Opinião e Análise

Roberta Simões Nascimento

No último dia 6 de outubro, foi embora o ex-ministro Moreira Alves. O JOTA noticiou <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/morre-moreira-alves-ministro-aposentado-do-supremo-aos-90-anos-06102023">aqui</a>. De forma semelhante à homenagem simbólica que esta Defensor Legis prestou ao <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/sepulveda-pertence-e-o-voto-de-lideranca-05072023">ex-ministro Sepúlveda Pertence</a>, a coluna de hoje se dedica a resgatar o que pode ser indicado como o maior legado do ministro Moreira Alves em matéria de Direito Constitucional Parlamentar: a criação do controle de constitucionalidade do processo legislativo no Brasil.
Como indicado em <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/o-que-e-o-devido-processo-legislativo-17022021">texto passado</a>, foi Moreira Alves quem abriu a divergência e sagrou vencedor o entendimento firmado no leading case do MS 20.257, que pela primeira vez admitiu o cabimento de mandado de segurança para o controle judicial preventivo das leis in fieri no Brasil. Dada a magnitude desse julgado, cujas consequências reverberam até os dias atuais, vale a pena conhecer em detalhes a controvérsia.
Os senadores Itamar Franco e Antonio Mendes Canale impetraram o MS 20.257 com o objetivo de impedir a tramitação das PECs 51 e 52/1980, bem como a Emenda 3 apresentada às referidas PECs – que tinham por objeto a prorrogação dos mandatos dos então prefeitos, vice-prefeitos e vereadores pelo prazo de 2 anos –, sob o argumento de que as proposições contrariavam o art. 47, § 1º, da Constituição de 1967, com redação dada pela EC 1/1969 (“Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a Federação ou a República”).
Isso porque, de acordo com a argumentação da petição inicial, pretendia-se substituir o regime republicano representativo e a autonomia municipal por outro que em que o povo não elegeria seus representantes municipais.
O pedido do writ foi para sustar a tramitação das referidas proposições e, assim, impedir que se consumem a violação aos direitos líquidos e certos dos impetrantes de “não deliberar sobre matéria expressa e formalmente vedada pela Constituição” e a ofensa à república e à federação. Se a Mesa do Senado pusesse a PEC para apreciação em plenário, haveria ofensa ao direito substantivo dos parlamentares de não deliberar.
O então procurador-geral da República Firmino Ferreira Paz prontamente rebateu afirmando que não havia tal “direito de não deliberar”. Nas suas palavras: “Quem não delibera, individual ou coletivamente, não exerce direito subjectivo de espécie alguma. Exerce, sim, poder, jurídico ou fático. No caso, seria poder jurídico de votar, a favor ou contra, de que cada Senador da República é titular. Não votar, positiva ou negativamente, jamais é exercício de poder qualquer”.
Depois, correlacionando que a todo direito subjetivo corresponde um dever jurídico, o PGR enfatizou a inexistência de regra jurídica prevista para a situação. Além disso, registrou que, na qualidade de representantes dos Estados, os senadores no exercício do mandato não agem em nome próprio; não exercem direito individual. Daí que inexistiria um “direito de não deliberar” objeto de proteção via mandado de segurança.
A impossibilidade jurídica do pedido foi desenhada nos seguintes termos: “(...) submeter à deliberação do plenário do Congresso Nacional proposição legislativa é acto de rotina, praticado de ofício, inerente às próprias funções da Mesa do Senado Federal. Não ofende direito de ninguém. Não cria direito. Não é acto jurídico ilícito. Nem abusivo. Nem ilegal”.
O pedido liminar foi indeferido, houve agravo regimental a que o plenário negou provimento, de modo que a tramitação seguiu e a PEC cuja tramitação fora questionada pelos impetrantes acabou sendo aprovada pelo Congresso. Por essa razão, em seu voto, o relator Décio Miranda julgava prejudicado o wirt, por perda de objeto ante a consumação do fato impugnado.
Na verdade, o relator usou ainda outro argumento de ordem técnica dentro das condições da ação. A autoridade apontada como coautora foi a Mesa do Congresso Nacional, cujo presidente já não tinha poderes para barrar a deliberação sobre a PEC, pois a proposta já havia sido recebida. Nos termos do então Regimento Comum do Congresso Nacional, o presidente tinha poderes para rejeitar liminarmente a PEC que não atendesse ao art. 47, §§ 1º a 3º, Constituição de 1967, com redação dada pela EC 1/1969.
No entanto, como a PEC tinha sido recebida e lida desde o dia 30 de maio de 1980, havia-se esgotado a possibilidade de o presidente da Mesa rejeitar liminarmente a proposta por contrariedade ao referido art. 47, § 1º, do texto constitucional. Dessa forma, a impetração do mandado de segurança preventivo somente em 19 de agosto de 1980, passados já mais de 2 meses e 20 dias, já não mais havia ato da alçada da Mesa para impedir a tramitação, tendo-se deslocado para o Plenário do Congresso a competência para a deliberação sobre a proposta.
O entendimento do relator Décio Miranda que julgou prejudicado o writ foi acompanhado pelos ministros Cunha Peixoto e Xavier de Albuquerque.
Em seu voto-vogal, o ministro Soares Muñoz afirmou a “impossibilidade jurídica de pedir-se que o Supremo Tribunal intervenha no Congresso Nacional para impedir que este pratique ato de seu ofício”. De acordo com ele, o controle que a Constituição atribui ao Poder Judiciário pressupõe a existência de lei devidamente promulgada e “não alcança os atos anteriores, enquanto estejam sendo realizados, porque, durante eles, é o próprio Congresso que privativamente examina acerca da constitucionalidade, ou não, de emenda à Constituição”. Nesses termos, votou pelo indeferimento do writ, no que foi acompanhado pelo ministro Rafael Mayer.
