Opinião e Análise

Roberta Simões Nascimento

Em <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/qual-alcance-principio-irrepetibilidade-pecs-22122021">coluna passada</a>, já se comentou a falta que faz no Brasil um sistema para dirimir os conflitos entre <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/camara-dos-deputados">Câmara dos Deputados</a> e <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/senado">Senado</a>. Quando as duas Casas divergem, a Constituição não previu forma qualquer de contornar os impasses. Para o processo legislativo ordinário, o art. 65, parágrafo único, da CF estabeleceu a preponderância da Casa iniciadora. Essa é uma solução que flexibiliza a lógica do bicameralismo (que suporia a convergência das duas Casas sobre um texto idêntico). Nesse formato, o Senado tem menos poder por, usualmente, adotar o papel de Casa revisora.
Além disso, a solução do art. 65 não é o suficiente e não são poucas as vezes em que Câmara e Senado divergem sobre a natureza das emendas, se de mérito ou só de redação. É que, em sendo só de redação, a emenda desobriga o retorno do projeto à Casa iniciadora. De acordo com o Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD), art. 118, § 8º, “denomina-se emenda de redação a modificativa que visa a sanar vício de linguagem, incorreção de técnica legislativa ou lapso manifesto”.
Ocorre que pode ser difícil aferir quando houve simples aperfeiçoamento redacional, sem modificação de substância. Há casos-fronteira. Basta lembrar da discussão quanto à <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lei-da-ficha-limpa">Lei da Ficha Limpa</a>. Durante a tramitação, o Senado Federal procedeu à “uniformização” dos tempos verbais, trocando onde estava escrito “que tenham sido” para a fórmula “que forem”, com fundamento no art. 11, inciso I, alínea d, da LC nº 95/1998 (“As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas: I - para a obtenção de clareza: (...) d) buscar a uniformidade do tempo verbal em todo o texto das normas legais, dando preferência ao tempo presente ou ao futuro simples do presente;”).
Para a Casa Alta, essa foi uma emenda de redação, a despeito de claramente mudar o âmbito temporal de aplicação da norma. No caso concreto, o <a href="https://www.jota.info/stf">Supremo Tribunal Federal</a> (STF) acabou dando razão ao Senado Federal (<a href="https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&amp;docID=629925">RE 630.147</a>), não existindo inconstitucionalidade formal por ofensa ao bicameralismo.
Mas a divergência entre Casas continua sendo uma das questões mais sensíveis do processo legislativo. Com frequência, o que é emenda de redação para o Senado, na visão da Câmara implica mudança substancial (de conteúdo) e a controvérsia se instala. <a href="https://www.conjur.com.br/2020-jul-06/roberta-nascimento-jabutis-processo-legislativo">Quando as próprias Casas não se acertam, o arbitramento fica a cargo do STF</a>.
O melhor parâmetro de exame é o voto da lavra do ministro <a href="https://www.jota.info/autor/nelson-a-jobim">Nelson Jobim</a> por ocasião da ADC 3, quando o STF decidiu: “O retorno do projeto emendado à casa iniciadora não decorre do fato de ter sido simplesmente emendado. Só retornará se, e somente se, a emenda tenha produzido modificação de sentido na proposição jurídica. Ou seja, se a emenda produzir proposição jurídica diversa da proposição emendada. Tal ocorrerá quando a modificação produzir alterações em qualquer um dos âmbitos de aplicação do texto emendado: material, pessoal, temporal ou espacial. Não basta a simples modificação do enunciado pela qual se expressa a proposição jurídica”.
Mas será que esses conflitos entre as Casas Legislativas de um sistema bicameral precisam desaguar sempre no Poder Judiciário? Como isso está disciplinado no direito comparado? Então, convém conhecer a técnica encontrada nos Estados Unidos para a solução dos conflitos entre a House of Representatives e o Senate, objeto da coluna de hoje.
Em texto passado, quando se explicava a <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/enrolled-bill-doctrine-ebd-07072021">Enrolled Bill Doctrine</a> (EBD), que fundamenta o controle judicial do processo legislativo nos Estados Unidos, também restou indicado que nesse país vige um bicameralismo simétrico em matéria de processo legislativo ordinário (ou seja, não existe a preponderância da Casa iniciadora como ocorre no Brasil, pelo art. 65, parágrafo único, da CF).
Nos Estados Unidos, quando um projeto de lei (bill) é aprovado por uma das Casas e, na outra, é objeto de modificações, tais emendas devem retornar à primeira Casa para concordância. Nessa fase, a Casa iniciadora pode concordar com as emendas ou oferecer novas emendas sobre as emendas apresentadas pela outra. Essas são emendas “de primeiro grau”. Nesse caso, o projeto segue para uma nova concordância da segunda Casa, que poderá concordar ou oferecer novas emendas de revisão (essas são as emendas “de segundo grau”).
O projeto, então, retornará à primeira Casa. Nesse estágio, já não são possíveis emendas “de terceiro grau”, ou seja, a Casa iniciadora não pode propor novas emendas após receber o projeto de volta da segunda Casa pela segunda vez. Como se vê, mesmo sem a preponderância da Casa iniciadora, o sistema dos EUA não enseja um “ping-pong” ad infinitum. Existe uma trava.
Dessa forma, se essa primeira Casa não está de acordo com as emendas “de segundo grau”, o projeto de lei é “perdido”, devendo ser considerado rejeitado, dado que o texto precisa ser aprovado pelas duas Casas com forma idêntica.
Para evitar tal perda que seria acarretada pela rejeição das emendas da segunda Casa, a primeira Casa pode solicitar a instalação de um <a href="https://sgp.fas.org/crs/misc/96-708.pdf">Conference Committee</a> para dirimir o impasse. Se a segunda Casa aceita (como sói acontecer), é instalada uma comissão mista composta por membros (conferees ou managers) das duas Casas Legislativas com vistas a resolver a divergência.
