No último dia 14 de junho, o Supremo Tribunal Federal (STF) finalizou o julgamento do tema 1.120 da repercussão geral (comentado em coluna passada), tendo-se fixado a seguinte tese: “Em respeito ao princípio da separação dos poderes, previsto no art. 2º da Constituição Federal, quando não caracterizado o desrespeito às normas constitucionais pertinentes ao processo legislativo, é defeso ao Poder Judiciário exercer o controle jurisdicional em relação à interpretação do sentido e do alcance de normas meramente regimentais das Casas Legislativas, por se tratar de matéria interna corporis.”.
O julgamento contou com uma pequena ressalva do ministro Gilmar Mendes, para quem “(…) o controle constitucional das normas regimentais pode ocorrer quando houver violação direta ao texto constitucional, considerando-se como parâmetro de controle toda a Constituição, e não somente as normas pertinentes ao processo legislativo”.
Seja como for, a tese aprovada representa um importante endosso à doutrina dos atos interna corporis e joga uma pá de cal quanto às pretensões de ampliar o controle judicial (que já foi uma criação jurisprudencial, como ressaltado aqui) para alcançar a regimentalidade do processo de elaboração das leis no Brasil.
Reafirmou-se, assim, a tradicional jurisprudência do STF que admite o controle do processo legislativo somente nas situações em que se alega violação de normas constitucionais.
Nesse sentido, o sistema brasileiro se assemelha ao entendimento adotado pela Suprema Corte dos Estados Unidos (SCOTUS, na sigla em inglês), em que prevalece a chamada Enrolled Bill Doctrine (EBD), pela qual a assinatura do projeto de lei pelos presidentes da House of Representatives (HR) e do Senado representa um atestado oficial de que a proposição atendeu regularmente a todas as exigências procedimentais.
De acordo com a Constituição dos Estados Unidos (Artigo I, Seção 7): “Todo projeto de lei que tiver sido aprovado na Câmara dos Representantes e no Senado, deverá, antes de se tornar uma Lei, ser apresentado ao Presidente dos Estados Unidos (…)”.
No processo legislativo norte-americano, aprovado um projeto de lei na primeira Casa Legislativa, o clerk (que equivaleria a um servidor da carreira legislativa) prepara o engrossed bill, que representa a versão oficial do projeto de lei aprovado pela respectiva Casa para ser enviado à Casa seguinte.
Deve-se registrar que lá vige o bicameralismo puro ou simétrico no processo legislativo ordinário, ou seja, as duas Casas precisam aprovar exatamente o mesmo texto, sem a prevalência da Casa iniciadora (no Brasil, essa dinâmica só é aplicável para a reforma constitucional, nos termos do art. 60, § 2º, da CF).
Assim, após aprovação nas duas Casas do Congresso americano, o clerk prepara o enrolled bill, que é a versão final do projeto de lei aprovado pelas duas Casas Legislativas. No Brasil, tais documentos (o engrossed bill e o enrolled bill) se intitulam indistintamente como “autógrafo”.
O enrolled bill é assinado pelos presidentes da Câmara dos Representantes (HR) e do Senado para, na sequência, ser enviado ao chefe do Poder Executivo.
Pela EBD, em sendo aceitas como autênticas pelos tribunais, tais assinaturas conferem uma presunção absoluta de constitucionalidade do processo legislativo, tornando-o imune ao controle judicial que pretenda perscrutar questões procedimentais durante a elaboração da lei.
A EBD foi adotada em 1892 no caso Marshall Field & Co. v. Clark – 143 U.S. 649, no qual Marshall Field e outros importadores contestavam uma lei aduaneira (Tariff Act de 1º de outubro de 1890) sob o argumento de que a versão enrolled era diferente da que foi aprovada pelo Congresso (faltava uma seção, omitida na versão final), com base nos relatórios das comissões e outros registros ou materiais legislativos.
Ao julgar a matéria, a SCOTUS entendeu que os tribunais não podem questionar a validade do enrolled bill, pois as assinaturas dos presidentes constituem um atestado conclusivo de autenticidade, e não seria dado contrastar tal documento oficial com outros documentos preparatórios para verificar se neles figura exatamente o que foi assinado.