Daí, na mesma sessão do dia 17 de setembro de 1980 o ministro Moreira Alves pediu vista. O caso voltou ao plenário rapidamente, no dia 8 de outubro do mesmo ano. O voto apresentado pelo ministro Moreira Alves, com sete páginas, fundamenta por que não havia prejudicialidade no pedido, por que cabia em tese o writ e por que a segurança deveria ser indeferida in concreto.
Retomando a literalidade da expressão utilizada no texto do art. 47, § 1º, da Constituição de 1967, com redação dada pela EC 1/1969 (“Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a Federação ou a República”), o ministro Moreira Alves entendeu que o presidente do Senado – a quem cumpre a direção dos trabalhos do Congresso – tinha o poder regimental de rejeição, não só liminar, mas também no curso do processo, como uma decorrência lógica.
Além disso, em suas palavras: “se a Constituição alude a objeto de deliberação (o que implica dizer que seu termo é o momento imediatamente anterior à votação); não há dúvida, a meu ver, de que, a qualquer tempo, antes da votação, pode a Presidência do Congresso, convencendo-se de que a proposta de emenda tende a abolir a Federação ou a República, rejeitá-la, ainda que não o tenha feito inicialmente”. Nesses termos, entendeu pelo cabimento do mandado de segurança.
Rebatendo o argumento levantado pelo ministro Soares Muñoz, o ministro Moreira Alves argumentou que a inconstitucionalidade, no caso concreto, ocorreria não somente quando da aprovação da proposição, mas desde logo, pois “a vedação constitucional se dirige ao próprio processamento da lei ou da emenda, vedando a sua apresentação (como é o caso previsto no parágrafo único do artigo 57) ou a sua deliberação (como na espécie). Aqui, a inconstitucionalidade diz respeito ao próprio andamento do processo legislativo, e isso porque a Constituição não quer – em face da gravidade dessas deliberações, se consumadas – que sequer se chegue à deliberação, proibindo-a taxativamente. A inconstitucionalidade, neste caso, já existe antes de o projeto ou de a proposta se transformarem em lei ou emenda constitucional, porque o próprio processamento já desrespeita, frontalmente, a Constituição” (p. 338 do acórdão).
O ministro Moreira Alves não parou por aí e ainda afirmou a supremacia judicial diante dessas situações. Eis, mais uma vez, suas próprias palavras: “E cabe ao Poder Judiciário – nos sistemas em que o controle da constitucionalidade lhe é outorgado – impedir que se desrespeite a Constituição. Na guarda da observância desta, está ele acima dos demais Poderes, não havendo, pois que falar-se, a esse respeito, em independência de Poderes. Não fora assim e não poderia ele exercer a função que a própria Constituição, para a preservação dela, lhe outorga”.
No caso concreto, no entanto, quanto ao mérito, o ministro Moreira Alves entendeu que a emenda constitucional em debate não violava a república, na medida em que a prorrogação dos mandatos de 2 para 4 anos, tendo em vista a conveniência de fazê-los coincidir com os demais níveis da federação, não implica eliminar a temporariedade dos mandatos eletivos ínsita à república. O voto do ministro Moreira Alves foi seguido pelos ministros Djaci Falcão, Thompson Flores, Cordeiro Guerra e Antonio Neder. O ministro Leitão de Abreu se declarou impedido.
Pronto. Com a construção desse julgamento no MS 20.257, o STF passou a entender cabível, em tese, mandado de segurança para o controle judicial preventivo das PECs, antes mesmo de sua aprovação pelo Congresso Nacional (e não de emendas constitucionais como restou afirmado à página 96 do livro <a href="https://a.co/d/2qVdz3j">Moreira Alves e o controle de constitucionalidade no Brasil</a>, de autoria de um dos ministros mais influenciados por Moreira Alves, Gilmar Mendes, que compila as principais contribuições do ex-ministro). Essa é a magnitude do entendimento.
Depois, como explicado na <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/o-que-e-o-devido-processo-legislativo-17022021">coluna passada</a>, a jurisprudência do STF paulatinamente foi ampliando as hipóteses de cabimento desse remédio constitucional, <a href="https://revista.anpal.org.br/wp-content/uploads/2022/02/Artigo_07_Roberta_Simoes_Nascimento.pdf">cujas fragilidades em relação ao processo legislativo já foram detalhada aqui</a>. Não é o caso de repetir os argumentos nesta oportunidade, bastando enfatizar, mais uma vez, que o leading case do MS 20.257 não usou a famosa (e vaga) expressão <a href="https://www.conjur.com.br/2022-out-25/fabrica-leis-legisladores-formalistas">“devido processo legislativo”</a> que logo passou a ser rotineiramente utilizada em sua referência, nem cogitou da amplitude que tal controle prévio de constitucionalidade acabou assumindo ao longo do tempo no STF.
Ainda assim, não deixa de ser paradoxal de que tal construção – uma das mais inovadoras e decisivas nos rumos da jurisdição constitucional brasileira – tenha vindo precisamente de um ministro associado a posturas conservadoras. Tal etiqueta não incomodava o ministro, como se vê pelas respostas que deu <a href="https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/16735/Hist%C3%B3ria%20Oral%20do%20Supremo%20-%20Volume%2013%20-%20Moreira%20Alves.pdf?sequence=3&amp;isAllowed=y">aqui</a>. Na opinião desta colunista, sua partida encerra de vez uma época que pode ser lembrada como áurea para o tribunal.

Moreira Alves

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JOTA

Moreira Alves e a criação do controle judicial preventivo de constitucionalidade

Partida do ministro Moreira Alves encerra de vez uma época que pode ser lembrada como áurea para o Supremo Tribunal Federal

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As razões e o legado do MS 20.257