Os Conference Committees têm um grande poder, equivalendo na prática a uma “terceira Casa”, tamanho a margem para, em alguns casos, quase escrever uma nova bill, introduzindo matérias não consideradas antes pelas Casas. Inclusive, os próprios lobistas nos EUA usam os Conference Committee para introduzir emendas “jabutis” (jokers), via propostas de seus parlamentares de confiança.
As boas práticas, no entanto, recomendam que isso não aconteça: os Conference Committees foram pensados para manejar apenas as desavenças, não para “inovar”. Ocorre que suas reuniões podem ser secretas; sem a realização de audiências públicas; seus trabalhos não estão submetidos a quaisquer regras formais; e, com frequência, seus relatórios são enviados nos últimos dias da sessão legislativa, prejudicando uma avaliação mais pormenorizada pelas Casas.
São dois os tipos de Conference Committee: 1) simples, quando seus membros recebem instruções de negociação por parte das respectivas Casas; ou 2) livres, situação em que não há instruções e seus membros têm plena liberdade para resolver o impasse entre as duas Casas a respeito do conteúdo da legislação. Não existe vedação a que os Conference Committees sejam chamados para dirimir diferenças de outra ordem, embora seja mais raro.
Os votos de seus membros são colhidos separadamente, de modo que, para ser aprovado, o relatório do Conference Committee precisa do voto favorável da maioria dos indicados por cada uma das Casas. Com a elaboração e votação do relatório, o Conference Committee é dissolvido.
Uma vez instalado o Conference Committee, sua decisão precisará ser aceita ou rejeitada in totum pela House e pelo Senate, sem possibilidade de novas emendas, tampouco sendo possível que essas reconsiderem as posições iniciais que deram origem ao desentendimento. Quando o relatório traz jabutis, poderá ser submetido a questão de ordem em cada uma das Casas para deliberar a eliminação dessas partes, mas isso ocorre pouco.
Normalmente, no entanto, mesmo quando o conteúdo não é favorável aos seus interesses (ou até com jabutis indesejáveis), as Casas tendem a aceitar a solução proposta pelo Conference Committee, como forma de evitar o fracasso do processo legislativo.
Com a aceitação do relatório, “the bill is enrolled”, ou seja, as Casas dão ao autógrafo a redação aprovada no relatório do Conference Committee e envia-se à sanção do Chefe do Poder Executivo. Se as duas Casas rejeitam, ou se uma aceita, mas a outra rejeita, o projeto de lei é perdido, a menos que um novo Conference Committee seja solicitado e admitido. Nesse caso, os mesmos membros do anterior costumam ser reindicados.
Os Conference Committees podem acabar não sendo necessários se, informalmente, as Casas forem capazes de chegar a um acordo. Isso costuma acontecer depois que as duas Casas aprovam suas versões do mesmo projeto de lei, e os funcionários das Casas já “antecipam” a negociação do acordo, instruindo os parlamentares que efetivamente tomarão a decisão. Trata-se de um caminho mais sábio, dados os amplos poderes desses Committees.
Em todo caso, por mais que seja complicado, conhecer o processo de resolução das divergências legislativas nos Estados Unidos pode trazer luzes para os problemas da prática brasileira.
Confira-se, por exemplo, a questão trazida pelo procurador-geral da República na <a href="https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&amp;docID=770295802&amp;prcID=6727980">ADI 7.442</a>, ajuizada no último dia 29 de agosto contra o art. 6º, § 13, da Lei 11.101/2005, incluído pela Lei 14.112/2020. Para resumir a argumentação da petição inicial, menciona-se que o texto aprovado pela Câmara dos Deputados foi o seguinte: “§ 13. Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do art. 79 da Lei no 5.764, de 16 de dezembro de 1971".
Durante a tramitação no Senado Federal, foi aprovada uma emenda para adicionar ao final do texto normativo acima a frase “consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica”. Considerando essa uma emenda de redação, a Casa enviou o <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/144510">PL 4458/2020</a> à sanção. Para o PGR, houve violação so art. 65, parágrafo único, da CF.
Como se vê, nesse caso, o STF terá mais poderes que as próprias Casas Legislativas para definir se a alteração foi ou não substancial a ponto de ensejar o retorno à Câmara. Teria sido muito melhor que houvesse algo parecido aos Conference Committees dos EUA.
Para a adoção dessa técnica, entende-se que sequer seria necessária emenda à Constituição, bastando a aprovação de Resolução do Congresso Nacional prevendo a designação de comissões mistas com a finalidade de dirimir os conflitos entre Câmara e Senado. 
A autorização para esse caminho vem do próprio art. 58, caput, da CF, e não custa recordar que, antes mesmo da constitucionalização pela <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc32.htm">EC 32/2001</a>, a Resolução nº 1, de 1989, do Congresso Nacional, já trazia as comissões mistas para o estudo e parecer sobre as medidas provisórias, independentemente de previsão constitucional nesse sentido.
Essa alternativa inspirada nos Conference Committees poderia resolver até mesmo o impasse envolvendo a <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/137178">PEC 91/2019</a>, aprovada desde 12 de junho de 2019, e <a href="https://congressoemfoco.uol.com.br/area/congresso-nacional/aprovada-pec-das-mps-completa-29-meses-de-gaveta/">até agora sem promulgação</a> precisamente por conta de divergência entre as Casas Legislativas sobre determinadas emendas aprovadas no Senado serem ou não de redação.

Congresso Nacional

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JOTA

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Como solucionar os conflitos entre Câmara e Senado?

Quando Câmara dos Deputados e Senado Federal divergem, a Constituição não previu forma qualquer de contornar os impasses