De acordo com a argumentação tecida nesse julgado, seria muito remota a hipótese de o presidente Câmara dos Representantes e o presidente do Senado imporem ao povo uma lei que nunca foi aprovada pelo Congresso. Isso – segue o argumento – sugeriria uma conspiração deliberada envolvendo presidentes, comissões e funcionários do Congresso, e uma ação judicial para investigá-los sobre essa base seria proibida pela separação de poderes.
Argumentou-se também que admitir tal controle judicial (e relativizar a presunção de regularidade do enrolled bill) criaria um estado de incerteza, aumentaria a litigiosidade e minaria a confiança nas leis. Foi dito, ainda, que os diários legislativos são elaborados em meio à confusão dos trabalhos legislativos e são muito mais propensos a conter erros do que o documento assinado pelos presidentes, o que dá fé à sua validade.
Desde então, continua vigente o entendimento fixado em Marshall Field & Co. v. Clark, que não foi objeto de overruling expresso pela SCOTUS, tendo sido endossado outras vezes (embora seja verdade que não é cumprido por diversas cortes estaduais lá).
Vale registrar que a EBD remonta à tradição britânica, que a adotou em 1616 (em The King v. Arundel, 80 Eng. Rep. 258). No direito inglês, as leis aprovadas pelo parlamento precisavam ser chanceladas pelo rei e marcadas com seu selo (a promulgação). O ato régio não poderia ser contestado, e o que quer que tivesse acontecido durante as deliberações parlamentares não teria importância.
Voltando para os Estados Unidos, em 1990, a SCOTUS afastou a EBD em United States v. Munoz-Flores, 495 U.S. 385, por se tratar de questão constitucional. No caso, alegava-se a violação da Origination clause (pela qual os projetos que visem a aumentar a receita devem iniciar pela Câmara dos Representantes), pois a norma então em discussão teria começado a tramitar no Senado.
No caso em concreto, a corte acabou considerando que os valores arrecadados com as multas instituídas pela norma não iam para o Tesouro (seriam destinadas a um fundo para reparação das vítimas dos crimes), daí a inexistência de violação da Origination clause.
No entanto, a SCOTUS avançou na argumentação de que a corte poderia, sim, verificar o cumprimento da Origination clause, inclusive a partir dos documentos legislativos (também tendo rejeitado que o caso se tratasse de uma questão política). Ou seja, lei aprovada em violação da Origination clausenão estaria mais “imune” ao escrutínio judicial.
Em lugar de afirmar a falta de confiabilidade dos registros parlamentares como feito em Marshall Field & Co. v. Clark (argumento que talvez já não faça mais muito sentido, dados os avanços tecnológicos da documentação legislativa), a Corte evoluiu para simplesmente atribuir maior valor probatório da enrolled bill (em comparação com as evidências de outros registros legislativos).
No referido julgado de 1990, é curioso registrar o voto vencido do justice Scalia, para quem a corte não deveria ir além do próprio enrolled bill, em respeito às Casas Legislativas e para não produzir incertezas no Estado de direito, reivindicando a aplicação do Marshall Field & Co. v. Clark.
De fato, a EBD compartilha com o textualismo (que teve no referido justice um de seus maiores defensores) a visão de que os materiais preparatórios (legislative history) não devem ter qualquer peso na determinação da validade ou do significado da lei.
O justice Stevens também chegou a se manifestar no sentido de que a Câmara dos Representantes seriam um fórum melhor do que o Judiciário para a resolução de disputas sobre a Origination clause. Mas essas posições foram deixadas de lado.
A literatura diverge sobre o significado de United States v. Munoz-Flores. Para alguns, teria implicado a superação de Marshall Field & Co. v. Clark, muito embora prevaleça o entendimento de que simplesmente limitou a EBD à violação das normas regimentais, tendo afastado a EBD nas situações em que a discussão envolva dispositivo constitucional (de forma semelhante ao que ocorre aqui no Brasil).
Em 2006, mais um caso reacendeu a discussão sobre a EBD: o Deficit Reduction Act (DRA) de 2005, que foi impugnado por não ter sido aprovado pelas Casas da mesma forma, como exige o Artigo I, Seções 1 e 7, da Constituição dos EUA (nos moldes do bicameralismo puro ou simétrico comentado acima).
