ou função de confiança –, teria retirado a plena eficácia do art. 37, § 4º, da CF (“Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.”).
Inclusive, esse argumento – o da violação ao princípio da proporcionalidade, na vertente da proibição da proteção deficiente – é o fundamento do pedido de inconstitucionalidade quanto à maioria dos dispositivos impugnados da nova LIA.
Esse também seria o problema do art. 17-C, § 2º, que prevê que, na hipótese de litisconsórcio passivo, a condenação ocorrerá no limite da participação e dos benefícios diretos, vedada qualquer solidariedade. Ocorre que, mais uma vez, só se positivou o que já era entendimento do STJ: “Nas ações de improbidade administrativa, não há litisconsórcio passivo necessário entre o agente público e os terceiros beneficiados com o ato ímprobo” (nº 9 da edição nº 38 da publicação Jurisprudência em Teses).
Em resumo, a nova Lei de Improbidade Administrativa é um caso claro de incorporação legislativa de jurisprudência, comportamento muito mais frequente do que a literatura voltada para só para o que se chama backlash é capaz de mapear. No espaço de que se dispõe, não há como desenvolver melhor a ideia, mas fica a sugestão de uma agenda de pesquisa e uma pergunta: será que o STF vai declarar inconstitucional o que na essência é a jurisprudência do STJ?

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JOTA

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