A diferença entre uma versão e outra residia em um único artigo. O texto aprovado pela Câmara aprovou o reembolso de despesas médicas pelo Medicare pelo prazo de 36 meses, ao passo que o Senado limitou o prazo a 13 meses. Embora pareça pequena, essa diferença remontaria à casa dos bilhões de dólares a (não) serem despendidos pelo referido programa de assistência à saúde americano.
Ao preparar o enrolled bill, o clerk do Senado “corrigiu” a discrepância, mantendo o valor menor aprovado pelo Senado, em suposta violação das normas regimentais, pelas quais somente a aprovação de uma resolução das Casas Legislativas (concurrent resolution) seria capaz de corrigir o texto de um projeto de lei já aprovado nas duas Casas.
Diz-se que os presidentes da Câmara, do Senado e o presidente George W. Bush tinham plena ciência do “vício” e mesmo assim assinaram o enrolled bill. No entanto, nenhuma das tentativas de impugnar a constitucionalidade do DRA teve êxito, por aplicação da EBD, podendo-se concluir por sua vitalidade, passados quase 120 anos.
É bem verdade que alguns tribunais locais não aplicam a EBD, conferindo ao enrolled bill uma presunção apenas prima facie de autenticidade, que admitiria relativização diante de “evidências” extraídas a partir de documentos legislativos. Esse dado, inclusive, é usado por parte da literatura para defender a necessidade de superação da EBD (já que o escrutínio judicial da tramitação legislativa, quando admitido, não trouxe os efeitos catastróficos cuja ocorrência é sustentada pelos defensores da EBD).
Os detratores criticam a EBD, entre outras acusações, por supostamente servir de incentivo a que os legisladores desrespeitem as regras do processo constitucional de formação das leis. Por outro lado, seus partidários advogam que o afastamento da EBD traria um ônus indevido aos legisladores (de guardar registros examináveis pelos tribunais) e complicaria e aumentaria os custos dos litígios.
Sem pretender entrar no mérito do argumento quanto às consequências para a elaboração legislativa (ou para os tribunais), o cerne da questão diz respeito à separação de poderes e à soberania do Poder Legislativo, que pode e deve atuar dentro das margens dadas pelo texto constitucional, e é livre para tomar decisões na falta de determinações expressas da Constituição.
Ao aprovar seus regimentos internos, por exemplo, o parlamento também está interpretando a Constituição, definindo o que legitimamente atende as disposições constitucionais para fins de reputar legítimo o processo legislativo ou outras decisões legislativas.
É por isso que, nas situações em que a Constituição não foi formalmente descumprida, não cabe o escrutínio judicial, sob pena de converter o Poder Judiciário em único intérprete da Constituição, retirando qualquer autonomia do Legislativo para fixar suas rotinas e entendimentos. Por vezes, podem não ser os melhores, mas não implicam inconstitucionalidade ensejadora de controle judicial.
Voltando para o Brasil, a aprovação da tese quanto ao tema 1.120 da repercussão geral deve ser comemorada, mas, infelizmente, não deverá resolver os velhos problemas da falta de coerência da aplicação da doutrina dos atos interna corporis. Embora esse defeito também se verifique nos EUA (como se acaba de ver, a aplicação EBD nos EUA também é problemática), aqui a questão é agravada pela precária fundamentação das decisões judiciais.
A má técnica vai desde a dificuldade em determinar o que de fato vincula (a rigor, é a ratio decidendie não a tese jurídica final aprovada, sendo necessário separar o que foi determinante do que foi mero obiter dictum), às técnicas de distinguishing, entre outras falhas que dificultam a consolidação do sistema de precedentes no país.
Mesmo com a tese, não parece difícil antever que partidos políticos e parlamentares continuarão levando ao Judiciário questões jurídicas interna corporis do Congresso Nacional e parece duvidoso que o STF vá se furtar a realizar o controle só porque foi aprovada uma tese que diz que “é defeso ao Poder Judiciário exercer o controle jurisdicional em relação à interpretação do sentido e do alcance de normas meramente regimentais das Casas Legislativas”.
Não restam dúvidas de que essa tese será excepcionada em casos futuros pelo próprio STF. A questão será saber quais são os fatos considerados relevantes, e, sobretudo, se são suficientes para justificar a não observância do entendimento consolidado. A devida justificação do distinguishing para avançar no controle sobre atos interna corporis se impõe, justamente para evitar a experiência da EBD nos Estados Unidos.